quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O MÉDICO DAS FLORES - CONTO

Rejane Machado*

Era uma espécie de carruagem antiga. Parecia mesmo é com belo cavalinho! Branco, manchado de marrom e café-com-leite, um toc-toc macio no andar, o carro nem balançava. Devia ser muito gostoso viajar ali dentro.

As crianças correram e se escon
deram atrás de uma moita de azaléias, para deixar passar o estranho veículo. Matheus e Rebeca fizeram silêncio. Por sorte, as meninas pequenas estavam do outro lado, colhendo flores secas, para mamãe fazer um sachet perfumado. Era só colocar tudo dentro de um saquinho feito filó, amarrar uma fitinha, enfeitá-lo com fitas coloridas, e temos um delicado presente para um aniversário de última hora, quando não há tempo para ir às lojas.

A estranha carruagem parou mais abaixo, na curva do caminho. Dela saíram duas figurinhas encantadoramente vestidas com traje fora do comum.

Raquel veio chegando bem devagar, colocou um dedo na boca. Falou baixinho: Caluda! Os dois meninos nem se mexeram.

Um dos homenzinhos, com certeza o mais velhos deles, a quem os outros chamavam Petrus, trazia nas mãos uma maleta. Usava óculos redondos, sem aro, sua barba era imensa, parecia Ter muita autoridade. Seria o chefão daquele bando. Na aba do chapéu escuro desenhava-se uma cruz branca. Virou-se para um auxiliar e lhe recomendou:

- Venha, Alphonsus, não esqueça de trazer o material.


Será que ele agüenta com aquela caixa? – os meninos queriam saber.

Raquel tornou a levar o dedo à boca: psiu! Se eles nos perceberem, poderão ir embora! – falou baixinho.

Por nada deste mundo eles queriam perder aquele espetáculo. O que aconteceria agora?

Os dois homenzinhos se dirigiram, rapidamente para
uma moita de roseiras, a um canto do jardim. Petrus era dono de uma voz grossa, autoritária:

- Aqui, rápido! Venham! Alguém vá chamar Violet!

Do meio das touceiras vão saindo seres encantadores. Todos pequenino,
Vestindo roupas muito coloridas, chapéus incríveis! – as crianças ficaram encantadas. Raquel teve muita dificuldade para contê-las, queriam ir para o meio deles, conversar, brincar. Explicou-lhes mais uma vez:

- Psiu, calma! Não façam ruído. São criaturas da natureza. Se nos descobrirem, podem desaparecer rapidamente! Quietinhos! – vamos observá-los.


Quem seria Violet?

Não precisaram esperar muito para saber. Do meio da moitinha saíram seis jovens gnomos. Espertinhos, transportando uma cadeira bem pequena. Gritavam ao mesmo tempo:

- Venha rápido, Violet, Petrus falou que o caso é grave.

Atrapalhando-se nas suas perninhas curtas e gordas, ela apar
eceu; rosto
Gorducho, corada, óculos de arco de tartaruga, um coque nos cabelos, no avental azul claro uma cruz branca, igual à da do jaleco de Petrus. Bonita figura, a voz muito fininha e doce:

- De que se trata? Para que tanta pressa?

Petrus, o velho, - a barba a balançar de um lado para outro, veio correndo e quase escorrega no limo das pedras, preocupado e aflito, arrastando-a para um canteiro de roseiras. Com sua voz abaritonada, informava:

- O caso é muito grave, muito grave!


- Petrus, eu não posso correr tanto assim, minhas pernas não agüentam! já tenho duzentos e cinqüenta anos!...

Ele riu: Ho, Ho, Ho! – escondendo idade, hem, minha cara Violet? Que bobagem, isto não é idade avançada! Fiz 320 anos na semana passada...

Afinal de que se tratava? Violet queria saber logo.

- Ela desmaiou...

- Quem desmaiou?

- Uma rosa chá...

Ela ficou muito admirada: Ora, Petrus, a vida das rosas é muito breve, mesmo. Seria bom se elas vivessem como nós, mas o destino delas é este mesmo. Elas têm um tempo muito curto para enfeitar a existência das pessoas, para perfumar o ambiente, para fornecer o pólen às abelhas. Seu destino final é marcar, num livro de menina moça, a poesia mais bonita, a mais sentimental que elas lêem, pensando nos seus heróis. E quando as rosas se vão, outras logo, logo, tomam o seu lugar. Você não sabe disso?

- Sei sim, Violet, mas essa rosa que nós vamos socorrer... – mal saiu do botão... não é o seu tempo, ainda... Podemos revivê-la.

Bem, se é esse o caso, tudo bem. Vamos lá, - disse Violet.

Foram até à rosa. Ela pendia do galho, desanimada, os olhos fechados. Petrus, quase chorando, fez um apelo:

- Violet, querida, faça-lhe massagenns com seus dedos de veludo.

- Oh, Petrus, - ela se emocionou: - meus dedos são de veludo?

- Sim. Você sabe que tudo o que suas mãos tocam, revive. Enquanto isto, eu vou amenizar o Sol, que hoje está muito forte para uma criatura tão enfraquecida como esta pobrezinha.

Deu ordens para que os enfermeiros deslocassem uma das folhas de palmeira, a fim de fazer uma boa sombra. Não muita, porque as rosas amam o Sol, e dele é que vem a sua beleza, seu aroma...

Os gnomos suavam, arrastando a folha da palma, amarrando-a com fios invisíveis a um tronco de acácia.

Violet movimentava as mãos delicadas em torno da rosa desmaiada. Enquanto isto, cantava uma delicada melodia, cujos versos diziam:

“Acorda, rosa bonita/ reanima teu destino/
porque ainda não é hora/ de partir num desatino.

Um caminho a percorrer/ é o que te resta fazer/
Tens muito que embelezar/ as coisas boas da vida.

A luz do Sol magoou-te/ Isto passa, vive e sonha,/
revive tua alegria/ não fiques assim tristonha.

Nesse momento Petrus abriu sua maletinha de médico e tirou dali um vidrinho cheio de um líquido verde.

- Cheire isso, menina Rosa. Vai lhe fazer muito bem!

Os meninos não ousavam respirar. Não podiam acreditar no que viam. A rosa começou a levantar o longo pescoço, suas pétalas se firmavam; em breve estaria sã. A alegria voltava-lhe, aos poucos. O carinho de Violet, a meia-sombra e a agüinha verde a reanimaram. Petrus ficou satisfeito, beijou as mãos de Violet e lhe declarou, entusiasmado:

Só você mesmo!

Mas apressou-a, de novo.

- Vamos, minha cara enfermeira, não podemos descansar, enquanto não terminarmos nossa tarefa de hoje. Ali adiante um cravo branco brigou com um vermelho, e machucou-se um pouco. É possível, isto? E brigam por causa de uma cheirosa magnólia. Você tem que falar com eles. Neste jardim não pode haver rivalidades. Todos fazem a sua parte na beleza e no perfume do ambiente.

A rosa, completamente refeita, mandava mil beijos para os seus benfeitores. Violet disse que a luz da Lua iria fazê-la mais bonita.

- Ela viverá alegremente o seu tempo. Agora vamos ver estes cravos malcriados.
Lá se foram, apressados. Petrus abriu de novo a maleta, apanhou gaze, esparadrapo, merthiolate...

Raquel virou-se para Matheus e perguntou: você viu como Petrus e a gnoma recuperaram a saúde da rosa desmaiada?

Ele a corrigi: - Gnoma, não, viu, Raquel? Ela tem um lindo nome: Violet. E ainda é mágica, hem?

Uma nova confusão surgiu. Alfonsus veio correndo, esbaforido. Petrus! – gritava ele – venha rápido!

Uma camélia branca chorava como doida. Ela matou a charada:
Violet chegou pertinho dela, com seus dedos de veludo, acariciou-a, e voltou para perto do grupo, que aguardava. O que foi, afinal? – perguntavam todos.

Nenhum motivo importante, explicou. Ciúmes de uma tulipa vermelha, muito importante, com seu pescoço em pé. Segundo a Camélia, a outra é uma orgulhosa, não fala com ninguém, muito antipática...

- Oh! – fez Petrus, com ar aborrecido. E como você acomodou as coisas? Uma flor cheia de soberba... caso difícil de resolver!....

- Nada disso, respondeu Violet. Não é soberba, orgulho, frescura, nada disso! É só um problema de comunicação.

Esclareceu o mistério. A Tulipa, coitadinha, chegou há pouco da Holanda. Não sabe falar a nossa língua, portanto não pode se comunicar com as outras flores. Já tomei providências: a Margarida-rainha sabe um pouco de alemão, que é parecido com holandês. Vai ensinar à Tulipa alguma coisa de português, e depois, ela vai aprendendo aos poucos, pois as flores são muito inteligentes.

Petrus sorriu e comentou com os outros: Violet é danadinha. Sabe falar muitas línguas, além de Ter maravilhosos dedos de veludo... Ela pode conversar não só com as plantinhas, mas também com insetos e pedras.

O pequenino Arthur acordara e batia palminhas, no seu carrinho. Rebecca, Lívia, Juliana. Ciça,, Amanda e Clarice, na ponta dos pés, fazenndo psiu! – uma para as outras, acomodaram o neném, colocando um ursinho na mão dele, e foram seguindo grupinho, sem serem vistas.

Isto é o que elas pensavam. Bem que os gnomos perceberam que eram espionados, mas como as crianças não pertubavam, eles faziam de conta que não sabiam de nada.

Ouviu-se um grito. Uma Gérbera reclamava do ataque de um besouro. Rápido como o vento, Petrus apanhou um graveto e espantou dali o insensato. Ele protestou:

- Hei, quê que há? – vai chegando assim, e incomodando os outros? Quem é você – falou o besouro, - para me atacar dessa maneira? Petrus e Violet responderam juntos:

- Nós somos guardiães da natureza. Estamos vigilantes, nada nos escapa. Somos responsáveis pela ordem e pela harmonia deste jardim, porque gostamos muito da dona dele, dona Camilinha e seus filhos, que são crianças muitos bem educadas.

Petrus aconselhou o besouro a voar mais brandamente, deixando de ser espalhafatoso. Você tem um corpo pesado, vôe com cuidado, não fique atropelando os outros...

Justo nessa hora o irmãozinho de Matheus começou a berrar. De fome, com certeza, pois passava um pouco das onze, e nenéns não costumam saber esperar. Eles vão logo botando a boquinha no trombone. Raquel o aclamou e começou a empurrar o carrinho, rápido, e voltar para a cada. E todos vieram atrás, porque iam, tomar um suco de frutas “da pesada.”
Matheus começou a rir, sem parar. Sua mãe queria saber o motivo. Por que você tanto rir, meu filho?

Ele respondeu que logo agora que o Petrus falou em crianças bem educadas, o neném começou a gritar...

- Quem é Petrus? – mamãe estava mesmo curiosa.

E agora? Dizer para mamãe que Petrus é um gnomo, médico de plantas, de flores? Não, ela não ia mesmo acreditar, porque gente grande é assim mesmo... melhor dizer que Petrus é um amigo. O que não deixa de ser verdade, não acham vocês?
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*Rejane Machado é carioca, doutora em Letras, romancista e contista, premiadíssima. Crítica Literário, e como tal recebeu o maior prêmio na categoria, da Academia Bahiana de Letras, com o ensaio “Livro do Osvaldo” Está no prelo um livro de contos e acaba de escrever o romance “Réquiem para Mário”

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