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quarta-feira, 1 de abril de 2015

DONA ALZAIR NOS CAMINHOS DE JOSÉ LOPES DOS SANTOS

Francisco Miguel de Moura 
Escritor, membro
da Academia Piauiense de Letras*

         José Lopes dos Santos, muita gente conheceu e conviveu com ele. Membro da Academia Piauiense de Letras, cronista, jornalista, radialista, musicista, advogado, político, funcionário público, foi um homem dos 7 instrumentos, como falou Zózimo Tavares, na excelente apresentação do livro “Caminhos & vivências”, escrito pela funcionária dos Correios e Telégrafos e professora Da. Alzair Fernandes, nascida em 05-02-1927, em Miguel Alves-PI, e em plena força para escrever tão bem.
        Pessoas de fé e muita educação, os dois: o acadêmico e a escritora Alzair Fernandes. Vejamos quem ela escolheu para gravar numa biografia, um memorial de sua vida e vivencias: – José Lopes dos Santos, um cavalheiro, um verdadeiro “gentleman”.
        José Lopes serviu a vários governos, de várias correntes partidárias, em diversas ocasiões, através de cargos de confiança, e de todos recebeu grandes elogios. Antes tinha sido Prefeito de São Miguel do Tapuio–PI, cujo fato aconteceu: a) - primeiro, por conta de sua amizade com Manoel Evaristo, o chefe do lugar; b) por sua competência, sinceridade e honrado cavalheirismo, além da amizade nunca estremecida com aquele que era o principal chefe da oposição a tudo quanto existia de poder, na cidade de São Miguel do Tapuio, Manoel Evaristo.  José Lopes dos Santos foi nascido no Ceará, mas crescido e renascido no Piauí. Comandante e comandado foram vitoriosos naquela eleição.
       Sra. D. Alzair Fernandes, não se preocupe se muito falamos sobre José Lopes dos Santos. Acontece sempre assim com o biografado e o biógrafo. Aconteceu comigo quando publiquei “Linguagem e Comunicação em O. G. Rego de Carvalho”: - Ainda hoje me procuram para que dê entrevistas falando sobre O. G. Rego e sua obra. Isto, para nós, é a glória. Você se tornará conhecida e admirada aos poucos, o tempo foi bom com você por ter sido a biógrafa de José Lopes dos Santos. Ninguém estaria mais capacitada para o empreendimento, em virtude da bela convivência, da paciência e da memória para guardar as conversas, os fatos, a leituras da obra dele, um homem de moral ilibada, um cidadão que criou uma família com sacrifício psicológico grande por serem adotados.
       Minha mãe já dizia: “Meu filho, acompanha-te com os bons e serás como eles; acompanha-te com os maus e será pior do que eles”. Seu conhecimento sentimental e autêntico de como foi a vida de José Lopes dos Santos, como falava, como escrevia, como se comportava com os amigos (porque, inimigos, não acredito que os tivesse) aplainou os seus caminhos, fez você produzir esta obra tão simples quanto vocês dois: o homenageado e a homenageante. Simples nunca foi depreciativo. Simples é bom. Existe gente que toma simples por fraco, dispensável, porque não abriu as portas da própria percepção. Segundo o poeta inglês William Blake: “SE AS PORTAS DA NOSSA PERCEPÇÃO FOSSEM LIMPAS, TUDO APARECERIA AO HOMEM TAL COMO REALMENTE É: INFINITO”.
         Nós e as nossas obras somos infinitos, especialmente quando temos sonhos, fé e acreditamos em Deus: A escritora Alzair Fernandes é imortal, não somente porque abriu as portas da percepção ao imortal da Academia Piauiense de Letras, esta Casa de luminares. Você abriu suas portas a tantas outras boas coisas da vida.
         Nós somos o tempo. “O que existiu, há sempre de existir”, é o fecho, a chave de ouro de um dos meus sonetos. Este pensamento, eu não retiro. Pois ele casa tão bem, isto é, se ajusta ao pensamento do poeta William Blake, citado antes.
         A bondade, a beleza, a justiça, a generosidade, a amizade são infinitos quando nós somos bons. E é sendo bons que vamos nos tornando infinitos, ou eternos, como queiram.
        “Quem é bom já nasce feito / quem quer se fazer não pode / ainda que encubra as faltas / no mesmo tempo descobre”- são versos que minha mãe me recitava. E eles me fizeram filosofar como Dona Alzair, no seu livro:
        “A independência do homem é utópica” (pg.14).
         Isto quer dizer que o homem é bom ou mau, intrinsecamente. Os intermediários são remédios sociais que não garantem para sempre. Porque os bons são bons infinitamente. E os maus, coitados, são maus infinitamente, já disse num artigo e aqui repito.
         Agora me deu vontade de citar a frase de D. Avelar, no meio da “Oração por um dia feliz”, quando o cantor Marco Antônio morreu: “É bom ser bom”. Quem duvida?
         Todos nós dependemos de Deus, somos parte de Deus, deveríamos ser bons. Aí me vem “a teoria dos contrastes” de que falava José Lopes dos Santos e você lembra no seu livro. Mas a parte jamais chegará ao todo: são os mistérios a que não chegamos como entes transformáveis e não tanto transformadores.
         Tenhamos fé, tenhamos crença e esperança, como Alzair Fernandes, como José Lopes dos Santos, ambos homenageados hoje, e teremos o infinito bem em nosso favor.
          Parafraseando o poeta Fernando Pessoa, Dona Alzair, eu afirmo: Seu livro é bom de ler, é um verdadeiro poema de simplicidade e amor, e mais que ocasião para que o leitor abra as portas da percepção.
          Sua prosa é escorreita, quero dizer; ela é tão corrente como um rio de águas claras. Que mais posso dizer? 
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* Estas palavras foram lidas, por Francisco Miguel de Moura, no Auditória da Academia Piauiense de Letras, em 28-3-2015,  quando autora de "Caminhos & Vivencias", espécie de biografia de José Lopes dos Santos, membro da APL, falecido já há algum tempo.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

A VIDA E SEUS CAMINHOS - CRÔNICA

Francisco Miguel de Moura*

                                                                                        
Passei a manhã de hoje numa livraria. Não vou dizer o nome pra não fazer propaganda, que eles pagam caro, mas se colocar aqui não recebo nem um “tostão furado”. Vá traduzir esta expressão e verá que não tem boa correspondência em outra língua, senão em espanhol, a mais próxima de nós.
Não foi uma manhã agradável como as de outrora, de quando eu entrava numa boa livraria com deleite, permanecendo como que enlevado. Corri os dedos e os olhos por todas as estantes ou prateleiras e não encontrava o que queria: um livro de crônicas, de autor brasileiro. De autores tupininquins, só vi o surrado Paulo Coelho, que não escreve crônicas (e nem sei se seus livros são de boa ficção). Tudo mais era “best-sellers” americanos ou de outras paragens. Biografias de cantores, livros políticos e midiáticos.
Já na saída, por muita sorte, li na carneira o nome de um: “O mundo é o que é”, de Gilmar Marcílio.  Dentro, na primeira linha da crônica: Uma das coisas mais bonitas da vida é beijar”. Tive tempo de ler a primeira crônica e gostei. Fechei-o com cuidado. Pus o volume debaixo do braço, desci as escadas já procurando onde pagar, com a frase da primeira crônica na cabeça: “Uma das coisas mais bonitas da vida é beijar”.
Gosto de crônicas porque a leitura é mais amena. Na minha idade... O cronista trabalha com a matéria viva – a vida e seus passos. A vida física em toda parte é objetiva, as alterações são naturais. Mas a vida social, cultural, os acontecimentos são diferentes em cada lugar do mundo. Dizem que a crônica é um gênero menor, não sei por qual motivo. Creio que pode tornar-se maior sem exagerar na extensão. Pode ser universal sem ser de autor que só publique por famosas editoras. Geralmente a crônica vai do jornal para o livro, se for boa, bem escrita, trabalhada com estilo. Foi assim que ela começou no Brasil, com Machado de Assis. E continua ora de costumes, ora poética, ora filosófica, aqui e acolá ilustrada por ditos populares e anedotas.  Abdias Lima, escritor cearense, conta uma anedota que vai dar um tom menos rígido a esta minha e esclarece porque a crônica é crônica. Escreveu ele:
“O menino lê o jornal, talvez deliciando-se com uma crônica, e de repente levanta a cabeça para perguntar ao pai:
- Crônica? Que quer dizer isso?
- Crônica é o que passa – resposta do pai.
- E como é que a asma da vovó nunca passa e o médico diz que é crônica”?
Crônica é tudo que passa aos nossos olhos exteriores e internos a cada dia. E é “crônica” porque não passa. Talvez seja a melhor definição do gênero. Talvez seja o mais antigo gênero literário em prosa.
Quando apresentei o livro à moça do caixa, pedi um desconto porque o pagamento ia ser à vista. E ela prontamente concedeu. Agora não consigo lembrar como entrei no assunto literatura. Disse-lhe certamente que era escritor.
- Talvez esta livraria tenha alguns livros meus.
- O senhor escreve o quê? – falou como se já me conhecesse.
- Escrevo crônicas e romances. Este é de crônicas - expliquei – e estou levando porque gosto de ler crônicas, normalmente são curtas, a gente lê na rede e até mesmo no banheiro.
Moça branca, comunicativa, risonha, bonita para mim, naquela ocasião. E interessou-se mais:
- Como são seus romances? São românticos?
- São românticos até certo ponto, pois geralmente há casos de amizade, namoro e casamento. Mas pode haver romance sem romance. O que não se deve é escrever um romance sem mistério. É uma arma para levar o leitor até a página final.
Como sou conversador quando o assunto é livro, literatura e leitura, fui respondendo à curiosidade da moça até que, afinal, escupuli e descrevi um pouco da história do meu primeiro romance.
- Meu primeiro romance tem nome de “Os estigmas”. Sabe o que são os estigmas? Não a deixei falar, prossegui. Os estigmas com que trabalhei estão patentes nos personagens principais: uma moça negra que morava numa pensão e termina na “zona de mulheres”, uma aleijada que quis namorar o rapaz, no caso eu próprio, feio e pobre, que ficou com a negrinha, entre outras formas de estigmas.
- Mas o senhor não é feio, não.
- Bondade sua! São seus olhos. Mas já fui melhor quando era jovem de 20 anos.
Olhando para o meu relógio, abreviei a despedida. Nosso papo terminara por ali mesmo.  Mas, se “uma das coisas mais bonitas da vida é beijar”, com diz o autor logo na primeira crônica, confesso que me deu vontade de beijá-la. Em seu lugar, beijei o livro.
A manhã, a partir dali, ficou mais prazerosa. Voltei pra casa alegre, lembrando as palavras da moça. Mas não foi o principal sentimento. Saí pensando sobre a vida e seus caminhos. Principalmente os caminhos da leitura. Será que a influenciei? Pelo que sei, quem vende livros não os lê. Quando muito passa um vista pelas orelhas, nome do autor, título e editora. E pronto.
Já li quatro crônicas que eu chamaria de ensaios à la Montaigne e gostei do estilo, dos temas e da maneira de focá-los. Vou continuar até o fim. Depois, volto a ela, a moça, para recomendar a leitura. Para mim, só existem três coisas que me fazem entender bem a vida: o toque, a vista e o ouvido. E fora dos órgãos físicos, a leitura. Nenhum discurso ouvido, por melhor que seja o orador, não se concatena na minha cabeça. É como se entrasse por um ouvido e saísse por outro. Melhor do que a leitura silenciosa não existe.
A leitura silenciosa é uma conversa com o autor, com o mundo do texto e consigo mesmo – o próprio leitor. E cada releitura é um novo caminho para desvendar mundos diferentes, vidas interessantes, luzes que mais brilham, gente que vive, sofre, ri e canta. E dança. Às vezes conforme a música, outras vezes infelizmente não.
Na leitura de Gilmar Marcílio encontro tudo isto, talvez até mais do que meu olho interno enxergava antes, pregado ao meu chão, a mim mesmo e ao meu egoísmo.

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*Francisco Miguel de Moura, brasileiro, casado, bancário aposentado, escritor (prosa e poesia), publica uma crônica ou um artigo a cada sábado, no jornal "O DIA". Esta foi publicada em 19-7-2014, página 6 - Coluna "Opinião".

terça-feira, 12 de novembro de 2013

VEZ POR OUTRA... - Pedro Salgueiro

CRÔNICA
Pedro Salgueiro*

Vez por outra algum amigo, colega de trabalho ou familiar pergunta — curioso com meus encontros com outros escritores — sobre o que tanto conversamos. Fico (apesar da insistência) assustado com a pergunta; e tento devolver a dúvida: “Sobre o que você conversa com seus amigos?”. O interlocutor também titubeia: “Depende...”. Emendo: “Pois é, depende, tem dias que falamos sobre futebol, noutros sobre os ‘assuntos quentes’ da época: ‘violência’, ‘protestos’ etc, etc”.

Escrever é um ofício por demais solitário, que quase não compartilhamos com ninguém; quando muito trocamos algumas ideias sobre um tema que nos inquieta (alguns são supersticiosos sobre temas futuros de seus escritos: se falarem não conseguem mais escrever sobre o mesmo, perdem o interesse, então silenciam), um “truque” que outro para começar uma história, certas dificuldades nas abordagens de um determinada temática... enfim, escritores quase não interagem com outros quando o assunto é escrita. Estamos, na maioria das vezes, sozinhos com nossos fantasmas.

Resta-nos para conversamos a totalidade de outros assuntos, de futebol à volta da inflação, da beleza feminina ao começo inverno; e, mesmo com essa variedade de temas, sobra tempo demais para brincadeiras, trocadilhos infames, gozações... Escritores, pois, falamos muita besteira. Engana-se quem pensa que entre eles prevalecem as pérolas lingüísticas, os conteúdos filosóficos, os ditos assuntos “sérios”... Sobram pilhérias, gozações, informações inúteis.

Mas sempre aprendemos alguma coisa com nossos colegas de letras, entre uma anedota e outra aparecem informações sobre livros lançados, conversas esquisitas escutadas, projetos de contos, poemas ou romances; tudo diluído na confusão de vozes em quase gritos e sussurros.

No encontro mensal da turma toda, nos subdividimos em vários pequenos grupelhos, às vezes bisbilhoto quatro ou cinco temas sendo conversado na mesma mesa: alguns participam (e dão opiniões) de mais de uma conversa, trocando as bolas nas intervenções, principalmente quando a cerveja já rola solta desde o começo da noite. Uns bebem muito álcool; outros, apenas refrigerante; um distribui amendoins e batatas-fritas; alguns trocam livros e revistas literárias: todos falam mal dos ausentes. Não raro um faltoso liga reclamando das “orelhas quentes” na noite passada. O ouvinte aconselha: “Melhor não faltar da próxima vez”.

E essas patotas de escritores se encontram em bares, restaurantes, fins-de-semana na praia: seja no Restaurante do Ideal, Clube do Bode, Poetas de Quintas, Bar do Vaval, Abraço Literário, Bar do Assis da Gentilândia, Bosque da Letras... e uma infinidade de outros lugares em que jovens e veteranos escritores se “batem”.

Claro, há os que não arredam os pés de casa, e acham tudo isso uma tremenda perda de tempo, uma chatice; são minoria, verdade, mas odeiam “panelinhas”, “grupelhos de escritores menores que se juntam para falar mal dos outros”, os outros são eles, os reclusos, óbvio. Guardam em si toda a seriedade do mundo, mas nem sempre conseguem transformar suas “sobras de tempo” em boas obras literárias.

Não sou de “circular” muito, não é de meu temperamento as festas e farras constantes, mas tiro sempre uma noite ou duas por mês para reencontrar os amigos, colocar as conversas em dias, trocar livros e velhas piadas, falar mal da turma dos ausentes (“cortar-a-casaca-da-humanidade”, como diz o amigo Sânzio de Azevedo), fazer visitas aos que não saem mais de casa.

Este mês, por exemplo, fui a dois bons lançamentos: um da amiga Hermínia Lima no “Terraço do Ideal”, e lá, entre as saudações à autora e as declamações dos seus poemas, reencontrei os escritores Batista de Lima e Dimas Carvalho, que há muitos anos não via; outro no Dragão do Mar, do primeiro romance do amigo Carlos Vazconcelos, onde (depois da conversa agradável entre o autor e o poeta Henrique Beltrão) também revi amigos longamente ausentes.

E este final de semana fizemos um encontro que há tempos não se realizava, mas tão prazeroso que deveria se repetir sempre: fui, com Nilto Maciel e José Mapurunga, visitar o poeta Soares Feitosa. E foi com muito prazer que os já gastos meninos de calças curtas encheram a casa de histórias e recordações: cada um queria falar mais que o outro, como se há décadas não se encontrassem, como se fosse a última vez que se veriam. Um atropelava o outro com anedotas saborosas, causos do arco-da-velha, temperados por gargalhadas e pedaços de rapadura.

O velho Salomão da Serra de Monsenhor Tabosa (Soares) disputava com o Menestrel de Viçosa (Mapurunga) quem contava a melhor história, tudo mediado pelo Sátiro de Baturité (Maciel), que de quando em vez “sapecava um mote” venenoso para os dois gigantes; tudo isso para deleite deste pobre cronista de meia-tigela, que tenta agora em vão transferir para o papel a riqueza daquelas poucas horas de mágicas palavras trocadas entre velhos amigos.
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Pedro Salgueiro, escritor cearense, especialmente cronista e contista. Esta crônica foi publicada em O POVO, Fortaleza-CE, em   09  outubro de 2013

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

UM BESOURO CONTRA A LUZ

Francisco Miguel de Moura*

    De súbito, um besouro começou a perturbar o silêncio de meu escritório. Bate com força e voa, bate novamente e voa, de todas as formas.  Bate contra o quê?  Ora numa ora noutra das lâmpadas acesas, como se quisesse entrar.  Mas, de tanto voar e de tanto bater, encontra um pequeno interstício entre o suporte de metal e a lâmpada propriamente dia. Depois, alguns segundos, sai do esconderijo e pára na superfície incandescente durante alguns instantes, depois de voltar a fazer a mesma coisa.
    Zumbido realmente desconfortante.
    Vou à cozinha e pego uma vassoura para enxotá-lo pela janela que dá para o nosso jardim da frente, ali tão perto, cheio de plantas perfumosas e alegres nas suas cores, tudo cuidado por minha companheira de muitos anos. Mas ele não sai do buraco e quando o faz não consigo nem tocar com a vassoura.  Bicho ligeiro. 
    Depois do primeiro susto e de ouvir seu esvoaçar no qual entram as batidas secas na lâmpada acesa e rebulíço das asas pude pensar que talvez estivesse sentindo frio e em busca do calor da luz. Tive pena dele e meu pensamento retoma por outra linha, deduzo que o bichinho é cego. E vou mais à frente. Quem não vê a escuridão, nada sabe do outro lado dos universos, a negação, o limbo, a dor sem esperança; só tem por si a alegria eufórica de quem está entorpecido por uma paixão, e assim vai se consumindo inutilmente, falta-lhe a razão. Esta, sim, vê, estuda, aprende, esquece, sente, sonha, cria. Vive poeticamente. Pois quem tem a idéia da luz e ao mesmo tempo das trevas sabe que pode perder aquela a qualquer momento e deve estar atento a tudo quanto acontece.
    Ou o nosso besouro seria cego? Neste sentido só teria escuridão em si, e, sentindo frio, buscava o calor gostoso do verão que já pressentira em redor da lâmpada.
    E volto o pensamento para o poeta que eu era na hora dessas observações, seguindo para linhas gerais. O poeta não consome, se verdadeiro o ser desta palavra, mas se consome e é consumido. Na dor e na alegria, embora nada de prático faça – ou de preferencial. Faz apenas o dia-a-dia e neste as coisas de suma importância para sobreviver.
    Por outro lado, mesmo com tal argumento que expendi apenas para contestá-lo, pergunto: 
    – E o poeta não faz? 
    – Faz. Diferente, respondo.  Ele fala e é tudo. Mágico como o criador, ele escreve, e está feito. Ele diz e está dito, porque diz de uma forma inexistente: cria. Qual o homem pleno, tem dialética. São líquidos os poetas. Como a matéria primordial.  Líquidos, límpidos, vêm do Olimpo e se acercam da fonte de Castália para purificar-se, namorar as ninfas. O poeta sabe, pouco mas o bastante para tomar o seu caminho, gostar da luz, beijá-la e reconhecer as trevas como igualmente o lusco-fusco, o cinza, todas as cores da alma.
    Será que o nosso besouro tomava o seu caminho ou consumia a luz, o calor?
    Olho para o teto e o vejo. Ainda está vivo. Preto, da cor da noite. Música, não ouve, nem mesmo a própria, mas está vivo. Para ele também tudo será mistério ou só para os homens que se preocupam em consumir, consumir?
_________________________
 *Francisco Miguel de Moura, escritor brasileiro, leia seus textos nos seguintes lugares: www.usinadeletras.com.br  www.jornaldepoesia.jor.br  www.antoniomiranda.com.br e  www.gazzag.com/franciscomigueldemoura

sábado, 6 de julho de 2013

SURPRESAS, MAIS QUE SURPRESAS

Francisco Miguel 
de Moura*

CRÔNICA

Sem a palavra o mundo humano não teria andado e muitas circunstâncias passariam em branco. Assim, se não tivesse havido uma promessa anterior, repetida aos domingos, ao velho Raimundo (apelidado ora de seu Mundo, ora de seu Mundinho), este incidente passaria em branco. E se aqui vai contado é ao modo de crônica silenciosa, como ficção. 

A promessa do filho a seu Mundo se traduzia nestas palavras:

- Pai, pretendo aumentar a casa, este terraço, porque todo domingo, quando o senhor vier almoçar aqui, terá uma rede para a soneca de depois do almoço. Não é bom?

- É sim, fica agradável, aqui corre um ventinho tão bom, quase sempre – disse o velho Mundinho muito satisfeito. – Aceito o convite do almoço e a rede.

O “costume não faz o monge”, mas em determinadas ocasiões, bem que faz: Seu Mundo deitava-se numa redinha macia, depois de ter almoçado tranquilamente na casa do filho, no conforto da intimidade da família, nos fins de semana, por algumas horas, para a sesta. Seu Mundo não gostava nem um pouco de tevê, salvo uma ou outra novela da Globo.  Ia direto pra rede.

Não vamos falar mais sobre o filho do velho Mundo, muito menos dizer-lhe o nome, porque “o nome é que faz o fuxico”. Ele sempre foi um bom rapaz, sensível, inteligente, carinhoso com os filhos e com os pais, costumando ouvir os conselhos do velho, o que não é comum hoje em dia, aliás, melhor seria dizer que é muito raro.

O outro personagem neste “causo” é uma recém-nascida ainda não batizada, mas já conhecida na vizinhança, por sua graça – a estranha beleza da figura - pois é muito sisuda e calada. Terá um nome bonito quando for batizar-se e registrar-se no cartório, guardado em segredo pelos pais, e por isto todos nós começamos a chamá-la de Nenê. Filha da filha mais velha de seu Mundo. Logo: bisnesta.
 
Naquele domingo, como de costume, seu Mundo e dona Meire, depois de rezarem a missa juntos, seguiram para a casa do filho. Chegando, seu Mundo acariciou os gatos que o procuravam como bebês, depois se levantou e seguiu para a mesa onde era servida a refeição, a chamado da nora. O almoço transcorreu na maior tranqüilidade, em clima de alegria, tudo estava bem. E o tempo ia passando sem que ninguém sentisse. O tempo corre quando a conversa é boa.

Nesse ínterim, visto que os assuntos surgidos eram absorventes, iam acontecendo coisas que nunca haviam passado pela cabeça de seu Mundo. O velho não via nada e não ouvia também. Parece que foi tramado o silencio que se desdobrou até o fim da refeição. Sentara-se sem perceber, de costas para a porta de entrada principal da casa, e se alguém da mesa viu não falou nada, se ouviu ficou em silêncio.
Havendo chegado bastante atrasados para o almoço, Joseilton, Joselina e a filha. Sem perturbarem ninguém, foram-se arranchando caladinhos. Logo estenderam a rede bem no lugar onde costumava seu Mundo deitar-se depois do almoço - uma das amabilidades do filho - e ali deitaram à filhinha, já cansados de carregá-la nos braços. 

Terminada a refeição, antes mesmo da sobremesa, o velho Mundo, cansado ainda dos “fuxicos” do dia anterior, entre papéis, livros, documentos, caixas (velho se cansa rapidamente e demora muito a descansar), levanta-se da cadeira e, virando-se para a porta (costumava dar uma caminhada pelo corredor antes de deitar-se), quase que toma um susto. Sente que perdeu uma das suas regalias já consideradas perpétuas – o pai cuidava da filha, mantinha-a no braço, assim de um lado, e, esparramados, dormiam a sono solto. O velho olhou-os, sem uma palavra, e certificou-se que acabara de ganhar uma formosa bisneta, a família crescendo, uma alegria, mas perdera a rede e o lugar de descanso que o filho “inventara”. Seu Mundo não teve outro jeito: Sentou-se no sofá, em frente à tevê e ficou a ver filmes até ser chamado por d. Meire para voltarem pra casa. 

Bendita surpresa!  Não porque ainda não a conhecesse, já vira a bisneta algumas vezes e batera palminhas pra ela, depois tentara ensinar outras coisinhas. Inusitado, aquele dia! Não haveria outro igual àquele: estar junto de sua bisneta, hoje com o nome de Sônia, mesmo perdendo a rede para ela.  Eis como o que aqui se perde, aqui se ganha. 

Seu Mundico, como era apelidado pelos de casa, não gostava de perder, mas desta vez rendeu-se facilmente à evidência. E teve a oportunidade de, depois de despertada a criança, brincar, brincar com ela um tempão, terminando por fazê-la sorrir, uma coisa que Soninha só concedia ao avô, e poucas vezes. Seu Mundinho saiu balbuciando consigo mesmo, satisfeito porque provou ser um bisavô à altura. Avô duas vezes.
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Francisco Miguel de Moura, poeta, cronista e romancista brasileiro, membro da Academia Piauiense de Letras, mora no Piauí.

quarta-feira, 21 de março de 2012

FOTOGRAFIAS DOS ESCRITORES - CRÔNICA

 Teresinka Pereira*           

As pessoas que conhecem os escritores somente pela obra publicada (e agora pela internet) e as fotografias dos mesmos tendem a imaginá-los como seres invencíveis pelo tempo, quer dizer, que não envelhecem. Muitos nem imaginam que nós, os escritores (poetas inclusive) somos vaidosos e queremos continuar a ser glamorosos como éramos na juventude. Não permitimos que nos tomem fotografias nos congressos, nas conferências e quando os editores de antologias nos pedem para enviar um retrato tamanho carteira, mandamos algum que tiramos aos 20 anos de idade.

Estamos todos orgulhosos de que nossa obra literária se tenha desenvolvido, feito um progresso digno da nossa maturidade, mas quando nos olhamos no espelho, nosso reflexo vem da memória da nossa juventude e por isso escolhemos sempre aquela fotografia linda tirada em alguma ocasião especial.  Embora isto seja comum, esse truque pode ter conseqüências negativas algum dia em que aparecemos entre amigos que não vemos há muito tempo, ou de algum novo leitor que vai nos cumprimentar levando na mente a imagem da foto que viu na última antologia. Dito isto, temos que considerar também o poder da imaginação que é sempre ilimitado e que ao olharmos uma fotografia no papel podemos vê-la ao nosso lado transformada em uma linda pessoa, com todas as características que a beleza nos contagia: a bondade, a inteligência e o talento. É a mesma coisa que acontece com os artistas de cinema ou de teatro que vemos no palco ou na tela (agora no computador ou no telefone) que sempre se adaptaram ao papel que representam e que de realidade não têm muita coisa.

Lembro-me de que jovem, estando no teatro universitário, representei a bruxinha que era boa da peça de Maria Clara Machado que tem esse nome. Na platéia havia um punhado de crianças emocionadas que mal podia distinguir a realidade da existência das bruxas e bruxos... Finalizada a atuação, o menor de meus primos sob ao palco furioso para bater no bruxo que tinha me prendido na torre! O bruxo, que era representado pelo J. Dângelo, importantíssima personalidade na política mineira hoje em dia, tirou a “maquiagem” e conversou e conversou com ele mostrando que era tudo um “fingimento”, que na vida real ele era meu amigo, incapaz de me prender! E meu priminho fez amizade com ele. Por outro lado, uma menina que veio ao lado da mãe me cumprimentar pela atuação, me olhou espantada dizendo: “Eu pensei que você era uma bruxinha pequena, mas você já é grande!” Eu nunca fui grande, mas claro que vista de longe, na altura do palco, ao lado do alto bruxo J. Dângelo, eu parecia uma bruxinha de brinquedo. E eu também expliquei à menina: “Eu estava só fingindo que era pequena!” Mas chegou um dia em que me cansei de estar sempre fazendo o papel de menininha no teatro. Protestei. Queria representar uma mulher adulta. Mas o diretor do teatro comentou: “Pois você ainda tem voz de Chapeuzinho Vermelho, então vai ter que empostar a voz para falar como gente grande”. E eu fiz isso, o que me foi muito beneficial quando comecei a dar aulas e a ser diretora de teatro aqui nos Estados Unidos. Mas isso quando estou atuando. A voz de Chapeuzinho Vermelho ficou comigo durante muito tempo na intimidade da família. O respeito que adquiri profissionalmente nunca foi reconhecido em casa. Nem pelo telefone. Alguma vez a voz do outro lado da linha me mandou chamar a minha mãe... A que eu respondia: “A mãe aqui sou eu mesma!”

Tantos conflitos temos entre a aparência e a realidade! É claro que nossos filhos vão acompanhando nosso envelhecimento e não lhes passa pela cabeça que já vamos pelos trinta, depois pelos quarenta e que algum dia ultrapassaremos a juventude dos 50 e tantos. Nem nós mesmos prestamos muita atenção nisso. Chegam os netos e um deles reclama: Você não parece avó! E eu pergunto: Por quê? Não sou boazinha, dou presentes e compro biscoitinhos e bolos? E ele responde indignado: “Você não tem cabelo branco!” E dou outra explicação: “Isto era antigamente, quando as vovós tinham cabelo branco! Agora elas podem pintar o cabelo da cor que quiserem. Como eu quando era menina tinha o cabelo branco e todo mundo me chamava de “velha” ou de “tostão de paina”, agora pinto o meu cabelo bem escuro, para que ninguém se atreva a me insultar mais!”

Por outro lado, os filhos mais novos, que se acostumaram com o nosso envelhecimento e não notaram que um dia vamos ficando mais débeis, enrugados e principalmente cansados, espantam-se ao saber que algum dia (faz muito tempo) éramos mais jovens que eles. Meu filho caçula, o que é mais agarrado comigo e o único que reconhece que já tenho uma obra literária feita e publicada e que segue os meus conselhos com confiança, disse outro dia quando encontrou uma fotografia minha vestida de noiva, do primeiro casamento: “Mamãe, você era uma menininha quando se casou!” E a única coisa que me ocorreu dizer foi: “É, naquele tempo era assim...”

Este episódio me ensinou uma coisa muito importante e é que os nossos leitores têm o mesmo direito que nossos filhos: de nos acompanharem na nossa maturidade. Não devemos manter nas publicações as mesmas fotografias de vinte anos passados. Ao contrário, devemos vencer a vaidade e atualizar nossa imagem para os leitores e deixar que eles se acostumem com esse crescimento mental que nos orgulhece tanto. Com cabelos brancos ou escuros, ser de idade não quer dizer que somos feios. Quem gostar do texto que lê, vai gostar da imagem (da foto) que vê. Isto deve nos trazer alguma tranqüilidade quando nos encontrarmos cara a cara com os tais leitores.
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*Teresinka Pereira, poeta, conferencista, presidente da Associação Internacional de Escritores e Artistas  - Estados Unidos

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

UMA CRÔNICA DE NATAL

Francisco Miguel de Moura
 Poeta, contista e cronista brasileiro

       
Natal é somente um dia por ano. É festa de presentes. Acontece que, neste tempo de consumismo brabo, não há somente um dia, mas um mês de Natal, para que o comércio venda mais, o governo arrecade o que não conseguiu durante todo o ano e as administradoras de cartão de crédito aumentem o assédio aos pobres e endividados. Deveria ser o dia de Confraternização Universal, do humanismo. Como no Brasil e, de resto, no mundo, o dia da Confraternização Universal é o 1º de Janeiro. Por causa das mudanças do calendário, que pouca gente sabe explicar, é que o ano cristão começa em 25 de dezembro e não no 1º de janeiro, em consonância com o ano civil. Restou conservá-lo no dia considerado do nascimento de Jesus de Nazaré. Em homenagem à família de José, Maria e Jesus, o Natal é o Dia da Família.  Consta que Jesus nasceu numa manjedoura e vieram algumas pessoas visitá-lo, entre as quais os três Reis Magos, mas a tradição não diz de que países eles eram reis. José estava indo, com a família, para o recenseamento obrigatório que o governo realizava em Belém. Era um carpinteiro pobre, não tinha como descansar numa pousada. Chegando a hora de Maria dar a luz, foi parar numa estrebaria onde havia burros, jumentos, ovelhas, aves, pássaros e plantações. Só isto já é suficiente para uma confraternização com a natureza. E que fazemos nós, hoje, por nossa casa? É tempo de pensar na conservação do planeta. Também, a não ser um reduzido número de católicos, ninguém lembra de Jesus nem visita as igrejas ou as “lapinhas” que outrora se faziam, onde as pastorinhas cantavam, alegres, pelo nascimento de Deus Menino.  Quem reinventa um presépio? Quem se lembra dos animais? Quem olha o céu, a estrela, as estrelas? Poucos vão à missa, muitos vão aos shopping-centers para comprar bugigangas para os filhos, e também para os parentes e aderentes, por ocasião da Ceia de Natal. Produtos importados do oriente, da China, principalmente os mais baratos – o que significa que o falso sistema socialista, instalado lá, age como capitalista mesmo, pagando mal aos empregados para exportar mais barato, fazendo concorrência ao verdadeiro capitalismo – o de cá, do ocidente, onde o Papai Noel reina soberano - ele, o símbolo perfeito do capitalismo consumista.
             Natal moderno é tudo de mentirinha, menos a atmosfera comercial que o roi.
         Entrei numa dessas superlojas onde se vendem presentes para crianças e fiquei estupefacto. Como escritor e poeta, sensibilidade aguda, senti-me nervoso e doente vendo todo aquele amontoado de bonecas barby e personagens de toda natureza, inclusive os simbólicos como o homem aranha, a boneca  emília, o visconde de sabugosa, o saci, o lobisomem, dinossauros, astronautas  e não sei mais o quê, tudo empilhado, uns sufocando os outros, ou jogados nas prateleiras, aos montes, caídos estatelados e emborcados. O negócio é dar presentes materiais de pouca valia, e recebê-los. É de praxe, hoje, o “amigo oculto”, brincadeira de antes da ceia de Natal. Faz-se um sorteio de nomes do grupo para ver quem dá presente a quem. E os nomes ficam em segredo para que quem vai receber não saiba de quem receberá, mas quem vai oferecer saiba a quem vai oferecer. Todos oferecem e todos recebem um presente, e as despesas com o item natalino diminuem sensivelmente. Nada muito alegre. Diante da tevê ouvem-se músicas atuais e a conversa continua em tom alto, de maneira que ninguém entenda ninguém, bastando que fiquem com a impressão de que foram ouvidos. Alguns folheiam velhos álbuns de fotografias ou abrem um vídeo no computador para lembranças melancólicas do passado ou para mangar dos feios e das fotos mal feitas - enquanto comem e bebem.
             Eis a noite natalina, que começa com as saudações de "Feliz natal e Próspero ano novo".
            - “Mas todos os começos sãos flores!” - diria minha mãe.
            O dia seguinte é só pra curtir os excessos e a solidão. De tudo sobram algumas fotos de registro, cartões com dizeres sempre iguais recebidos e, no outro dia, jogados na cesta, ou o remoer pedaços de frases ditas por alguém, do que não gostou. Em família há diferenças que nem sempre são caladas, passados os primeiros momentos da chegada à festa.
            No começo, a casa estava cheia. Agora está vazia e, muitas vezes, os próprios corações. Festa de alegria? Nem sempre. Brigas, desgostos, notícias dolorosas de doença ou morte, tudo pode vir à flor da conversa.  Os egoístas não se incomodam com isto. Os poetas é que não se conformam e ficam a escrever o que sonharam – natais tão diferentes, com emoção, lirismo e memória. E chegam a inventar símbolos como o do peru, que, para não ficar triste, morre de véspera.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O FIO DO RISO EM TERESINA - Crônica de Viagem

04 de dezembro, de 2011
 
Com o livro O fio do riso, de Ângela Lago que li na manhã de sábado, do dia 03 de dezembro, de 2011, organizei tantos outros livros e jornais e voei para Teresina. Dormi profundamente e às vinte e três horas ouvi a voz do comissário de bordo a sobressaltar-me: “Senhores e senhoras, sejam bem-vindos a Teresina”.
Desci as escadas do voo 3882, caminhei lentamente até a porta de desembarque e li a seguinte informação: “Quem sair por esta porta não poderá retornar”. Esteticamente, recebi os dizeres como um convite à permanência no local dos rios Poti e Parnaíba.
Pessoas de todas as cores vão para todos os lados, rostos piauienses, cearenses, recifenses, paulistas, goianos e troianos, nem sei quantas almas estiveram diante de mim. Bem que eu desejei escrever um poema, leitor. Porém o fio que tece minhas memórias é mais prosaico.
Aproximei de uma companhia de táxi e comprei um ticket para o Hotel Pio, na Avenida do Centenário e perguntei: “É perto?” A moça não respondeu com palavras. Somente gesticulou com as mãos: “mais ou menos”. Retirei treze reais e entreguei-lhe. Concomitantemente, um estrangeiro pede um táxi para o Bairro Pirajá e paga os mesmos contos de réis.
Olho a moça loira chupando chiclete e a fila andando. Misturo ao estrangeiro com a sensação de ser um personagem de Albert Camus. Noto o fio do riso nos lábios da moça e quase indaguei: “A senhorita está a rir de mim ou do estrangeiro?” Calei, escolhendo seguir o meu destino para regar as minhas rosas.
O motorista, com as mãos na cabeça e com ar de incredulidade, comentou: “nossa, a senhora está somente com esses livros e poderia ir caminhando. Olhe lá o hotel”. Esqueci da elegância e, como sou filha de Deus, soltei um famoso: “Filha da puta”. Só agora compreendi o riso da moça do chiclete. Aprendi que os livros abrem caminhos, desencadeiam risos e a imaginação. Porém, eles não possuem GPS e nem nos mostram quando seremos assaltados propositalmente. O imaginário poético da literatura esconde a realidade, muitas vezes.
Enfim, cheguei ao lugar desejado no tempo de um minuto que custou treze contos. Logo à minha espera estava um menino com cabelos pretos tal como negro preto cor da noite. Intertexto que caso com Negro preto, cor da noite, do poeta Afro-Brasileiro Lino Guedes lido por mim no voo entre Goiânia e Brasília. O menino também não se conteve quando narrei o fato. Desabrochou o fio do riso em Teresina.
Dia seguinte, encontrei-me com uma professora de Porto Alegre com os olhos azuis da cor do mar e a minha narrativa identificou-se com a dela. Soltamos o fio do riso e indignamos com a falta de bom senso da informante do ticket.
Logo mais à tarde, meus pés desfilavam numa palhoça a sentir o gosto típico de um prato à moda caseira. Na palhoça, eu que sou observadora e sensível, li a cor do riso de um moço com a pele marcada pelo sol teresinense, cuja pele dos pés abria-se pela dor, como alguém que bebeu a secura do cruel destino nas ruas ou na beira das pedras. Pensei: “Prosaico era o fio do riso da moça loira chupando chiclete feito vaca no capim molhado, ao passo que poético era o sorriso gordo e aberto do menino magro”. Era um sorriso enriquecedor. Traduzia uma luz germinada do fundo da alma.
Sobrevoei ao retorno de minhas raízes e todas essas imagens foram se mesclando entre a veia lírica das águas e as nuvens do céu. O fio do riso tornou-se pequeno em seu fio narrativo e diante da poesia abraçada ao fio celeste das águas piauienses e o sorriso sagrado do menino cor da noite.
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*Rosidelma Fraga, professora, doutorando em Literatura, poeta     e   cronista, nascida em Mato Grosso, mora em Goiânia - GO.


Comentários (1)
Rosi,
Seja eu o primeiro a comentar sua crônica. Seu texto é maravilhoso típica crônica de viagem, mas de uma viagem inacabada. Se você voltar alguma vez (e acho que vai voltar) ao Piauí, entenderá nossa gente, talvez, de um outro modo. O piauiense é tímido, dizem que até não há gente mais parecida com o mineiro do que um piauiense. Ah! Como gostaria de lhe mostrar o cais do Parnaíba, a Av. Raul Lopes em frente ao rio Poty, o monumento ao Cabeça de Cuia na embocadura do Poty com o Velho Monge. Também, se a gente passeasse pelo Mercado Velho, pela Shopping Cidadão; se a gente fosse a Sete Cidades; se a gente visse um dia a praia de Amarração - uma Copacabana bem maior e mais calma; se a gente pudesse passar um dia num barco que nos mostraria o Delta do Parnaíba... – Ah! como seria bom. Creio que você escreveria um livro de muitas crônicas sobre o Piauí, como, aliás, já fez o Eneas Athanázio, de Santa Catarina. Mas sua crônica, para uma viajante tão apressada e que fez uma viagem tão prosaica quanto a de submeter-se a um concurso, está ótima. Melhor não poderia ser. Deliciei-me com ela, conheço agora, melhor, seu estilo em prosa corrida, sem alinhavo, como você é. Para mim, nada melhor do que esse tipo de conhecimento por dentro, pelo que é, não pelo que poderia ser ou ter sido. TOMARA QUE VOCÊ ABISCOITE O LUGAR DE PROFESSORA NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ  E AQUI VENHA MORAR. Meu coração está pulando de alegria. Tenho certeza, você gostará, de coração, desta terra e desta gente. Abraço bem piauiense
francisco miguel de moura.
francisco miguel de moura
postado:
05-12-2011 15:49:54 


 Links: acesse estes:
http://franciscomigueldemoura.blogspot.com 
http://abodegadocamelo.blogspot.com 

quinta-feira, 10 de março de 2011

LITERATURA SEM FRONTEIRAS - Edson Guedes de Morais

Calendário poético 2011 
       Nilto Maciel

Recebi do poeta Edson Guedes de Morais, que mora em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, uma caixinha recheada de poemas: 2001 – Calendário – Poetas – Antologia (Editora Guararapes). O bloco de janeiro apresenta poemas de Aluísio de Azevedo, Aníbal Machado, Augusto Meier, B. Lopes, Carlos Nejar, Casemiro de Abreu, Edson Guedes de Morais, Emiliano Perneta, Euclides da Cunha, Henrique do Cerro Azul, Homero Homem, João Cabral de Melo Neto, Luís Delfino, Marcus Accioly, Nilto Maciel, Pascoal Carlos Magno, Rubem Braga, Walmir Ayala e Wenceslau de Queiroz. Não relacionarei todos os nomes, para não ser enfadonho.

A caixinha é um livro diferente dos outros. Primeiro, por ser feito artesanalmente: a caixinha (será de madeira?), as folhas (papel) de cada bloco (mês) coladas umas às outras, impressas em computador. Segundo, por ser uma caixa. Terceiro, por ter as capas personalizadas: cada autor tem o nome e uma fotografia na capa (exterior da caixa) de um exemplar, sendo o miolo igual para todos.
Edson constrói artefatos como este há anos. Dedica grande parte da vida a divulgar a poesia (dos outros), sendo ele grande poeta. E também contista da melhor qualidade.
Edson Guedes de Morais nasceu em Campina Grande (PB) em 1930. Poeta, contista e crítico. Autor de Vinte Anos Outra Vez e a Virgindade do Mundo, contos, 1987, e outros livros. Estreou em 1956 com Dispersão, poesia. Seguiram-se A História Verdadeira da Morte do Delegado, poesia-cordel, 1963; Um Homem e os Homens Lá Fora, contos, 1963; In Oito, 1964, poesia; Artesãos do Nada, 1973, romance; Outras Lembranças, Outra Casa, Outros Mortos, 1976, novela; Monstro, Besta-Fera, Como Saiu nos Jornais, 1975, teatro; As Coisas, Assim Como São, Assim São, 1978, teatro. Tem romances e peças de teatro inéditos.
O poeta mineiro-brasiliense João Carlos Taveira prestou-lhe homenagem no artigo “Edson Guedes de Morais, um abnegado poeta nacional”, a seguir transcrito (colhido no site do poeta Antonio Miranda: www.antoniomiranda.com.br):
“O trabalho editorial que Edson Guedes de Morais vem desenvolvendo ao longo dos anos, depois que se estabeleceu de vez em Jaboatão dos Guararapes-PE, tem sido motivo de grande orgulho para todos nós que labutamos nas letras, principalmente na arte do verso.
Que projeto é esse? Talvez o mais original e interessante que já se fez no campo da literatura brasileira, em todos os tempos. Em princípio, parece simples. Mas, na verdade, requer conhecimento, abnegação e, principalmente, paciência, muita paciência, pois, não se pode esquecer, trata-se de algo totalmente artesanal.
Todos os fins de ano, o poeta e contista paraibano/mineiro (que já foi radicado em Brasília, onde fez vários amigos) realiza, com poetas brasileiros de todos os quadrantes, uma verdadeira maratona cultural e artística de alto nível estético e depurado bom-gosto. Ele constrói caixas com cartões de Natal, cujos motivos são poemas do biografado, que, por sua vez, acabam ilustrando o calendário do novo ano que se aproxima. Essas caixinhas, às vezes em papelão, às vezes em madeira, representam, para cada um dos homenageados, uma verdadeira preciosidade. Mas já houve tempo em que os poemas eram veiculados em garrafas de vinho.
Edson Guedes de Morais, com esse trabalho, está prestando um grande serviço à literatura brasileira, pois congrega poetas de todos os estados da federação e os faz veicular no âmbito de sua aldeia. Estou certo de que, se tivesse algum apoio, poderia fazê-lo em âmbito nacional. Para mim, seu mérito maior é fazer o papel que as escolas públicas, ou mesmo as particulares, há muito abdicaram de realizar. Talvez por conta dos facilitarismos eletrônicos ou de uma política voltada para outros valores. Uma pena!
De Brasília, fazem parte do acervo do projeto, há vários anos, os poetas Antonio Carlos Osorio, Anderson Braga Horta, Joanyr de Oliveira, Danilo Gomes, Wilson Pereira, José Jeronymo Rivera, José Geraldo Pires de Mello, o autor deste artigo, entre outros.
A beleza que a poesia busca eternizar deveria fazer parte do cotidiano das pessoas, como fonte de conhecimento e de felicidade pessoal. Quem sabe o mundo não seria menos infeliz e menos egoísta do que tem sido?
 
Por essas razões, rendo minhas homenagens a esse paladino da poesia brasileira, que, ao completar 80 anos (23/1/2010), continua dando lições de humildade e sabedoria. E, ao dar continuidade a esse projeto pessoal, demonstra que ainda está longe qualquer sinal de cansaço. Brasília, 25 de janeiro de 2010”.


Nilto Maciel:
Transcrevo, também, um de seus poemas (colhido no site do poeta Antonio Miranda):

TEMPO E CASUALIDADE

Nenhum deus me fez ou sabe.
Houve um gesto; depois,
a involuntária duração do gesto
como um punhado de areia
que se atira para o alto.
O fado é não podermos ver,
a cavaleiro, nossos próprios passos,
esquecermos depressa a semeada
e este germinar à nossa frente.
Muito antes de mim, depois,
a folha, o vento e o movimento
da folha sobre a estrada pelo vento.


Torno público o meu agradecimento ao poeta (não conheço endereço eletrônico dele) pelos muitos poemas meus publicados em caixinhas e outras coisas feitas por ele. Fortaleza, 4 de fevereiro de 2011

 

Comentário:


CHIICO MIGUEL...
 
Caro Amigo Nilto Maciel, Diante da matéria que você dedicou a Edson Guedes de Morais, eu fico sem palavras. Há muito tempo que quero escrever algo consistente sobre o grande contista, mas me sinto pequeno. Sobre o poeta fiz uma postagem, arremedo de biografia e antologia, num dos meus blogs há algum tempo mas devia ter feito muito mais. Edson Guede de Morais é grande em tudo: literatura, divulgação, amizades. Divulga os amigos contemporâneos como ninguém, por sua própria conta e risco. E, de certa forma, se esconde como escritor. Diz a Biblia que "vaidade das vaidades tudo é vaidade". Mas, eu quero acrescentar: Bendita a vaidade que opera com as boas obras dos outros, especialmente a arte, sem esperar nenhuma recompensa: a isto se chama generosidade, bondade, grandeza de espírito. Edson é assim: portador de toda essa fortuna e ainda é grande escritor. Não tenho palavras. Quero registrar aqui, porém, uma lembrança: o belo dia em que nos encontramos en Recife, quando ele foi visitar-nos, eu minha mulher, juntamente com o colega poeta Jaci Bezerra. Guardo a foto com carinho, seu nome e sua obra também. Abraços aos amigos, a eles dois e a você, Nilto.                                            Do poeta Chico Miguel

domingo, 19 de dezembro de 2010

CRÔNICA DE NATAL

Texto baseado em Um Conto de Natal de Charles "Boz" Dickens (1812-1870)

Raymundo Netto* 


Não sei vocês, mas eu nunca gostei do Natal. Acho uma data muito triste, deprimente, talvez por isso, um dia, decidi que só me casaria se fosse num Natal. Assim o fiz!

Nunca escondi de ninguém esse meu desânimo natalino, a vontade de fugir de festinhas de confraternização, amigos secretos, jingle bells e coisas assim. Penso que, justamente por isso, é que me acontecem coisas como a que revelarei agora para vocês.

Uma tia, semana passada, trouxe a minha casa, emprestado, um relógio de parede - com gabinete de carvalho escurecido, pêndulo dourado e umas raladurazinhas no mostrador de algarismos romanos - que pertenceu a meus avós.  Desde menino era louco por aquele relógio... Pois bem, na madrugadinha, acordei com o seu sonoro gemer de horas. Na casa pequena o som reverberava. Como parecesse não parar nunca, pensei: "Será que travou?"

Ao chegar ao corredor, o susto: uma figura esfumaçada, de olheiras sulcadas e cavanhaque revoltoso, saía da portinhola de vidro do relógio e argentava, num clarão, a sala:

- Ebenezer! Ebenezer! - berrava em tom gutural.

- Ebenezer? Está falando comigo?

- Sim, seu tolo insensível! Não lembra mais de mim? Marley, Boz Marley!

- Não, seo Boz, pode voltar para o seu relógio... Ligação errada!

Ele não me dava ouvidos, ou não os tinha, e continuava como numa cantiga de grilo:

- Ebenezer, eu sou o espírito do Natal e o levarei para conhecer o Natal do passado, do presente e do futuro. Você precisa se arrepender já, enquanto ainda há tempo, senão...

Arrependimento? Nem precisava, coleciono tantos, tantos... Mas ele não me ouvia. Enlaçou meu pescoço com as pesadas correntes que arrastava e, como por encanto, tudo em minha sala pôs-se a desaparecer: o sofá velho (este, eu nem liguei), a tevê, a cadeira de balanço e até a empoeirada árvore de natal onde, desde o ano passado, o pisca-pisca deixara de funcionar. Tudo desapareceu dando lugar a calçadas, prédios e um renque de postes: estávamos na rua!

O Natal do passado

Reconheci o Palacete de Carvalho Mota, antigo prédio da Inspetoria das Secas: era a rua General Sampaio, centro da cidade.

Percebi que, na esquina, um pequeno terreno amurado atraía várias crianças. "O que está acontecendo ali?", perguntei ao Boz. "Você quer saber? Vamos lá, então." -, arrastou-me.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

EM UM MOMENTO QUALQUER



Rita de Cássia Amorim Andrade
              (Crônica)


Do outro lado da vidraça o vento sopra e embalança as águas que escorrem do alto. A tempestade se anuncia pelos relâmpagos a cortar os céus.

Nas quatro paredes do meu escritório, onde me encontro, ressoa o instrumental de Richard Clayderman “My Way” que se perde nas profundezas do meu ser.

Em frente ao computador tento escrever estas linhas e recordo-me de momentos não muito distantes em que esse som maravilhoso atravessava o espaço e chegava àquela rua larga onde um anjo tão belo podia ouvi-lo e retorná-lo.

No meu coração ecoa o grito de saudade daquela criação divina, o arcanjo que renegou um Deus Maior para cair nas graças de um deus pagão.

Não posso ignorar os momentos em que me fiz mãe-terra para que aquele anjo nos meus ombros se recompusesse das lágrimas derramadas. Recolhia essas gotas salgadas e aguava uma bonita violeta de cujo alimento tanto se fartou que se transformou de florzinha lilás para flor roxa do maracujá. Não nego que delas desviei algumas gotinhas para alimento próprio, erva daninha que sou.

O meu anjo não é um anjo qualquer. Não é como os anjos de outros poetas. É um anjo que derrama pela vida o amargar de ser humano. Um anjo que veio ao mundo terrestre e esqueceu que era celeste. Hoje, é terra, veio a terra, passa pela terra, semeia a terra.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Dª. NEVINHA – UMA PROFESSSORA PICOENSE

O antigo Grupo Escolar "Coelho Rodrigues", hoje abriga o Museu Ozildo Albano

Francisco Miguel de Moura*

Não sei por que tenho sido solicitado, nos últimos tempos, a escrever sobre pessoas com quem não tive ligação estreita, parente e ou não. O primeiro foi meu tio Euclides Borges de Moura. Agora é a vez de Dª. Nevinha. Não sei de seus dados biográficos, mas a Profª Maria das Neves (Dª. Nevinha), que por conta do casamento ganhou o sobrenome dos Santos – uma das mais tradicionais e importantes famílias de Picos – era baixinha, morena e bonita, por isto, no início, pensei em tratá-la carinhosamente de professorinha. Conheci-a vagamente, visto que eu morava no interior, mas deu pra entender que se tratava de uma pessoa de muita personalidade. Vendo-a atravessar as ruas da cidade, com aquela segurança de quem sabe o que quer e o que faz, ninguém poderia pensar de outra forma.  Esposa de Adalberto de Moura Santos (Prefeito de Picos de 1938 a 1945), mais conhecido como Bertinho Santos, um dos Prefeitos que, a seu jeito, amava muito aquela cidade, por isto queria vê-la sempre limpa. Chegou ao exagero de proibir que os “feirantes” atravessassem as ruas centrais que cruzam com a Praça Félix Pacheco, edificada em seu próprio mandato, logradouro que ficou famoso naquele tempo, quando os jovens da melhor sociedade passeavam por ela todas as noites de verão – costume dos maiores burgos do Piauí, inclusive a capital (Teresina). Não sei se como anedota, ou para provar a energia e dureza de Bertinho Santos no comando da municipalidade, contam que certo dia seus guardas impediram o próprio Coronel Francisco Santos, seu pai e maior chefe político daquela região do Piauí, de passar a cavalo, vindo da fazenda para sua própria casa, aliás, um casarão que ficava em frente à referida praça.

Mas estamos a falar é de D. Nevinha, senhora de respeito e cerimônia, não obstante ser um pouco morena para a cor da pele da maioria da população de Picos, especialmente a família Santos. E por quê? Pelas qualidades de inteligência e educação. Ela está entre as três primeiras professoras formadas a irem lecionar em Picos, numa escola oficial (Grupo Escolar “Coelho Rodrigues”, fundado em 1938, cujo prédio ainda está de pé e conservado). Iniciaram a educação primária nos moldes mais modernos do Piauí, naquele tempo, pois vinham de ser formadas pela Escola Normal de Teresina. Falamos dos anos 1930 e começo dos 1940. Sua condição e a cor de sua pela não foi nenhum obstáculo para esposar o filho querido do Coronel Francisco Santos, o Chefão de Picos, nos anos da Ditadura de Getúlio, pois não era Bertinho Santos nenhum preconceituoso neste sentido. E se havia preconceito na cidade, nunca ninguém soube. Aliás, Picos ficou conhecido como um lugar de muita liberdade, desde os primórdios de sua formação agrícola, onde o latifúndio não prosperou e isto veio a contribuir para uma certa igualdade de classe.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

DE TUDO UM POUCO

Francisco Miguel de Moura*


           Uma crônica se faz do nada, o nada que é tudo, a vida, o amor, a paixão e até a paisagem. Porque a paisagem é a natureza, o meio-ambiente, a vida, o ar que respiramos. Além da paisagem humana.  Por falar nisto, ontem à noite estávamos sentados no jardim, reunidos em família, uns riam, outros falavam de tudo. Minha mulher riu de mim, que de vez em quando me levantava para aliviar um pouco a dor na coluna. Repetia a dose, mirando meu filho Júnior, depois me disse: Ele não achava graça nenhuma do que sua mãe ria. Por que será que não ?

            Talvez pensasse no que seria amanhã: Como o pai, ele. Ela também por respeito, é certo, parou de rir. Chegou um amigo, quebrando a conversa familiar descontraída. E então todos foram prestar atenção ao seu Antônio, cunhado do Fritz, que também chegava para pegar umas coisas de nossa casa e levar para a sua, visto que já estamos em trabalho de mudança para um apartamento. Não me admiro porque minha mulher ria. Ela ri de tudo, quando está bem. Eu também rio de tudo.

            A palavra de Júnior foi cortada com o advento do amigo chegante. Recordo-me que ele dizia: “Até uma revista velha, já lida, amassada, Ana não deixa ir para o lixo”. Umas fotografias que a quase ninguém interessa. Daqui a pouco, quem quer mais saber delas?Economiza-se espaço, espaço. A vida moderna.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

ALMA PERDIDA – NA BIBLIOTECA

Crônica
ALMA PERDIDA  na biblioteca

Nilto Maciel*


Recebi exemplar autografado do novo livro de Everardo Norões: “Para o escritor e amigo Nilton Maciel, este Poeiras na réstia, pó que somos,  às vezes réstia... com a admiração e o abraço de (assinatura). 02.VIII.10”. Nem prestou atenção à grafia de meu nome. Não faz mal: talvez não haja outro Nilto Maciel.

Há alguns anos recebo livros. Quase todos de escritores, que querem uma resenha, um comentário, um elogio. Algumas editoras também mandavam, desde os tempos da revista O Saco. Para divulgação. À frente da revista Literatura, que durou dezessete anos, essa avalanche de publicações quase me sufocou. Cheguei a alugar um apartamento, em Brasília, só para abrigar meus hóspedes de papel. Uma loucura, como dizia minha mulher. E dava ultimatos, diariamente: Ou eles, ou eu. Terminei sem ambos. Ela não aceitava dividir o restrito espaço do mundo com aqueles seres inanimados, empoeirados, sem atrativos: Como você pode ser tão idiota, leitorzinho. Ela talvez quisesse me chamar de leitãozinho. E me ver assado, para me comer melhor.

Também meus amigos, que são todos escritores (nunca tive amigos que não fossem escritores), me chamavam (e chamam) de idiota: Como você pode perder tempo lendo tanta porcaria e, ainda por cima, dando divulgação a ela em revistas e na Internet? E levavam (e levam), por empréstimo, o que julgam não ser porcaria. Dia desses fiz um balanço: dos vinte mil livros que ocupam (ou ocupavam) as estantes de minha mansão, menos de um por cento vale a pena ler de novo. Já me levaram Cervantes, Camões, os sermões de Vieira, os amantes de Lady Chatterley, os amores de David Herbert Lawrence.

Certamente não terei tempo de ler toda a minha biblioteca. Levaria uns duzentos anos. Mas tenho sido educado: leio as abas, o prefácio, alguns poemas, contos, páginas, e escrevo ao doador do livro umas palavras de agradecimento. Não prometo resenha, artigo, estudo. Não sou jornalista profissional, não me pagam para escrever. Não disponho de muito tempo para leituras desse tipo. Em compensação, desde 1974, data de minha estreia como escritor, envio, pelo correio, exemplares de meus livros (acho que são vinte) aos amigos escritores. Trinta e seis anos remetendo livros. Uns poucos me dirigem agradecimentos. Se todos eles leram meus livros, não sei. Alguns leram. Poucos escreveram artigos e ensaios. São escritores maravilhosos, críticos excelentes, leitores apaixonados: Adelto Gonçalves, Adriano Spínola, Aíla Sampaio, Angelo Manitta (italiano), Artur Eduardo Benevides, Astrid Cabral, Batista de Lima, Caio Porfírio Carneiro, Carlos Augusto Silva, Carlos Augusto Viana, Carmélia Aragão, Celestino Sachet, Chico Lopes, Dias da Silva, Di Carrara, Dimas Macedo, Donaldo Schüller, Eduardo Luz, Enéas Athanázio, Erorci Santana, Fernando Py, Foed Castro Chamma, Francisco Carvalho, Francisco Miguel de Moura, F. S. Nascimento, Henrique Marques Samyn, Inocêncio de Melo Filho, Jaime Collier Coeli, João Carlos Taveira, Jorge Pieiro, José Alcides Pinto, José Lemos Monteiro, José Luiz Dutra de Toledo, Laene Teixeira Mucci, Liana Aragão, Moreira Campos, Nara Antunes, Nelly Novaes Coelho, Nicodemos Sena, Paulo Krauss, Paulo Nunes Batista, Ronaldo Cagiano, Salomão Sousa, Sânzio de Azevedo, Sérgio Campos, Tanussi Cardoso e Valdivino Braz. Alguns nem conheço ou conheci (a morte os levou cedo). A todos sou muito grato.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

FILHOS, NETOS & AVÓS

Crônica familiar       

Francisco Miguel de Moura*


Para os pais e avós, nada é mais reconfortante do que falar com os filhos e netos, ouvi-los, assim como conversar sobre eles. Eu, com 77 anos, tenho 5 filhos e 10 netos, todos umas gracinhas de Deus. Quando a gente diz “tenho” é só uma maneira simples de expressar ao alcance de todos, tendo em vista que, depois de uma certa idade, são eles (filhos e netos) que nos têm.

Desta vez vou referir-me apenas aos netos menores e que moram mais perto de mim: Sarah, Sahvyc e Franz, filhos de Fritz Miguel Morais Moura e Leina Sabino Moura. Aproveito a oportunidade para fazer a retificação pública de uma omissão cometida no meu livro “Fortuna Crítica”, Edições Cirandinha, 2008, pág. 22: Fritz Miguel Morais Moura é casado com a senhora Leina Sabino Moura. Infelizmente, foi engolido pelo autor da apresentação, digitadores, revisores, revisor final (eu) e pela gráfica, o nome da esposa de Fritz: Leina Sabino Moura. Agora, a verdade está posta. 

Difícil não é reconhecer o erro, pedir desculpas ou perdão. Difícil é apagá-lo. O erro é indelével, principalmente em arte gráfica, em edições de livros e quejandos. Nunca será consertado totalmente, apenas se remenda. Por isto é que não devemos errar.

Mas, estávamos a falar de amor, paternal, filial, do amor aos netos. Estamos falando principalmente da relação de ternura entre avós e netos. É muito gratificante quando os próprios pais (nossos filhos) dizem que seus filhos (nossos netos) se parecem com os avós, nisto ou naquilo. Nem que seja para apontar um defeitinho qualquer, como: “Veja o jeito do menino olhar, vejam os cabelos dele! É o avô todinho.” No meu caso, dizem que o Franz se parece muito comigo, especialmente quando sai caminhando e balança só um braço. Aliás, há uma versão de que os netos se parecem mais com os avós do que com os próprios pais. Se a genética comprova isto, eu não sei. Mas, pela observação comum, vemos essa tendência claramente.

Corroborando tudo isto, lembramos do dito popular: “Quem tem filhos, tem cadilhos”. Que quer dizer a palavra cadilho?  Quando minha mãe cuidava do conserto das redes de dormir, dizia-nos: “É preciso consertar os cadilhos”. E eu a observava enfiando os cordões pelas “casinhas” nascidas do pano, estirando-os e prendendo-os num só urdume, o punho. Cadilhos eram aquelas peças e o encadeamento dos cordões ao punho, por onde correria a corda até o armador. Nunca vi imagem tão perfeita para retratar a família.  

A família é isto. E dela tiramos lições profundas de vida. E eu, como escritor, costumo arrancar crônicas da vivência e das conversas com nossos filhos e netos. Hoje, tenho uma dessas para repassar ao leitor. É da minha neta Sahvyc, que, segundo dizem, parece muito com a vovó paterna (Mécia). Um dia destes, a gente ia no carro do pai dela, Fritz, e todos conversavam animadamente. Foi quando este avô, que pensa que sabe tudo, recebeu uma lição. Sahvyc, com a palavra, soltou a seguinte frase:

      - Eu sei como vai ser meu futuro.
      
      - Como, minha filha? O futuro é escuro, ninguém sabe nada dele – eu disse.
     
      - Não, vô, eu sei do meu, eu sei, eu sei.... – Ela gosta de repetir assim.
     
      - Pois diga. Que é que você sabe do seu futuro?
      
      - Ora, vô, eu sei que quando eu crescer não vou pegar mais palmadas. A Sarah cresceu e não apanha mais. Só eu e o Franz, que é menor que nem eu.

O avô caiu na gargalhada. E conscientizou-se de que os netos sabem muito mais que os avós. Eles são muito bons. Umas bênçãos de Deus.
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Francisco Miguel de Moura, funcionário aposentado do Banco do Brasil, escritor brasileiro, membro da Academia Piauiense de Letras e da Associação Internacional de Escritores e Artistas (IWA - sigla em inglês), com sede em Toledo, OH, Estados Unidos da América.
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