sábado, 26 de janeiro de 2008

FÔRMA


Clauder Arcanjo*
"De ausências é que me formo.
"(Lúcio Cardoso, em Diário)


Da infância, um sono puro na rede grande e funda. Caibros altos, luz por entre as frestas, o sol, anúncio da manhã. Com os pesadelos, terror e pressentimento, o mijo quente, marca do pânico. Embaixo, batizando os chinelos. Ausência.

Do rio Acaraú, Tejo superior, as enchentes caudalosas, o búzio dos canoeiros, o anúncio do arrombamento do Araras, açude à montante da província. Esperado, o brando fuxico e rezas nas calçadas, porém nunca real. Dilúvio, desígnio sempre adiado. O patronato, o grupo escolar, a praça do poeta padre Antônio Tomás, o Mercado Público, a legião barulhenta dos feirantes, o aceno das carnaubeiras. De vez em quando, a visão mítica dos ciganos. A bênção de Senhora Sant'Anna. Todo ano, a procissão, Senhor dos Passos; Cristo em trajes roxos, cabelos em tranças, rosto quedo, a enorme cruz... e a dor anunciada, pois antevíamos o encontro com Maria, no meio da rua, sob o calor de Licânia. A Semana Santa, a Páscoa. Magia e serenidade. Ausência.

Da juventude, a paixão tímida, as primeiras musas, as serenatas, o hormônio a espicaçar a carne; a descoberta da libido, num supremo espasmo. A confissão dos pecados, hoje, para mim, tão inocentes, nas orelhas peludas do padre. "Trinta pais-nossos e trinta ave-marias!" Ora pro nobis! Então, de novo, o corpo imaculado, e a possibilidade do Paraíso. Ausência.Com pouco, o ginásio. Intranqüilo, marchei. O hino, antes das aulas, sob a regência forte do professor Galvino; a educação cívica e física. Benditas minúcias, nos ermos da inconsciência. A migração para a capital, obsedado pelo novo. Os estudos, o imponderável. A faculdade. O cheiro diferente dos carros e da pressa, hostilidade, engrenagem. Santana, uma dor constante, saudade no peito. O calendário, folhas acompanhadas, passo a passo. Orando para chegar janeiro e julho. Atormentado, frágil, sentindo-me só. Ausência.

Faculdade. Angústia. Em cálculos inumeráveis, o desmedido campus. A impessoalidade no aprendizado. A cacimba do saber era mais profunda. O pânico da impossibilidade, sobressalto. A colação de grau, crisma de sonhos. O primeiro emprego, a mudança para mais longe ainda. Ambição?!...Salvador, Bahia, cimo e perigo. A engenharia na algibeira. Num furor para realizar. Ausência.

Hoje, na noite escura, vigília longa, tudo e todos me (re)visitam. De peito aflito, os fantasmas, ecos da minha genealogia, me afagam, apesar da insistente falta de vontade. Tio Nonato, partida precoce; meus avós; a mansuetude do tio Miguel; o riso do tio Gerardo; a cegueira pungente do meu padrinho, tio Arcanjo (quando vejo uma foto de Jorge Luis Borges, vem-me à mente o seu jeito manso). Galharia de gestos, raízes de antepassados, um chão sob os pés. Os sustos da província, sovacos da memória; no entanto, a fé no eterno retorno. O espírito das ausências, na carne. Presença.
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*Clauder Arcanjo, professor. E-mail: clauder@pedagogiadagestao.com.br

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