sexta-feira, 14 de maio de 2021

 

            PROFESSORA ESTUDA “POESIA (in) COMPLETA, ”DE FMM

                                                                Professora Maria Figueiredo dos Reis*

          Apresentar uma obra requer total conhecimento da mesma. Para conhecer um livro é preciso não somente uma boa leitura do texto, mas várias leituras do texto. Assim, para ler verso por verso, poema por poema de “Poesia (in) Completa” de Francisco Miguel de Moura, muitas horas foram necessárias. Mutas horas de leitura, tempo indefinido para estudar e realizar um trabalho crítico que estivesse à altura da obra, à altura do imortal. Quase impossível cumprir esta tarefa dentro de um espaço de tempo que nos foi determinado. Contudo, aqui estamos, com estas breves anotações, que esperamos traduzam nossa opinião sobre a poesia a poesia de Chico Miguel, e conduzam os leitores e críticos a se aprofundarem mais na análise de “Poesia (in) Completa”.

          Apesar de sabermos que esta obra já é, de certo modo, uma antologia organizada pelo próprio Autor. de seus livros publicados e por publicar, completada nossa leitura, decidimo-nos por uma seleção de alguns poemas que consideramos, segundo nosso entendimento, mais sonoros, mais significativos, mais visuais, mais líricos, mais filosóficos, mais simples... mais...

          No itinerário poético de Francisco Miguel (1966-1996 anotamos alguns aspectos puramente formais quanto à estrutura do livro.  “Poesia (in) Completa” é composto de oito livros, mais a primeira parte de uma outra obra ainda sem título definido. Constitui-se de cerca de trezentos poemas. Deste total verificamos que mais de cento e setenta compreende a primeira parte inicial do livro. Das demais obras já publicadas, a seleção antológica varia de oito a quinze textos, não ultrapassando os oitenta e dois ao todo, Na ordenação do Autor, os primeiros textos estão colocados no final do livro e os últimos iniciam a obra em si, como no preceito bíblico – os primeiros são os últimos e os últimos são os primeiros.

          Queremos destacar, de início, uma observação de cunho estético. Trata-se das iniciais dos versos. Nos dois primeiros livros – “Areias” (1966) e “Pedra em Sobressalto” (1974) – o Autor segue rigorosamente o uso da maiúscula, segundo as normas da gramática. Já na obra seguinte – “Universo das Águas” nenhum princípio gramatical é observado quanto ao uso da maiúscula, ao contrário, todos os versos são iniciados por minúsculas. No entanto, nos dois livros – “Bar Carnaúba” e “Quinteto em (mi)m)” (1986) – volta o poeta a seguir as leis gramaticais em relação ao emprego das maiúsculas, inclusive nos “Sonetos da Paixão” (1988). A partir de l991, com “Poemas ou/tonais”, Francisco Miguel de Moura retoma o emprego da maiúscula no início dos versos. parece-nos que de forma definitiva.

          Não cabe aqui explicar as razões do poeta, classificado por Nelly Novaes Coelho como pertencente à geração 60. Sabemos que o Modernismo, nascido com a Semana de Arte Moderna, constituiu-se de gerações sucessivas de 22, 30, 45, 60 etc. e que, segundo Péricles Eugênio da Silva Ramos (1):   Com o Modernismo estamos em pleno reino da liberdade de pesquisa estética, isto é, cada poeta estabelece as suas próprias regras, ou adota as que melhor lhe pareçam, sem imposição prefixada por escola”.

          “Poesia (in) Completa” é um marco n itinerário poético de Francisco Miguel de Moura e compreende um espaço cronológico de 30 (trinta) anos. E o tempo, a problemática do tempo, do tempo existencial, do tempo emocional, do tempo abstrato, do tempo neutro, do tempo indefinido, é o elo, a corrente que percorre todo o corpo da obra. O tempo hoje, amanhã, ontem; o tempo presente, o tempo passado, o tempo futuro; um tempo antes, um  tempo depois; um tempo antes,  um tempo depois, um tempo nunca, um tempo sempre longo, breve, aqui, agora, distante;  um tempo concreto, real, imaginário...

          O livro do Eclesiastes nos fala de um tempo para cada instante da vida. Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus:

          “Tempo para nascer / e tempo para morrer; / tempo para plantar/ e tempo para colher / o que foi plantado. // Tempo para procurar/ e tempo para perder;/ tempo para ganhar / e tempo para jogar fora. / Tempo para rasgar / e tempo para construir. / Tempo para calar/ e tempo para falar. Tempo, etc...

          Na poesia de Francisco Miguel, o tempo nasceu com seus primeiros versos e continua sendo plantado e cultivado em toda sua obra, pois, para o Autor de “Poesia (in) Completa”, o tempo não se completou, portanto ainda é tempo de falar, falar do hoje, do amanhã, do ontem:

          “o hoje é tudo que se tece /que bem tecido é dor, sabor e prece/ em indistintas simetrias. // o amanhã não é teu dia / se hoje não tiveres empatia / com o razoável mundo e o sem razão.// o ontem não tem clave se te agravas / em sentimento de ódio e entropia // como veio // de teu canto, em toda a via”. (O Hoje).

          É tempo de falar do passado, do presente e do futuro, do sempre. É tempo de “inventar um tempo vivo”, um “destempo” e seguir “ferindo o tempo” e de alcançar um tempo neutro.

          “o ntem foi um tempo emocional. / e o passado seria imortal// ontem, eis o tempo que fica / como fundo do tempo / e sem rival” (O Ontem) // o hoje se esfuma / o ontem se depreda / o amanhã, quem sabe?”// o tempo neutro / martela no infinito” (E Sempre).

          “poeta, recia / sem receio /- e recria / teu inteiro futuro //quando hoje não for mais / essa será a glória/ do teu dia” (O Amante). 

a vida não tem hora / nem a dor pede bis // ontem? amanhã? / só o agora / o futuro é um giz “(Destempo).

          “fecho meus olhos / pulo o presente / cuspo no passado / nem sempre escuro // invento um tempo / vivo / que não tenha furo”. (Ferindo o Futuro).

          Como a sucessão de elos de uma corrente infinita, o tempo vai se repetindo, como referencial da continuidade da vida, da arte, dos versos, da poesia imorredoura. Ele está presente na manhã, na tarde tropical, na “hora da noite imóvel”, na noite profunda, nos “cem anos do poema perdido”, no “torto da linha breve”, na noite abreviada ao amanhecer”, no pretérito perfeito, no dia inteiro, na manhã “sem pauta”, “na mãe que não vem nunca” e até “depois da morte do tempo”, ou ainda, antes do amanhecer.

          Todas estas breves citações foram colhidas nos primeiros textos de “Poesia (in) Completa”. Continuamos nesta mesma pesquisa e encontramos inúmeras outras formas de expressão/tradução do tempo, em todas as demais obras que compões esta Antologia. Assim, por exemplo, em “Arfogo”, na parte denominada “Canto geral do Brasil”, o poeta nos fala sobre “a manhã do novo Brasil”; nos “Poemas/ou/Tonais”, no poema “Era tempo de pintar”, o poeta Francisco Miguel canta também “o tempo de não perguntar” e o “tempo de dizer adeus”. E em seus “Sonetos da Paixão” ele confessa, no oitavo soneto:

                    “Quando eu uso o presente, meu amigo,

                     é porque vivo ainda no passado”.

          E no oitavo soneto já havia escrito:

                     “Renasço com as manhãs de sol no campo

                    e morro à tarde, à sombra da tristeza.”

          O tempo é, igualmente, cantado em quase todos os poemas de “Qinteto em (Mi)”, onde a sonoridade musical, recurso rítmico dos mais utilizados por Francisco Miguel, predomina em cada verso, em cada rima, em cada sucessão de sons semelhantes. Apenas um exemplo:

          Trabalhei, trabalhei: / - Há outras formas de amar? / De fora para dentro – jardim, / de dentro para fora: - olhar. / Os ventos da noite vieram / vindo... E as pessoas mais bem vestidas / da cidade levaram as telhas de cor, / o vidro do espelho, as portas partidas: / - janelas do mundo em minha busca. // Meu tempo de voar se foi: - Caminho para dentro até o fundo / comno quem caminha ao sol posto.” (A Casa).

          Em “Bar Carnaúba”. o tempo se diz presente/passado, marcando um momento mítico da nossa história, quando o Autor evoca, num lamento, a magia de “Sete Cidades” no soneto “Tempo e Pedra”: - “No meio, solidão, silêncio e mata. / E pedras: Foram gente e são granito. / O leve da manhã ao nosso olfato / cai de prece e se eleva no finito.”

          E, então, no seu “Poema Ontológico” do “Universo das Águas”, Francisco Miguel  nos antecipa um tempo pessoal, um tempo em que o “eu” lírico faz uma despedida, e, como um “pássaro desamado”, “voará na busca dos infinitos eros”:

          “quando o dia da noite / descer/ invadirei a mim / mesmo/ perdido // quando a noite / descer / deixarei de ser / o homem sem terno / e sem botinas.” (Poema Ontológico).

          Há, em “Pedra em Sobressalto”, um momento de sol, de céu pleno de lirismo, de perfume, de cor, de aves e árvores, de ramos e flores:

          “muito azul no dia /tudo existe em mim, / sem expressão. // Orvalho, / manhã firme, / aves nos ramos, / flores virgens, cores:  / - Jogo os braços no ar. // Naquele instante / o céu diminuiu”. (Momento).

          O tempo distante de “Areias” e contado por um “Relógio”. Relógio antigo, “relógio de meu avô”; relógio de antes “que foi de meu bisavô”; relógio de sempre “que era do meu trisavô”. Relógio de um tempo passado, de um tempo presente, porquemeu tempo mal começou”!

          “Matas segundo a segundo,

           dias, horas, meses, anos.

          Vejo-te nas agonias

          de quem procura vencer

          o tempo com galhardia,

           vendo tantos desenganos”.

         

           Relógio de meu avô,

           que foi de meu bisavô,

          que era de meu trisavô,

          mata teu tempo calado.

         

          Embala todos os netos:

          Eles querem liberta-se   

           da ignorância do tempo.

          Deixa que o tempo se vá.” (Relógio).

          Falemos pouco da riqueza de estilo de “Poesia (in) Completa”. São inúmeros os recursos utilizados por Francisco Miguel de Moura para criar sua linguagem poética. Linguagem onde a função metafórica, o processo rítmico, estrato fônico, aspecto acústico são compostos, principalmente, através do jogo de sons, da disposição ou combinação de palavras.

          É Mallarmé quem afirma; “A poesia se faz com palavras e não com ideias”. É o poder da palavra, e o processo de repetição do jogo e a montagem de palavras que dominam o verso do Autor. Assim, são muitos os poemas dessa “Poesia (in) Completa” em que as figuras de harmonia e repetição constroem as metáforas sonoras, as aliterações, as anáforas, as assonâncias, as simetrias, as paranomásias, como nos poemas “Operário” e “E sempre”;

          - “de mim próprio me ponho / jeito que a forma da aranha / vai tecendo o corpo / a cuspo e custo de poesia e sol (...) sou escravo: se descrevo / e teço fim de minha linha /em livre esboço-ideia // sofrer diário: há sombra de sobra / de fios que não sobem aos céus  / descem ao coração dos homens”. (Operário).

          “não há sempre / e há o sempre / sempre/ sempre /não é o começo / não é o fim /não é processo // é um tempo sem tempo / nem tem/porão / nem temporal // sempre / semper / sem / per - / seguição.” ( E Sempre).

          Esta perseguição sonora, esta busca incansável pela musicalidade é uma constante em toda a poesia de Francisco Miguel, inclusive em títulos de obras como “Quinteto em (mi)m  e “Poemas Ou/ tonais”. Manuel Bandeira, em seu “Itinerário de Passárgada” confess: “na verdade, faço versos porque não sei fazer música”. E, como foram musicalizados seus poemas. Sabem que a poesia guarda muito da música em si, como é fácil perceber-se nos versos de “Mão, Mesa, Musa” e “Respostamor”:

          a mão se põe sobre a mesa / mole, macia, de musa / como se a dona adormecida / longe, bem longe, orasse o’ deus...” (...) uma joia sem par, de par em par / aberta, e que luzes!  que luzeiro!” // era um dia de muito andar – vazio! / vazia mão, vazio o anel, vazio o dedo / sobre outro dedo em riste fez-se a cruz / de juras e silêncios e segredos.” (Mão, Musa, Mesa).

          onde o contrário de mim? / onde o além de uma luz? onde o contrário do rio? / na escuridão os amanates / não são nem feioe nem frios // para fugir da lide / o amor é tudo que é leve / no torto da linha breve”. (Respostamor).

          O poeta trabalha a palavra com tal poder, domínio e mestria que vai construindo, aos fragmentos, palavras/frases/títulos/versos/poemas.           Finalmente, ainda brincando com as palavras ele elabora sua poesia concreta – poesia que se expressa pela disposição das sílabas/palavras e pelo valor da palavra em si. Aqui apena um exemplo:

                    “todas as pátrias me recusam           

                    todos os antros me descobrem

                                de sapo

                                 es capo

                    escondido entre pedras

                                 e sujos

                    sou universal, pois, pois

                    s

                    a

                    l

                    t

                    o

                                        e fujo”       (Expatriado).

          É tempo de concluirmos estas poucas anotações. Antes, porém, queremos ressaltar, ainda, a versatilidade construtiva da poemática de Francisco Miguel de Moura. Além da variedade metro, de rima, e de ritmo, de forma, que enriquece sempre mais a sua poesia, podemos destacar: o uso do verso livre, ao lado do verso rimado; a presença do soneto clássico lado a lado com o soneto moderno; a suavidade da poesia lírica, em contraste com o poema concreto. E, mais, o poema piada, paralelo ao poema histórico que se destaca par e passo com a poesia do cotidiano. Assim, são muitos os opostos que se combinam e juntos controem esta “Poesia in Completa”.

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 *Professora Maria Gigueiredo dos Reis, lecionava Literatura, na Faculdade Católica de Filosofia de Piauí (FAFI), quando eu ali fazia meu curso superior. Ela me incentivou muito a escrever crítica, especialmente quando falava que gostaria de escrever um livro sobre O. G. Rego de Carvalho, o então escritor mais famoso do Piauí, naquele tempo. E de fato terminei escrevendo "Linguagem e Comunicação em O. G. Rego de Carvalho" (FMM)

         

 

 

 

 

         

 

 

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