sábado, 20 de fevereiro de 2021

 

        CIRANDINHA 01

 

Nós, abaixo assinados, assassinados, neste tempo de guerra surda, de falta e de excessos, não vamos dizer de quê. para entendedor, uma palavra: basta! nos interpretamos a dor do mundo através da nossa, e indicamos aonde queremos chegar: a um fu­turo que pertença ao homem, não as coisas ou a posição malganha, a esperança dos deserdados e não as trevas, nada temos propósito de destruir, queremos inovar com o n/sangue e com a n/carne, com o frio nos ossos, a herança e útil se se junta a algo do nosso esforço, visamos os dias cinzentos do hoje,numa busca maior, talvez encontremos lodo, lama, água, fezes, pedra, escombro no caminho, tentemos afasta-los, para que a trilha dos que venham a seguir seja menos áspera. aqui começa a roda de ci­randa numero um. continuará? temos necessidade de­la. trabalhando e cantando (canto muitas vezes cho­ro, coro, sufoco, desaforo ) juntos, chegaremos mais longe, e a vida toda e uma estrada, cada um no seu passo, com s/idiossincrasias, somos nove poetas nesta rodada, todos abaixo assinados, assassinados, obrigados.

 

as) fmm, pm, dm, hf, db, m, mm, fel, zan,

 

 

 

 

 

 

 


FRANCISCO MIGUEL DE MOURA

A COISA

 

a coisa se esparrama/cresce aqui por dentro./ o pó da coita sobe/sei que incipiente/ nos meus olhos baços./a coisa se encasula / em forma de espelho múltiplo/verdade encrespada* quando menos dia/se transforma e - nada/nem alga, nem estrela/do mar - e nem perola./ em não se mostrar/a coisa consola./a coisa não’ cai/ela se rebola/do líquido/contra!-se/ cons­trói-se/ e eu coiso com ela/ - coisa além do mundo./ se contém, não mostra/ vaidade, verdade./ onde uma proposta?/ a coisa desencarna/ no fogo, na água, no ar./ e eu só te abençoo/ por tua garra/ por tua graça/ por tua tro­ça/ mais por tua traça./ coisa, me estraçalha/ parte-me em pedaços / joga: que os pedaços / mudos rolem, rolem/ queiram mais espaços/ e no fundo se colem/ e no fundo se calem.

 

" os poetas, temos, entre nossas substâncias originais,

a de sermos feitos em grande parte de fogo e fumaça . "

Pablo Neruda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

FRANCISCO MIGUEL DE MOURA

PROTESTO.

 

protesto contra a bomba

    aresto contra a bomba

       teste contra a bomba

        este contra a bomba

            de(teste ) a bomba

 

protesto contra o homem:

                                  a bomba.

protesto    contra    a    paz:

                                  a bomba.

protesto   contra    a     vida:

                                   a bomba.

protesto  contra a  bomba:

ela

       ela

               ela

ela a bomba.

 

contra a bomba – o samba.

contra a  bomba – a tumba.

 

cadê o poder de n/macumba?

nas asas de uma pomba

                    mandemos a bomba

                      o céu aguente:

h(á)n                                 bomba.

PAULO MACHADO

 

na senador Pacheco 1193, há um poema/ onde os primos, em volta da mesa,/ guardam suas ânsias diante das pastilhas de hortelã./ e o avô na sala de espera ./(as vezes, de sobrecenho, fala da seca de 14, da gripe espanhola...) o tio já não tosse dentro da noite,/Fiando um’ estranho silencio/ no fim do corredor,/ que em multo se assemelha ao gesto acanhado/ dos meninos, com suas canecas a espera das cabras./ no verão, da mesma forma que no poema,/ não ha lodo no muro/ e as lagartixas passeiam ao sol./ da mudez das pedras e do vermelhão do barro/ arrebenta o verso/ como uma cicatriz esquecida. / nesse poema o difícil e não ser trágico./ no quintal, a erva-cidreira cresce/ por entre as rachaduras das lages, sussurrando/boatos revolta./ na sala de fartar, o perigo de naufrágio/ nas tradições de há séculos./ há um poema que roí o tédio,/ na rua senador pache­co 1193.

 

 

saíra,em dezembro, a coleção de poemas’’

universo das águas”, de autoria de

 Francisco Miguel de Moura.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

PAULO MACHADO HERANÇA

minha avó, Maria dentre tantas marias, rosa

sem superlativos pois jamais necessitará de-

­les, segredou - me :

- uma canção precisa

   ser tão forte

   quanto a morte.

calei-me contrito.

                      pm.’

 

- postulado:

fazer poemas é fácil

como amordaçar um lobo.

 

CANTATA

 


os olhos lânguidos

do tigre do e$$o

regem a santa usura.

os olhos lépidos

do tigre da e$$o

ditam a santa aquisição.

os olhos ludibriantes’

      do tigre da e$$o’

 exigem a santa aqui

                    essência:

-      ponha um tigre no

                   coração.


 

 

 

 

 

 

 

RUBERVAM DU NASCIMENTO

8° POEMA DOS RATOS

 

“...cidadão

receb – eu

uma conta telefônica

superior a

mil e duzentos cruzas...

detalhe:

o telefone ainda não

estava ligado...”

                ( jornal "o dia" -te, lo/08/77)

•••••••••••••••  é por isso Lygia

que os ratos

'tão promovendo seminários.

 

CORRIDA

suma ou...

então chore

ou morda o rosto fervendo

                 de raiva e de sujo e de pus.

não me dê as costas

tem lombriga escapulindo pelas vias distintas.

 

e grite comigo e me escute os berros.

não aposto no teu silêncio.

 

 

 

 

 

RUBERVAM DU NASCIMENTO

CALOS

 

vem “trabalhar” mais nos seu zé/ tem quiabo “maduricendo”/ na roça/ tem melancia/ pro pênis de Cláudio Cavalcanti./ um sistema montado/ erótico/ que não tem roça/Cavalcanti pênis/melancia e moça e moça e melancia./e seu zé/aqui as formigas não comem as crianças falecendo/pedindo melancias/ / e melancias e moças e seu zé; rança quiabos e os mastiga cru./..........................................................................

e esse caminho, ai!/ é coisa de sau-dade meu menino/é “asioc” de maria morta.

 

“todo riso vem de um mal-entendido. Se se

 olham as coisas como se deve olhá-las, nada há

  de risível debaixo do sol”.

                                                           thomas hardy

                                      

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

HARDI FILHO

TEMPO E VERBOS

 

há uma casa e nessa casa uma área onde o menino brinca de não saber se e feliz/ há uma casa e nessa casa uma sala/ nes­ta sala duas estantes abarrotadas de livros cheirando a naftalina e multa filosofia/ e sempre um homem de gestos graves/ largo de espáduas e de raro sorriso largo/ ( a cadeira de palhinha/ a mesa de cedro poli- da/ e outros mais objetos ditos de recordação )/ ha uma casa e nessa casa um falar/ um correr ( no corredor) / correr e falar irmãos/ ha uma casa e nessa casa uma alcova/ à noite o medo de almas do outro mun­do/ há uma casa e nessa casa um fogão muito amigo do menino/ (com uma colher de pau/ mamãe mexe a cangica na panela de ferra/ a fogo de lenha lento)/ ha um equí­voco de tempo nestes verbos:/ havia uma casa / e nessa casa um menino / um menino que brincava de nunca ser infeliz.

 

" desgraçado o pais que necessita de heróis "

                                                    bertold brecht.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

HARDI FILHO

MÓDULO 4

 

não compactuar:

 

com movimento de mãos

abertas para o que sobra

 

com olhares premoldados

na forja da indiferença

 

com caimento de braços

levantados anteontem

 

com protestos deglutidos

em senhorís curvaturas

 

com pernas em marca-passo

na guarda ou na retaguarda

 

com bocas onde mil gritos

resultam sempre em silêncio.

 

saga-saga-sqga-saga-saga-saga

diretamente de ourinhos-são pauIo

para todo o Brasil. é a voz e a

vez dos novos escritores brasi­leiros

um convite: vamos apostar no "saga”?por quê nao?

 

F. EDUARDO LOPES

IMPÉRIO FALIDO

 

começava o show/ — sorrisos/gritos eufóricos/ aplausos./senhoras e senhores/ é com imenso prazer/que trazemos.../e o publico aplaudia./e o show continuava/ - música,/textos, /humor./respeitável público/temos a honra de apresentar... /e a plateia delirava./de repente vieram as vaias/ o hoje faz-se ontem/e o apresentador/virou plateia/ esquecido na cadeira n° 1/da últi­ma fila.

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PAPEL EM BRANCO

 

burlaram-lhe a liberdade/de expressão/e ele tornou-se mudo/passivo e opaco/e suas canções de protesto/foram esquecidas/e o papel em branco/ passou a ter mais sentido/que o pintado de letras/ expressando pensamentos/que doem na consciência/dos ofendidos./e ele no banco dos réus/ sem defesa/espera julgamento/por crime de falar/ a verdade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

F. EDUARDO LOPES

OPRESSÃO

 

detesto falar de mim

dizer que sou

isso ou aquilo

 

mas o que fazer

se ELES não me deixam

falar o que sinto?

_________________________

 

PRAIA

 

meados de fevereiro

            sol

                som

                      sal

                         

 

leia e assine “ficção”, uma

revista para o prazer da leitura –

mensalmente nas bancas –

diretamente do Rio de Janeiro

 para o Brasil

 

 

 

 

 

DODÓ MACEDO

BILLY THE KID

 

como era o vale/em que eles se encontravam!/ eles dois, o moço de olho meio rútilo/e a moça de olhar seguro/e aquele ar que os envolvia./e foi então que o moço pós a mão no bolso/e perguntou a moça se ela achava que deus existia./ a moça respondeu que não/que essa conversa toda e criação/do homem comum, medroso, in­certo/no meio do mundo cão./ mas o moço perguntou de novo/e de novo e de no­vo. /a moça riu e o chamou de homem co­mum./ele riu também e logo ficou sisudo, /a mão sempre no bolso da calça de pano comum./falou então que sempre teve me­do de que deus o visse/o vigiasse, descobrisse seus segredos e depois se vingasse./ a moça falou o quanto ele era bobo/ (seu bobão!)/ o moço foi mudando o olho/ e sorrindo bem pouquinho./ a moça foi fa­lando mais da sua bobice/ e o moço tirando a mão do bolso bem de mansinho./ então ele lhe perguntou de novo/e ela disse exatamente o que antes dissera./ ao que o moço tirou a mão do bolso/apontou

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DODÓ MACEDO

 

revólver para a cara da moça e disparou./ ela ca­iu e ele soprou a fumaça e saiu caminhando lenta­mente./ ia pensando "essas moças de hoje tem um poder incrível/de convencer a gente."

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O’ senhor

 

se não concordas, o' senhor/com o direito que o po­eta tem/de abrir a boca/se não concordas, o' senhor/ com a prerrogativa que o poeta tem/de tentar abrir  “a boca e a cabeça/dos outros/se não admites, o’ se­nhor/um não sequer/se te recusas, o’ senhor/a dar ouvidos a quem mais ainda/ precida de pão/se ficas” irredutível, o’ senhor/ante o direito que o poeta tem de dar a mão a quem dela precida/se te recusas, o’ senhor/ a compreender que língua não serve só pra sentir o gosto de farinha/ então, senhor,/que amputes a mão do poeta/ estraçalhe-lhe a língua/ despedace-lhe a cabeça./ (mas, o' senhor, sei que tu te/ recusaras a fazê-lo só para não/seguires a minha su­gestão).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

MENEZES Y MORAIS

BAIONETAS (2)


 


 

as marcas

vão exigir

de fome

de cada

entre o

al imento

í o ventre

 

IGUALDADE

q/ comemos’’’’

prestações

          e dor

          dente

       o ventre

    as marcas

   q/comemos


na vermelhidez

do lenço/todo

medo e mal cheiro

 

 


cada pessoa

para amar

para gritar

p/ morrer

“o que mais se parece com a poesia e um pão’’’’

ou um prato de cerâmica ou uma madeira delicada-

 mente lavrada, ainda que por mãos rudes”.

Pablo Neruda.

 

VOCÊ S/A

é livre

é odiar

e

e viver

 


 

 

MENESES Y MORAIS

BAIONETAS (1)

 

tanto faz

tanto fez

no fim do mês

o povo em geral

sangue  doperário morto

 na refinaria’’’

mistura vosso tempero

 

acorrenta o dia a bola

sabor bem brasil

massa grossa

massa fina

me beija amor

seja

onde

for

 

“num delírio incoerente e demoníaco, agiganta- se

a minha mostalgia".

MAIAKÓVSKI.

"uma vida que não tem significado aqui embaixo, não terá também nenhum no alem”.

Henry Miller.

 

 

 

 

ZEFERINO ALVES NETO

MEUS MEDOS  

 

tenho medo de intelectualices/mais do que de cobrador no/fim do mês/de donos da verdade mais/do que a cruz do diabo/de ser preso, torturado/morto e sepultado/subir ao céu no terceiro dia/e sentar a direita de deus-pai porque não tive tempo de correr/como diz o chico, o anisio/ medo de ter amigos/que me digam /pra que eu lhes diga/que eu sou o bom/entre os dez mais/e concordem a vida inteira/ que eu não sou um imbecil/medo de ser aceito/ajustado, bem conceituado/de que os velhos me digam/ “que moço bem comportado”/de falar" grego/em português,tenho medo/tenho medo de não escrever besteiras/que os bestas não entendam/ tenho muito medo dos outros/mais tenho medo de mim.

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PROVOCAÇÃO (1)

o poeta/ sodomizou a virgencita/que queria ir/

de frente/pra delegacia/sem marcha nupcial.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ZEFERINO ALVES NETO

ODE ÀS COCOTINHAS 

 

um dia desses sonhei/que de repente virei/imaginem, o latorraca/as seis horinhas da tarde/ ca­minhei descontraído/pelo canteiro central/ da iluminada frei  serafim ./vi aquela aglomeração/ na altura do colégio/das nossas santas irmãs./ era um enxame gigante/da mais bela espécime/a vicejar na paróquia/ elas me viram/eu lhes vi/e qual não foi o ouriço/que o trânsito daquela hora/fez parar e engarrafou ./me dá autografo de cá/ me dá um beijo de Iá/me mete a mão por aqui/que eu sei também que é ali/ o sonho que tava lindo/ foi virando pesadelo./ eu, no sufoco de ter/ na bo­ca um chiclete/um sorvete, um picolé,/acordei” gritando/''acode, mamãe.

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PROVOCAÇÃO (2)

consciência social.../consciência existencial.../ há alguma diferença,/ poeta "engajados”/ qual das duas/ dá mais ibope,/cri-ti-cu-zi-nho de província?/ me arrispondam/ se não eu me/ enforco’.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DOMINGOS BEZERRA

PROPRIEDADE

 

o poeta no auditório e diferente./não trouxe a sofreguidão da alma,/ apenas a canção en­tre os dedos ,/a distância das noites na retina./o poeta entre o samba e a indiferença/e diferente.../não trouxe os sapos que cantavam nos charcos,/mas a palavra que prolifera nas esquinas./ o poeta tem a hora da morte/ selada na consciência, no auditório./não trouxe a elegância das trombetas/ sem as flores que subjugam o velório./tem a consciência da morte diária/ dizem que o poeta tem o justo/merecimento da surdez/para omitir-se,/mas a palavra e a mais casta reação/quando o silencia (medo) ameaça interferir./o poeta no auditório é diferente: / traz o povo todo dentro do seu peito.

 

"no meio dos flagelos se aprende que ha nos

homens mais coisas a admirar que coisas a

desprezar."

                                                       Albert Camus.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DOMINGOS BEZERRA

PARTIDA

 

talvez eu tenha de ir/porém não se espante/ se eu me mostrar indiferente/ante a surpresa das bocas:/ eu partirei às oito horas da manhã./não trema, nem tema/ a aproximação das estrelas:/ elas iluminam nosso medo(o sol faz a combustão das nossas angústias)/ talvez eu tenha que sair./ ir a qualquer lugar onde haja/ uma andorinha . . .

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DIAGNÓSTICO

 

eu diria: calma, ao teu amor/que criaste em mim, sem enigmas,/ mas jungido ao solo, sem ressalvas./ já não digo nem direi que eu mesmo/ fui enigma,/ canção ou medo,/ pois me aperta aqui no peito/ um vazio(cheio de amargura)./ eu diria: planta, ao teu amor que querias afim ao meu, ensimesmado,/ firme no Oslo,/serei a sombra de minha própria alma./ igarapé saído do passado,/ desemboco no delta do futuro.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DEPOIMENTO

 “Sou um poeta do Nordeste brasileiro, um poeta do Maranhão, da cidade de S. Luís do Maranhão. Sou um poeta da Rua do Coqueiro, da Rua dos Afogados, da Quinta dos Medeiros, do Caga-Osso, da Rua do Sol e da Praia do Caju. Um poeta da casa do quitandeiro Newton Ferreira, da casa de dona Zizi, irmão de Dodo e de Adi, de Newton, de Nelson, de Alzirinha, de Concita, de Norma e Consuelo, amigo de Esma­gado e Espírito da Garagem da Bosta. Um Foragido e um sobrevivente. Alguém que conse­guiu escapar do anonimato, que vem do sofrimen­to menor, da tragédia cotidiana e obscura que se desenrola sob os tetos de minha pátria, abafada em soluços, a tragédia da vida-nada, da vida-ninguém. Se algum sentido tem o que escrevo é dar voz a esse mundo sem história.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mas não há nenhum mérito nisso. Primeira­mente, fugi. Fugi da quitanda, fugi da família, da vida sufocante e pouca. Fugi pela poesia, inventei um mundo feérico e feroz. Um suicídio esplendente: ateei fogo ao verbo, minhas vestes mortais, como se fosse meu corpo. Não era. E sobrevivi, sobrevivi, sobrevivi. Abati a poesia, calquei-a sob os pés, mijei nela. Lavei as mãos, virei concretista, neoconcretista, enterrei o poema numa casa da Gávea. E sepultei com ele a metafísica.

Não, não há nenhuma poética universal: universal é a poesia, a vida mesma. Universal é Bizuza, cuja voz apagou com sua garganta desfeita há anos no fundo da terra. O universal é o quintal da casa, cheio de plantas, explodindo verde no dia maranhense, longe de Paris, de Londres, de Moscou. O frango que nasce e morre ali, entre as cercas de varas. O cheiro do galinheiro, a noite que passa arrastando bilhões de astros sobre nossa vida de pouca duração. Universal porque Bizuza, amassando pimenta do reino numa cozinha de S. Luís, pertence à Via láctea. E a história humana não se desenrola apenas nos campos de batalha e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas; nas ruas de subúrbios, nas casas de jogo, nos prostíbulos, nos colégios, nas ruínas, nos namoros de esquina. Disso quis eu fazer a minha poesia, dessa matéria humilde e humilhada, dessa vida obscura e injusti­çada, porque o canto não pode ser uma traição à vida, e só é justo cantar se o nosso canto arrasta com ele as pessoas e as coisas que não têm voz”.

 

— Ferreira Gullar.

 

 

 

 

 

ÇIRANDINHA — 1.

EXPEDIENTE:

REDAÇÃO:

 

rua 13 de maio, 732/n — Teresina — Piauí

fone: 222-3037

 

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Francisco Miguel de Moura

                   Rubervam du Nascimento

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revista que tem por finalidade difundir a poe-

sia nova do Piauí. Os colaboradores respondem”

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CIRANDINHA 3

 

Revista bimestral de literatura e artes, circulando em maio e novembro. Aceitamos colaborações em artigos, reportagens, comentários, recortes, poemas, contos, etc. Não devolvemos originais não publicados. Não nos responsabilizamos pelos concei­tos emitidos em matéria devidamente assinada.

 

Editor:

Francisco Miguel de Moura

Reportagem: Herculano Morais

Cartuns: Dodó Macedo

Encarte: Nonato

Capa: Albert Piauí.

Comissão de Leitura: Glória

Sandes, Hardi Filho e Rubervam

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Correspondentes:

Adrino Aragão de Freitas (SQN-313, bl. H, ap. 203 - Brasília).

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Maria Camélia de Carvalho Moura Fé (R. São Pedro, 269 - Floriano-PI).

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Pedro Américo (A/c. da Reler Livraria, R. José de Alencar, 134 — L. 4 — Recife-PE). Rosa Maria dos Santos (R. Guilherme Marconi, 117/112 - Rio(RJ).

Regina Maria Queiroz da Silva — Guaraniaçu-PR) e

Alcenor Candeíra Filho (R. Dr. Joio Cândido, 1138 — Parnaíba-PI).

 

 

 

 

 

 

BILHETE TRÊS


CIRANDINHA desta vez circu­lará em nada menos de dez Esta­dos, podendo desde já ser con­siderada de âmbito nacional, gra­ças a uma rede de corresponden­tes amigos e dedicados que não medem esforços para divulgá-la. E cometemos a esses corresponden­tes a tarefa ingrata de também distribuir CIRANDINHA, na medi­da de suas forças.

No entanto, as pessoas que, por qualquer motivo, estejam impos­sibilitadas de contactar com nos­sos correspondentes podem se di­rigir ao nosso endereço que serão prontamente atendidas, mas não dentro do sistema de assinaturas - impraticável para um periódico que sai apenas duas vezes por ano.

Nosso trabalho continua em nível amadorístico e sem condi­ções ainda de compensar financei­ramente nossos correspondentes e colaboradores. E qual o órgão exclusivamente literário que pode fazer isto, no Brasil?

Temos o propósito de divulgar a literatura de nossa geração, sem exclusivismos vanguardeiros nem acomodações bolorentas, aco­lhendo qualquer trabalho que não comprometa o nível dialético mensagem-forma nem, a nosso crité­rio, fuja completamente a nossa realidade.

Será que se pode fazer uma revista literária somente com es­ses preconceitos? Este seria o programa de CIRANDINHA. E só o futuro, a história, dirá se o alcan­çamos.

As novidades deste número são: um texto inédito, integral, do teatro de Francisco Pereira da Sil­va e uma página Dara o leitor. Que fica com a última palavra.

Outro aviso importante: antecipa­mos para este mês a saída da re­vista, pois não queremos misturá-la com eleição (indireta).

Teresina, setembro de 1978

Francisco Miguel de Moura Editor


 

 

 

 

PARANÁ: I DEBATE DE ESTUDANTES SOBRE

A NOVA LITERATURA BRASILEIRA

 


EXPRESSIVA contribuição tem dado o Paraná em favor da litera­tura brasileira, nos últimos tem­pos. Basta citar o Concurso de Contos, promoção anual do Governo daquele Estado, em favor dos que praticam o gênero. Tam­bém o grau de consciência de uma classe mais ligada à literatura me­rece ser citado. Trata-se dos pro­fessores e do atual movimento grevista que eles sustentaram. Re­cente também é o I DEBATE DE ESTUDANTES SOBRE A NOVA LI­TERATURA BRASILEIRA, patrocí­nio da UNIAO PARANAENSE DE ESTUDANTES. Nos dias 7 e 8 de julho deste ano, em Curitiba, reu­niram-se escritores novos de vá­rias partes do Brasil com os es­tudantes daquelas paragens e de outros Estados, procurando deba­ter assuntos como: A Nova Literatura Brasileira e a Classe Estu­dantil. A Divulgação do Autor No­vo e a Função Social da Literatura.

 

DINÂMICA DO DEBATE

EXPOSIÇÃO DE REVISTAS,

LIVROS E PUBLICAÇÕES

MARGINAIS

 

Foram os seguintes os exposi­tores dos temas dados: Rubervam du Nascimento, Amador Ribeiro Neto, Domingos Pellegrini Jr., Wladyr Nader, Aristides Klafke e Roniwalter Jatobá. Mas outros es­critores estavam presentes, ani­mavam os debates apresentando sugestões e prolongando normal­mente as exposições. Alguns de­les: Ricardo G. Ramos e Lúcia da Silva Ribeiro, do Rio; VirgíHo Ma­tos, de Belo Horizonte; Arnaldo Xavier e Sílvio Spada, de São PauIo: Reinoldo Atem e Luiz Edson Fachin, de Curitiba. As perguntas e interpelações ou apartes, que a principio deveriam ser feitas por escrito ao expositor, passaram a ser de viva voz, na primeira suges­tão enunciada, e a participação cresceu em plenário. Nos interva­los entre um tema e outro havia declamação de poemas pelos es­tudantes e poetas presentes. Re­vistas, livros, jornais e outras pu­blicações eram anunciadas no au­ditório pela equipe de Cultura do Encontro.

Entre tais publicações, muitas piauienses: O DE CASA, CIRANDINHA, PRESENTE DO IN­DICATIVO, TRIBUNA SECUNDA- RISTA, DE FRENTE PRO GOL, OPRESSÃO. Havia outras equipes especiais para hospedagem, ali­mentação, publicidade, deixando ao visitante a melhor das impres­sões. Os dois dias do Encontro do COLÉGIO ESTADUAL DO PARA­NÁ foram realmente um exemplo de organização e trabalho do es­tudante secundarista paranaen­se.

Eles montaram um Departa­mento de Publicidade do conclave que a cada hora informava os par­ticipantes através de boletins mimeografados, sumário das discus­sões e debates, acrescidos dos poemas recitados e das minúcias pertinentes.


 

 

 


DEPOIS DO CONCLAVE

ENCONTRO DOS ESCRITORES

 

            Na noite de sábado, dia 8, houve um encontro final de todos os escritores, na residência de Reinoldo Atem, que é piauiense, professor universitário e um dos diretores da Editora Cooperativa dos Escritores do Paraná, para troca de obras autografadas, valendo a pena registrar o recital de poesias que foi espontaneamente apresentado pelos próprios autores, cada um recitando textos dos livros ali presentes. Rubervam du Nascimento recitou Francisco Mi­guel de Moura, Paulo Machado e Afonso Lima, além dos seus pró­prios poemas, deixando assim uma visão nítida do que se faz atualmente no Piauí. A imagem do rio Parnaíba, agora magro e feio, foi insistentemente evocada dian­te dos que pessoalmente não co­nhecem nosso Estado, deixando transparecer nossa constante pre­ocupação em preservar as tradi­ções e zelar pelo meio-ambiente, sem contudo desprezar a pesquisa formal, a atualização do poema. O problema do rio impressionou por­que foi levantado na exposição, nos debates e nos recitais, pelo nosso poeta Rubervam: “o rio está ficando tuberculoso, ele está sen­do espremido comigo, juntamente comigo, eu sinto isto porque o atravesso todo dia. Os novos poe­tas do Piauí devem sentir, como eu. a morte do rio Parnaíba”. Reinoldo Atem, que tomou banho no Parnaíba em pequeno, sentiu pena e falou: “Ainda voltarei ao Piauí, antes do Parnaíba secar”.

 

DISCORDÂNCIAS E CRÍTICAS

DURANTE OS DEBATES

 

Os temas em debate foram bem aproveitados pelos exposito­res convidados e seriamente refle­tidos pelos estudantes. Houve participação maciça. Dentro da or­dem do conclave, a desordem da participação, da democracia. Tudo era posto em questão. A arte pela arte ou a arte para o povo, para b operário? Drummond de Andrade, Ferreira Gullar ou Thiago de Melo? Arte engajada, social, ou arte-di- versão? Escrever para o povo ou somente sobre o povo? E o pro­blema do brasileiro analfabeto? O problema do poder aquisitivo qua­se nulo da maioria dos brasilei­ros? A televisão ou a imprensa alternativa? Não houve lugar para muitos aplausos, mesmo quando os presentes queriam bater pal­mas a alguma proposição, a mode­ração era pedida O importante foi mesmo a discussão e a reflexão.

 

SÍNTESE: VALEU A PENA?

 

Valeu a pena, disse Rubervam du Nascimento, representante do Piauí, no Conclave. Valeu como tentativa de pensar a realidade brasileira, num momento cruciante. Não será feio seguir o exemplo dos paranaenses, acrescentou irô­nico. Foi um passo para nossa tomada de consciência. Outros serão dados com certeza. O Piauí ficou em Curitiba, foi pra São Pau­lo, Rio, Minas. E prossegue nosso poeta: Não vi diferença grande em Curitiba, nem ninguém quis apare­cer mais do que ninguém. Tudo de igual para igual. O que apareceu mesmo foi a nova literatura brasi­leira. O estudante deixou o Debate com uma impressão na cabeça: fazer que outros leiam a nova lite­ratura brasileira. Por outro lado, o escritor novo levou uma lição mui­to grande: é preciso saber o que se está fazendo. Literatura não é brincadeira. Não se brinca fazendo poesia. A literatura tem que virar prática, como disse Lúcia da Silva Ribeiro.


 

 

 

 

 

 

Macunaína em desfile

Francisco Miguel de moura

 

 


não estou contra a bandeira

antes pelo contraríssimo

eu sou brasileiro sim senhor

e dá-se aquele abraço

ou então um jeitinho.

 

acho isto tudo um milagre

até a morte.

 

abaixo o trabalho

abaixo o sofrimento

porque agora vamos contar

mais uma piada do joãozinho.

 

futebol carnaval e depois

a canção de protesto

de longe

 

que os homens da lei

merecem nosso respeito.

 

mas vamos pregar heroísmo

de que não participamos

e se faltar alguém

(o que é mais fácil)

qualquer um lúcio flávio

serve de herói

 

até um doca street.

 

gente, aí é quando

o homem que sua

- (desiludido de que

deus não é mais aquele

brasileiro

e também foi banido).

resmunga um palavrão.


 

 

 

 

 


um livro de poemas que rompe barreiras, uma avalanche no mun­do bem comportado, burguês, da poesia de e para mocinhos, aqui você pega tapa no pé do ouvido, escurece a vista, vê estrelinhas não aquelas que conversavam com Bilac, outras, e outros bichos, não espere coisa parecida com “pe­dra em sobressalto”, que já completa quatro anos e está esgotadíssimo. se você é hipócrita, para­béns, não leia. porque vai se ar­repender. preço: cr$ 70,00. pedi­dos pelo correio.

edições grupo/cirandinha

rua 13 de maio, 732-n

Teresina


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

bárbara

paulo machado

 


bárbara

 

porto seguro onde os homens

frequentam assiduamente como

                                 mar famintos

 

 

 

bárbara

casto silêncio velando

os olhos insones dos desvalidos

 

bárbara

ruela torta onde os bêbados líricos

apregoam Insubmissão


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PEDAÇO DE POEMAS

Rubervam du Nascimento

 


Tanto mistério

no silêncio.

E minha avó come ovos

           quase chocos

de debaixo da galinha preta

 

Eu queria era muito

dar um soco

n(u) passado de minha vó. Não

  dou e esmurro o pensamento.


 

AUTODEDURAÇAO

DODÓ MACEDO

 


fazia poesias falando de amor

e até quando as fazia

atentava para o detalhe

de não deixar margens

a outras interpretações

 

fazia contos inexpressivos

falando de coisas triviais

que brotavam de dentro

e até quando os fazia

atentava para o detalhe

de não deixar margens

a outras interpretações

 

na rua, caminhava depressa

pra chegar logo a seu destino

e livrar-se da sensação

de estar sendo observado

na banca de jornais

comprava rápido o jornal

e a revista e enrolava-os

punha-os debaixo do braço

                                 e partia

 

à noite, fumava e lia

e enquanto ruminava um

bruto conto

e uma bruta poesia

sacava a lauda branca de pureza

pronta pra receber pecados

dos mais diversos, vis

 

mas ante a folha branca

o pecado virava um lindo

conto de amor

e uma bela poesia

rimando flor com dor

sem deixar margens

a outras interpretações

 

um dia, num encontro de poetas,

escritores e outros marginais,

sentiu o olho ficar rútilo

e o coração desabalado,

levantou-se e, sem tremer a voz,

gritou: “EU SINTO MEDO!”

sentou-se lentamente

e se sentiu perdido:

aquele grito deixara margem

a muitas interpretações

 

Teresina - PI


SÍNTESE

 

F. Eduardo Lopes


Um dia a gente pára

para pensar no passado

cursos e mais cursos

coisas e mais coisas

e a gente sente

que fez muito

 

Um dia a gente pára

para ver como está

o presente

muita coisa

acontecendo

muita gente

 

se encontrando

e a gente percebe

que fez pouco.

 

Um dia a gente pára

para pensar no porvir

tantos planos

tantos sonhos

ambições

e a gente vê

que nada fez.

          1975


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POEMEDO

Hardi Filho

 


Desgravem

se foi dito que este tempo

é tempo de muito sentir

coletivas angústias

 

Desgravem

se foi dito que este tempo

é tempo de muito acudir

quem acorda sem nada

se chamando povo

 

Desgravem

se foi dito que este tempo

é tempo de muito ver

(es)cravos e mãos e ombros sua­-

                                               dos

de trabalho feito/fazendo/por fa­-

                                              zer

 

Desgravem

se foi dito que este tempo

é tempo de desânimo eriçado

no desassombro do sangue

(des)nutrido e co-habitado

por corrente e compulsão

Desgravem

se foi dito que este tempo

é o de muito ser macho em manso

                                                  dia:

dia/noite cercado de silêncios

iminências e holofotes

 

Em sendo assim desgravem

des(a)gravem por favor o poema

inútil seta sem veneno


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ESTE ESTA


esta sapato me aperta

este relógio me espreme

esta gravata me sufoca

este paletó me abafa

esta cueca me enche o saco

esta calça me atormenta

— vontade de ser nu!

Alcenor Candeira filho

Parnaíba-PI


 

 

LANÇAMENTOS

 


OCORRERAM três lançamen­tos recentemente no Piauí. Tudo poesia. Os nomes: “NA POEIRA DOS DIAS”, de F. Eduardo Lopes, que tem se revelado um captador de momentos sutis, reais e angus­tiantes, nos seus versos tão natu­rais e tão necessários, e “PONTA DE RUA” de William M. Soares, um garotão que anda lendo o dis­sidente Solzhenitsyn e fazendo “a ave-maria dos supermercados, com um montão de bons temas, mas ainda com pouco jeito na flo­resta de palavras. Promete bem. Leia seu lançamento e discorde de mim, por favor.

O lançamento maior, e para es­te abri um parágrafo, foi “VA­RIANTES DO BERRO”, de Carva­lho Neto, com prefácio de Nauro Machado (que não disse nada, absolutamente nada — o prefá­cio), edições COMEPI 1978. Carvalho Neto, no livro que estréia, marca uma presença madura da nossa poesia, uma presença forte, com alguns pecadilhos, dos quais para exemplo, mostrarei o mais evidente: deixa-se levar pelo enfeitiçamento das rimas frágeis como nas canções da música popular brasileira, talvez por ser muito afeito à música e ter se desleixado nesse ponto. O abuso desse ex­pediente enfraquece a melhor das mensagens, adocica o ouvido até amolecermos e nos desinteres­sarmos do que pretende dizer e efetivamente nos diz o poeta. Ressalto a profundidade do seu lirismo, principalmente em “Insô­nia”, ótimo poema que nos fala “nos pés virgens sangrados/ na corrida apocalíptica/ dos inssurrectos anônimos”. Outros poemas dignos de nota, antologiáveis: “Minha Rua, Meu Pedaço” e “Eu Pescador”. Enfim, um livro que deixa sua marca, que não será es­quecido facilmente. Agora, só uma pergunta: Como pode outro poeta de Amarante, nem que seja bom, aparecer? Carvalho Neto nasceu em Amarante-Piauí, a terra de Da Costa e Silva, em 21 de se­tembro de 1944. Tem colaborado constantemente em nossa impren­sa literária, somente com poesias. Com “VARIANTES DO BERRO” marcou um tento bem marcado, Parabéns.


 

 

HOJE

 


Ei moço! para de falar

        em segredo

E moço! pare de sorrir

               ainda é cedo

 

Ei moço! pare de fingir

 

pare de iludir

pare de mentir

A sua cara é a expressão do

                                     MEDO

Cinéas Santos


 

 

 

 

 

TINTAS FRESCAS

Zémagão

 


No cartão

Feliz Ano Novo

Paz/Tranqüilidade/Amor

No coração

Nós povos

Na mira de um franco-atirador

 

Na poesia

Tá mais pra ditadura

Que pra democracia

Leia

Assine

Divulgue sua agonia

 

Sua fome dá xadrez

Seu menor gesto de voar

Pode ser uma volkstupidez

 

Bebababy

Baader-Meinhof

80 Km

 

Tempo

Visibilidade boa

Céu Azul

Epidemia no nordeste.

Trovoadas e cassações

Na R-S

 

Surge a lua

Por trás dos edifícios

Biônica

Em papel-ofício

 

As pedras deste quarto

Têm o ar de subversão

Nota-se o pavor na mobília

E o suspense na paredepoelra do

                                            violão

 

Plantou uma árvore

               Morreu

Escreveu um livro

               Censurado

Tem um filho

               Na indigência

 

Moral:

 

A inflação toma café

Pelé soma a fração

115 milhões

Conferem os cartões

Wida

Wida

 

Aperte o cinto

               Decolar

                

Diálogo

Pechincha

Abertura

Constituinte

E o povo /Público ouvinte

A espera da rapadura

 

O redentor no D.O.P.S.

É o FLA/FLU.


 

 


QUANDO estávamos fechando

a edição de “Cirandinha” n° 3, a

Corisco lançava a coletânea

“AVISO PRÉVIO", reunindo poetas

do melhor nível". Alcenor Candeira,

Rubervam du Nascimento, Paulo

Machado, Cinéas Santos, entre

outros. Da próxima vez comenta­remos

o lançamento.

 

DE SÃO PAULO recebemos a

coletânea  MOMENTO POÉTICO,

que contém poetas de boa

expressividade, a maioria inédi­tos.

Para nós os mais conhecidos

são Antônio Carlos Fernandes da

Silva e Francisco Miguel de Moura,

ambos piauienses. É uma bela

edição da Editora do Escritor,

de São Paulo.


 

 

A máquina de linhas

Derrota o Coronel

 

José Roberto Alencar

 


Tiros e mortes não costumam aumentar as tiragens dos jornais alagoanos. Rotina não vende jornal. Só nos últimos 1P meses, cinco prefeitos interioranos foram assas­sinados. Talvez por isso, a história da­quele estado não registre tiros mais ba­rulhentos e mais destruidores do que os três desfechados no peito do coronel Del- miro Gouveia, na boa noite de 10 de outubro de 1977.

O coronel só durou mais 10 minutos. Suas plantações de algodão — que se­guravam em Alagoas milhares de retirantes enxotados pelas secas — sua usina na cachoeira de Paulo Afonso e sua fábrica de linhas Estrella, com dois mil empregos, ainda resistiram até 1930. Em abril, as máquinas foram quebradas a marreta e jogadas na cachoeira, pela Machine Cotton, multinacional inglesa, que voltou a ficar sozinha no mercado latino-americano com as suas linhas Corrente, de cos­tura e bordado.

Geraldo Sarno — que de 1964 a 1976 fez 19 documentários de curta e média metragem e uma longa metragem, o Pica- Pau Amarelo (1974) — terminou, neste ano, a montagem de um bom filme sobre a ação da Macnine Cotton contra a fábrica do coronel Delmiro, que, se não é o melhor, é pelo menos o mais conhecido exemplo de como trabalham as multi nacionais na defesa de seus interesses.

O Coronel Delmiro Gouveia é uma reportagem bem feita, com entrevista com gente que conheceu o coronel e muita pes­quisa em arquivos pernambucanos e alagoanos. Custou Cr$ 1 milhão e 500 mil à Sarus Filmes e à Embrafilme, deverá par­ticipar do Festival de Cannes e será lançado no Brasil, em circuito nacional, só no segundo semestre, porque o primeiro está lotado de bons lançamentos.

O filme começa com um entrevistador (invisível) fazendo perguntas (inaudíveis) a um velho ex-operário de Delmiro, que vai puxando pela memória e dizendo: "Antes dele era muito ruim. Depois ficou bom. Fome ninguém passou enquanto ele viveu. Ele era bravo, sim senhor. Matar, ele nunca mandou, não senhor. Nunca matou nin­guém, não senhor”. ‘Termina com cenas de marretas quebrando máquinas, teares, e de operários atirando os cacos na cachoeira, enquanto a voz do mesmo entrevistado, o velho Zé Pó, diz que trabalhar com as máquinas é melhor do que com as mãos. Que "a gente acaba ficando amigo delas", embora elas não pensem e possam ferir o operário. Que elas gostam de ser. bem tratadas.

Diz que o coronel chegou, mandou montar a fábrica e os operários montaram. Foi assassinado, chegaram os ingleses, mandaram, quebrar e os operários que­braram. E voltaram a viver mal, na roca, trabalhando com as mãos, fugindo das secas. "Ninguém perguntou para nós se era bom quebrar as máquinas e fechar a fá­brica. Ninguém quis ouvir nossa opinião. E eu acho que as fábricas só não serão des­truídas no dia em que pertencerem real­mente, inteiramente aos trabalhadores". Delmiro morreu sem vender a fábrica aos ingleses, dizendo que ela não era apenas sua. Era dos operários, que ele chamava de "a terceira força".

Entre a primeira e a última cena, Geral­do Sarno conta a história do coronel, com todas as perseguições políticas que sofreu por parte de governadores, de vice- presidentes e presidentes da República. Conta a história de Delmiro, desde ô úl­timo minuto do século passado, até o seu próprio último minuto. E consegue manter em suspense a plateia. Apesar de todo o mundo saber que o mocinho morre no fim.

 

COO JORNAL - MAIO/78 PORTO ALEGRE (RS)


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

MEDO

Vera

 


Hoje a cidade me deu medo

medo de suas luzes,

de seu barulho

do mistério que existe

dentro de cada pessoa.

 

Me deu medo à janela

e lá fiquei

pra não me aventurar no asfalto

e terminar esquecida entre faróis.

 

Teresina – Pi


 

 

5.213.860-7

Alexandre Carvalho

 


Meu nome é José...

tenho outros

apetrechos, trechos

filetes burocráticos

números diversos — tenho

                                 identidades

                              certificados

                           cepeefes

                        pasepes

                     fegeteesses

                matrículas

outros bichos tantos

que já nem sei quem sou:

 

Gente ou peça

desta fria máquina

pessoa humana, alheia ou biônica.

                              Quem sou?

                              De onde venho?

                              Pr’onde irei? Não

                                                    sei...

 

Até na tumba ,

final burocrático incógnito

terei:

Datas — nomes — números

após o nada.


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RAIO-X DA ROTINA X

 

José Ribeiro e Silva


Acordo...

            com sono

            bocejo a vida

            e espreguiço os problemas

 

Levanto...

               sem ânimo

               escovo as angústias

                e banho as quimeras

Trabalho...

               com afinco

               estudo as idéias

               e datilografo os desejos

 

Como...

          sem apetite

          mastigo o cansaço

          e engulo a ilusão

Deito...

             Apago a luz

             e acendo os anseios

             no embalo dos sonhos.


 

 

 

 

 

 

 

 

REGISTROS

 


Aos 8 de junho de 1978 foi promovida a I APRESENTAÇÃO DE POESIA DE RESISTÊNCIA, com 0 apoio do Departamento de Letras da Universidade Federal do Piauí. A frente o poeta Francisco Castro, que editou o “Caderno de Poesia de Resistência”, mimeografado, contendo todos os poemas recita­dos naquele simpósio.

 

O Anuário de POETAS DO BRASIL, 1978, organizado por Aparício Fernandes, trouxe duas excelentes contribuições: Herculano Morais e Rubervam du Nas­cimento. E por isto dizemos que aquela publicação, feita tão sem critério seletivo, desta vez se sal­va. Rubervam se apresenta espe­tacularmente corajoso com sua série de “poemas dos ratos”.

 

Herculano Morais, nosso com­panheiro, tanto de CIRANDINHA como do pioneiro de todos os mo­vimentos literários de hoje, o ve­lho CLIP, foi nomeado diretor do Teatro 4 de Setembro. Promete al­gumas inovações na programação,

 

se contar com o apoio das autori­dades e dos grupos do teatro ama­dor.

 

No Rio de Janeiro, o melhor lançamento em poesia foi “EBU­LIÇÃO DA ESCRIVATURA”, pela Civilização. Autores: treze poetas impossíveis. Um deles, maranhen­se de Caxias — O Salgado Mara­nhão — andou sondando a pos­sibilidade de lançamento da cole­tânea no Piauí. Não houve. Por quê?

 

O Curso de Literatura Piauien­se ministrado nas dependências da Escola Industrial, pelo poeta Herculano Morais, foi muito bom e contou com a colaboração dos escritores piauienses mais ativos. E um bom augúrio para o estabele­cimento da cadeira de Literatura do Piauí, no currículo do ensino de segundo grau. O curso teve maciça frequência de professores dos colégios de Teresina e das principais cidades do Estado: Pi­cos, Floriano, Oeiras, Parnaíba, etc.


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há avulsos vultos

entre decepar colinas e abrir manchetes

 

cortar paralelas

flutuar novas pastagens

 

navegar crateras

situando, triturando feras

 

agir, encontrar, restituir

 

um dia de repente enquete:

poema e povo se encontrarão

lado a lado

em cada brasileiro.

 

Elizabeth Rêgo - Teresina


BAIONETAS

 

           palavras

reunidas

  trabalhadores

                                                     fábricas

                                                   conselhos

                                                salários

                                             modos de

                                          produção

                                      liberdade

                                        água

                                           sede

                                             frutas

                                                 fome

                                                   levante

                                                        idade

                                                             sol:

o berror

         que o gato

deu

 

Menezes y Morais

 

 

O NADA

Maurienne Lustosa Caminha

Nada é a menina que diz que não sabe,

sabe que não vai passar no vestibular.

Nada é o menino que chora porque perdeu

o campeonato de tênis.

Nada é o adulto que esconde p chiclete da criança.

Nada é saber de tudo, pois assim não há mais lugar

para novos conhecimentos.

Nada é chorar de tristezas sem ter esperanças.

Nada é não saber jogar o jogo-do-contente.

Nada é não ler nada.

Nada é dizer que ama e odeia num momento

de fraqueza.

Nada é olhar o céu, enxergar, mas não ver nada.

Nada é estudar por obrigação.

Nada é namorar por hábito.

Nada é não se interessar pelos porquês

Nada é não gostar dos amigos.

Nada é início...

 

                      Porque

Quem nada tem, tem coisa de sobra

 

 

SABOR DE SAL

 


EU, Jupira:

Desfraldada e numa posição fetal, berrei: e não me olhe com essa cara de bolacha sem sal — porque eu não topo esse seu olhar de quem não diz nada e que me odeia me tolera... não tem outro remédio. Por que você não vai em­bora? Não, não vai... tá bom, en­tão fala, berra, coloca a última tragédia d “O Dia” pra ser discuti­da. Sabe corno eu me sinto? Claro que não... pois eu me sinto como Um inseto, que foi pisado e tenta se unir, arrastando-se em peda­ços. Arrependimento? Nunca. Te­nho uma fortaleza aqui dentro, mi­nha vontade é maior que todos os edifícios, do mundo, juntos. Isso tudo eu disse pra ELE, que me vigia dia e noite,

Dagora ora em diante falo para vo­cê *que tem os sentidos velejando por mares inexistentes. Sou altruísta, não tenho medo de pouca coisa, sempre usufruí de liberdade em todos os ângulos e se morrer hoje, morro numa boa, sabe porquê? Porque não tenho medo de nada; nunca deixei de ir em busca das coisas por medo.

Olha só, minha mão espalma- da — vê aí no desenho — está cheia de calos, não? Calos... virão mais, que com o passar do tempo se calejarão, aí então eu posso cortar porque não sentirei mais dor. Por enquanto só há suspiros, ânsias e vontades reprimidas. Desculpa, sei que você tem uma raiva dana­da do diabo dessa última palavra, mas com outra não definiria o que sinto. Minha vontade mesmo era dar uma bordoada naquela cara, mas enfim... guardarei minhas energias para momentos mais adequados.

Há preocupações futuras, an-

Rosa Maria dos Santos Rio RJ) tecipadas, assim como coisa de cinqüenta anos, mas quem não tem? O que sinto é alucinante, percorri todos os espaços em branco para serem preenchidos e o cigarro no bico, os dedos estão amarelos. No fim o filtro fica todo machucadinho no cinzeiro. Prova­velmente morrerei com mais de um câncer. Está bem, não falarei mais besteiras, as besteiras são proibidas. Uma das vontades maiores é aquela de ver gente, um montão... multidão... rostos cheios de emoções ambíguas, vo­cê vai olhando e apontando: feliz, triste, carrancudo, nervoso, pas­sivo e assim... mas ainda existem coisas importantes, sem as quais os pensamentos não se criavam e frutificavam. Você por acaso é uma delas,. tão importante que ocupa até meu sono, o que me faz mais torturas ainda, pois se du­rante o dia sonho acordada à noite vêm as perseguições, me debato e acaricio o lençol, o travesseiro, então acordo e tenho crises horríveis: chuto o tapete, trituro a fronha com os dentes e esmurro o armário. Uma vez saí tateando vo­cê e falando assim: por favor, não se esconda. Pensa que eu não es­tou lhe vendo? Ah, não faz isso comigo que eu fico chateada. Quando descobri a triste verdade, virei felina. Fui para a frente do espelho: grarrrrr, cuspi e a saliva voltou molhando toda a minha cara. Existe armário para esmurrar? E óbvio, alucinação.

Sei que a interrogação que existe entre nós é o sinal de maior desequilíbrio emocional, porquê as coisas não são concluídas, se prolongam, formando um conjun­to infinito.

Me dá vontade desesperada.



 

REINO DO MAR SEM FIM

 

História de honra, amor, traição, pecado, graça expiação, com cenas do mais puro realismo e outras de sonhos e alucinações que se passam no espírito de gente como Leopoldino — o pescador que promete sua filha Narcisa a Janaína, a Rainha do Mar, em cumpri­mento de uma promessa e de uma graça alcançada. “REINO DO MAR SEM FIM” é um depoimento coletivo de Leopoldino, Arioso e Aldora, diante do invisível inquisidor (quem? você? o mundo? o delegado? o poder?), um depoimento das fraquezas e misérias a que foram sub­metidos. Seu autor, o dramaturgo Francisco Pereira da Silva, baseou-se em fato verídico recente, acontecido no litoral da Bahia, onde vivem pescadores na mais extrema penúria, entregues à tradição, a Deus, ao mar e aos mitos. E um trabalho que nos coloca diante dessas pessoas simples e sofridas, a um tempo culpadas e inocentes, envolvidas pelo mesquinho universo de suas paixões e pela problemática da fome, que, aliás, o texto insiste em revelar de modo -muito discreto, insistindo na palavra fartura. Aqui o homem universal e singular se apresenta tão contraditório e quase desconhecido dos seus semelhantes como em todas as latitudes e em quaisquer agregados sociais, não obstante o sabor regional de algumas colocações feitas inclusive no nível da linguagem e na utilização sutil e oportuna de trechos da literatura de cordel. Constata-se a profunda consciência moral das pessoas sim­ples, talvez por viverem em contato direto com a natureza e o seu poder. E um texto conscientemente moldado no melhor gosto clás­sico, sem exageros nem omissões, com a paixão do verbo em sua inteireza, trabalhado até o limite da paciência de um artista, sobre cujo texto - segundo seu próprio autor — pode-se montar um espetá­culo de extrema simplicidade, mas de dor e dilaceração, e essa tragicidade quase diria grega — banhada de intenso lirismo.

 

Francisco Miguel de Moura

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Reino do Mar Sem Fim

 

Personagens

Antônio Leopoldino dos Santos

Aldora Estreia dos Santos                                        Personagens fantásticas

Narcisa Estrela dos Santos                                      Rei

Arioso Marinho                                                       Princesa Rosa Flor

 

Um grande lençol branco que muda de forma para sugerir — ora, uma rede de embalo, ora as velas de um saveiro. Música. No proscênio es­tão Leopoldino, Aldora Estreía e Arioso Marinho. Ao lado deste, um samburá.

LEOPOLDINO — Meu nome? Antônio Leopoldino dos Santos. A idade que eu tenho? E de 32 anos. Sim, sou casado. O nome dela é Al­dora Estrela dos Santos. Filhos? Tenho três. Isto é, agora são só dois, pois Narcisa, a mais velhinha, sumiu. E eu sei? A gente sabe os caminhos da vida? Tudo é muito misterioso. Sabe não. Ninguém sabe. Não. Deus mudou a vida dela Eu? Não! Não senhor! E um aleive! A mulher? Então Aldora Estrela, tu tem a coragem de dizer que me viu? Ah isso não! Ela me viu foi na rede do copiar — me balan­çando com a sumida menina — contando para ela aquele relato de um tal de Prinspo Formoso. Se Aldora Estrela até me disse assim: fez a menina dormir sem lavar os pés.

ALDORA —Eu? Aldora Estrela. Tenho 30 anos. Sim, sou casada com este homem aí, que, por desgraça, é o pai de meus filhos. Sim, tive três, Narcisa, a falecida, era a mais velha. Tinha 10 anos. Ago­ra são só dois: Alaore Lael,, o caçula. Narcisa? como era ela? Ah, era lourinha, lourinha. Excelências, ai quem me dera a minha fi­lha de volta! Que eu me encontrasse de novo com a minha filha. Seria um sonho. Um lindo sonho! ,

LEOPOLDINO — Pois pra mim a volta dela é garantida. É uma certeza. ALDORA (mostrando uma bonequinha) — Cacheada ver uma boneca. Como esta bonequinha que era dela. Doutor eu juro! Minha gente eu juro! Juro como ele deu a minha filha pra Janaína. Pois se ele prometeu?

LEOPOLDINO — Eu prometi?

MÚSICA, O LENÇOL SUGERE, AGORA. UMA REDE NO PROFUNDO AZUL DA TARDE. E NELA VAI DEI­TAR-SE LEOPOLDINO. SURGE NARCISA, QUE VEM SENTAR-SE NAS PERNAS DO PAI.

NARCISA — Conte de novo, meu pai

 

 

LEOPOLDINO — Não te contei vinte vezes? Agora vou contar a de Janaína.

NARCISA — Não, não quero a de Janaína.

LEOPOLDINO — Por quê? Você não gosta da Rainha do Mar? De nos­sa Mãe Janaina? Ela é sua madrinha. Sabia?

NARCISA (com a mão na boca do pai) — Para. Conte a estória do Prinspo Formoso. Conte mais. Conte. Ela é bonita.

LEOPOLDINO — Então o pai tinha três filhas e ia fazer um viajão de lé­guas e muitas léguas.

NARCISA — Como era ele?

LEOPOLDINO — Era assim como eu, um pescador, sendo que era Rei. Então a primeira filha, que atendia pelo nome de Mafalda, pediu que ele, na volta, trouvesse para ela um vestido da côr do campo com as fulores. Lianor, a segunda, pediu que ele trouvesse um vestido da côr do céu com as estrelas.

NARCISA — E a terceira? A de nome Rosa Flor? Já sei. Ela pediu um vestido da côr do mar com os peixinhos.

LEOPOLDINO — Podia ter sido, que no coração dela é o que ela queria mesmo era esse vestido, pois ela, como você, Narcisa, gostava de tudo que era do mar.

NARCISA — Então, o que ela pediu?

LEOPOLDINO — Ela pediu uma flor.

NARCISA — E eu? Tinha pedido o quê? Deixe eu ver. Ah, eu pedi a bo­neca Mãezinha. Não foi?

LEOPOLDINO — Foi. Então Rosa Flor pediu ao pai a flor mais linda do mundo! “E quando inteirou 6 meses/ o Rei para casa voltou/ tristonho desconsolado/ pela flor que não achou/ logo pra filha estimada/ que nunca lhe incomodou”. Quando faltava uma légua/ para em casa ele chegar/ avistou de muito longe/-

'NARCISA — “um sombrioso pomar/ perto dum velho castelo/ onde devia passar.

LEOPOLDINO — “Havia então uma roseira/ ornamentando o portão/

NARCISA — “e uma rosa vermelha/ perfumava a região”.

SURGE O REI.

LEOPOLDINO — “Quando o velho Rei contente/ a linda rosa avistou/

NARCISA — “de Rosa Flor se alembrou.

LEOPOLDINO — Mas — “foi justo tirar a flor/ e uma voz assim dizer:/ só pode levar a rosa/ se você me prometer/ que chegando à sua casa/ a primeira coisa que ver/ me trouver com 8 dias/ sob pena de morrer. Então o velho lembrou-se que via era cachorrinha disse de pronto: prometo”.

NARCISA — Prometeu a Tuninha?

LEOPOLDINO— Sim — “pois ele tinha a certeza/ que o primeiro ente que via/ era a cachorra Tuninha/ então arrepetiu: prometo/ quero é a rosa vermelha/ para da/ a minha filhinha”.

O REI EXIBE UMA FANTÁSTICA ROSA VERMELHA. E QUANDO VAI SAIR, ENCONTRA-SE COM A PRINCESA ROSA FLOR. A PRINCESA, ALEGRE, RECEBE A FLOR E O REI, CHORANDO, A ABRAÇA.

ROSA FLOR — “O que foi, meu pai? O que tendes?

REI — “Seu presente, minha filha,/ no Reino de Alisbão/ não en­contrei a meu gosto/ nem que pagasse um milhão/ voltava tris­te para casa/ por esta justa razão”.

NARCISA — Não havia flores?

LEOPOLDINO — As florisbelas, não.

ROSA FLOR — “E por que chorais, meu nobre pai?

REI — “Então quando.vinha de volta/ avistei esta linda flor/ e foi quan­do ouvi uma voz/ que assim me interpelou: / nobre Rei, para colher esta rosa/, precisa me prometer/ aquilo que lhe apareça/ ao chegar na sua casa”.

LEOPOLDINO — “Então o Rei disse que prometia/ pois toda vez que ali chegava/ quem na quina o esperava/ era a cachorra Tuninha”.

NARCISA — Mas dessa vez foi Rosa Flor.

ROSA FLOR — “Nobre pai, eu irei. Irei para esse castelo, pois meu co­ração só me diz que é a morada de um Prinspo Formoso e En­cantado. E lá serei feliz”.

DESAPARECEM REI E ROSA FLOR.

LEOPOLDINO — Tu me achas, filhinha, parecido com o Rei?

NARCISA — Acho.

LEOPOLDINO — E eu te acho mais linda que a Rosa Flor.

NARCISA — Devera?

LEOPOLDINO — Então Rosa Flor, muito corajosa, foi para o castelo, e ali, depois de um mês, a voz desencantou num lindo Prinspo, e casou com ela. Tudo na maior riqueza. Muita fartura, muita comida nas mesas!

 

ALDORA APROXIMA-SE DA REDE.

ALDORA — Pára com tanta estória de encantos e farturas. Garanto que a Narcisa dormiu escutando estas bobagens. E nem lavou os pés.

LEOPOLDO E ALDORA APROXIMAM-SE DO PROSCÊNIO, ONDE ESTÁ ARIOSO.

ALDORA — Prometeu, doutor, prometeu.

LEOPOLDINO — Tu e tuas suposições.

 

ALDORA — Dizendo ele que dava a Janaína um dos filhos, caso regasse um peixe — muito grande — para resolver as dificuldades dele.

LEOPOLDINO — Tu ouviu foi a estória de Rosa Flor.

ALDORA — Foi não. Foi a tua. A do peixe.

LEOPOLDINO — O doutor acha que um mero de cem quilos é peixe grande?

ALDORA — Eu acho.

LEOPOLDINO — Ela morre, doutor, e não conhece nada nem de peixe nem de pescaria. Se fosse um marlim de 600 quilos, aí sim, aí ela codia fazer as suposições. Porque só Mãe Janaína seria capaz de me ajudar a botar o bruto de um marlim dentro do meu saveiro.

ALDORA — Tá aqui quem me deixa mentir. Disse alto e bom som, pra todo mundo escutar. Compadre Arioso escutou. É testemunha.

ARIOSO — Meu nome? E Arioso Marinho. Idade? Tou na casa dos 25. Não, sou solteiro. Ouvi. Ouvi o compadre Leopoldino dizer assim mesmo. Assim como? Assim, do jeito que a comadre Aldora Estreia disse. Se eu posso repetir? Posso, nhor sim. Ouvi bem. Ele dizia assim: “se Janaína me ajudar a pegar um peixe grande, que dê para saldar as minhas dívidas e ainda sobre, prometo dar um de meus filhos para ela. “E o compadre pegou ou não pegou o peixe?

LEOPOLDINO — Peguei um mero de 100 quilos. Lhe pergunto compa­dre Arioso — isso é peixe grande?

ARIOSO — Bom, tem mero e tem marlim até de 600 e mais quilos. Mas um mero de 100 é peixe da gente não desprezar. E sorte grande.

ALDORA — Pra mim é como se fosse um boi. Dantes, doutor, ele só conseguia pegar as miunças do mar.

ARIOSO — E com aquele peixe penso que o compadre — vendendo ele no quilo — deu para saldar todas as dívidas e ainda ajuntou dinheiro

LEOPOLDINO — É verdade.

ALDORA — E quem me diz que ele agora é pescador desses peixinhos refugos, alimento de gato e rato? Só traz espécies de primazia. Um despotismo de garoupa, anchova, albacora, badejo, espadarte. E até o peixe pampo — a galinha do mar — ele traz e com ele pre­senteia os ricos!

LEOPOLDINO (de rosto baixo) — Doutor, Aldora Estrela fala e sonha demais com peixes finos. Penso que devido ela ter sido criada no meio das farturas.

ALDORA — Graças a Deus meu pai sabia ir buscar o peixe. Um en­tendido. Um grande pescador! Não era um xem-xem-xem, um es­morecido, um, que nasceu para as miunças. Um que, para pes­car, se vale dos santos. Dos altos poderes.

LEOPOLDINO — Agora, o peixe sendo pescado por mim, ela não re­conhece.

Não me considera com essa capacidade.

ARIOSO — Na verdade o compadre tem andado com uma grande sorte. ALDORA — Sorte lá nada, compadre Arioso! Nem sorte nem compe­tência. Foi pauto. Um pauto. Um dia ele chegou bastante “to­cado”. Então eu vi a Narcisa ir abraçar ele. E, juro, ouvi uma con­versa de reinos encantados. Isso nada prova? O senhor acha?

LEOPOLDINO SE ENCAMINHA PARA O OUTRO PLANO. NARCISA VEM

AO SEU ENCONTRO.

NARCISA — Que foi, meu pai, o que tendes?

LEOPOLDINO — Seu presente, minha filha, no Reino de Alisbão.

Eu não queria me apartar de você. Antes fosse a Tuninha. NARCISA — Ora. a Tuninha é uma cachorra pulguenta. Antes me carregue, que no Reino de Alisbão vou comer tudo quanto é de do­ce e mel!

LEOPOLDINO — E não vai sentir a falta de seu papai?

NARCISA — E lá não é um Reino Encantado? Não tem uma car­ruagem como a da Maria Borralheira? Eu mando a carruagem bus­car o meu paizinho. E aí o meu paizinho se vira no Prinspo For­moso e aí - com o vestido da côr do céu com as estrelas — eu cacaso com ele, que é você, paizinho, e tudo se desencanta.

 

LEOPOLDINO ABRAÇA A FILHA E DEPOIS VOLTA AO PROSCÊNIO.

ALDORA — Se eram muito apegados um com o outro? Bom, viviam num chamego... mas não penso que fosse do coração. Pra mim, doutor, Leopoldino tava forçando a barra. Em que sentido? Não, não naquele, mas penso que noutro. Por exemplo? Não sei meu coração só me diz. Ele enchia as oiças dela de estórias bestas. LEOPOLDINO — Tu tem coragem de pensar essas coisas? Todo pai acarinha os filhos, doutor. Aldora Estrela também acarinha o Alaô. E eu nunca ia pensar mal. É mãe. No alto mar? O que eu fazia com ela no alto mar? Nhor não, qual o quê. Eu brincava com ela era na rede, no copiar da casa, ali, no aberto para o vento e os coqueiros. No meio de todo o mundo. Para o vento do mar e os coqueiros.

ALDORA — É tu mesmo que tá se denunciando. Eu nem nunca pen­sei naquilo. Falei de estórias de encantos. Agora me diga: por que Narcisa choramingava? E que ela não queria seguir no bar­co, sou capaz de jurar.

LEOPOLDINO — Se ela choramingava devia de ser por outros motivos. Penso que era por outros motivos. A vida, doutor, tá difícil, anda

 

difícil, muito arrochada, muito cercante. Cercante como? Pela fo­me? Não, doutor, prefiro não tocar nessa palavra. Releve-me. Tá bom, eu aguardo, mas de fé no que lhe digo. Então, para ninar a menina, eu contava estórias para ela. Estórias de trancoso, de encantos. Aldora Estrela não sabe distrair uma criança.

ALDORA — Graças a Deus. Tenho a consciência tranqüila. Tranqüila. Sou uma mulher honesta, neste ponto, tranqüila.

LEOPOLDINO — Pois eu, doutor, me gabo disso. Sei espantar a tris­teza dos olhinhos de um menino.

 

LEOPOLDINO VOLTA AO PLANO DO LENÇOL. NARCISA SURGE CORRENDO.

LEOPOLDINO — Vem cá, Narcisa, vem cá.

NARCISA — Tou brincando, paizinho, tou brincando.

LEOPOLDINO — Não vem me abraçar?

 

NARCISA ABRAÇA LEOPOLDINO.

LEOPOLDINO — Sabe, filhinha, Janaína é muito boa.

NARCISA — Eu sei. Ela é a Rainha do Mar.

LEOPOLDINOI — E tua madrinha.

NARCISA — É. Ela me deu este anelzinho. Mas eu não conheço ma­drinha. Por que paizinho não me leva no palácio dela?

LEOPOLDINO — Tu gostava de ir?

NARCISA — Gostava.

LEOPOLDINO — Fica no fundo do mar.

NARCISA — Então não pode. A gente se afoga.

LEOPOLDINO — Afoga não, que a Rainha separa as águas

NARCISA — Ah. mas eu ia ter muito medo.

LEOPOLDINO — Bobagem. E lá tem de um tudo. Uma cozinha como nuncas se viu maior.

NARCISA — Paizinho já foi lá?

LEOPOLDINO — Em sonhos. Só em sonhos. A Rainha gosta muito de crianças. Lá vi meninos de todas as versidades, meninas fêmeas e meninos machos.

NARCISA — Fazendo o quê?

LEOPOLDINO — Comendo e brincando. Os machinhos galopavam nos cavalos marinhos — que eram grandes cavalos marinhos — e as meninas — todas do teu tamanho — brincavam com enfeites de coral e faziam vestidinhos de algas.

NARCISA — E tinham bonecas?

LEOPOLDINO — Pois então? E cada uma é mais galante.

NARCISA — A Suzi, a Soninho, a Risinho, a Dadi?

 

 

LEOPOLDINO — Toda versidade de bonecas. E tudo que é de peixe por ali, mansinhos, andando pelo palácio. Tua madrinha é muito boa.

E de uma lindeza que é ver uma santa.

NARCISA — Ela me deu este anelzinho de pedra. Mas por que deixou ele na praia? Podia ter sumido na areia.

LEOPOLDINO — Sumia não, que ela tem poderes. Altos poderes. Eu tava dormindo, ela não queria me acordar. Vi tudo em sonhos. Eu sinto que ela te quer muito bem.

NARCISA — Mas eu tenho minha mãe que se chama Aldora Estrela dos Santos, e me quer muito bem

LEOPOLDINO — E eu?

NARCISA — Ah, meu paizinho me quer muito mais. (Beija-o).

NARCISA SAI CORRENDO E LEOPOLDINO VOLTA AO PROSCÊNIO.

ALDORA — Eu só sei doutor, é que Narcisa, dantes, era muito apegada a mim. Mas o homem foi se valendo de quanta coisa po­dia para apartar ela da mãe. Tenho certeza. (Finge o choro).

LEOPOLDINO — Aldora Estrela, tu me levantas este falso? Eu nunca pensei em tirar teus filhos de teu colo. Acontece que eu também sou um pai amoroso e não gostava de ver meus filhinhos sofrendo necessidades.

ALDORA — Ah, é? E a peixaria que tu passou a trazer? E o baita daquele mero? Antônio Leopoldino dos Santos deu de prosperar num relampo. Uma coisa assim, da noite para o dia. O doutor está me entendendo? Qual o quê! Ninguém mais chorava por não ter comida não. Aliás, nunca deixei ninguém chorar por isso. Graças a Deus sou disposta. Trabalho me viro. Não preciso torar o dedo para ganhar um peixe. Fosse eu viver de brisas e de sonhos e es tava morta.

 

LEOPOLDINO ENCAMINHA-SE PARA O OUTRO PLANO. RETIRA DO BOLSO UM CATAVENTG DE PAPEL E SAI A CORRER. SURGE ENTÃO NARCISA, QUE LHE ARREBATA O CATAVENTO. CORREM,

BRINCAM, SORRIEM.

LEOPOLDINO (agarrando Narcisa nos braços) - Upa! Sabe que Mãe Janaína tem sido a nossa protetora? Acho, é porque ela gosta muito de você, Narcisa. Sabia que o teu papai jogava as linhas no mar — dia e noite, dia e noite na espera — e o saveiro voltava vazio? E o anzol limpo, aquele gancho brilhante, e na ponta só um pedaço de isca desbotada. Eu sentia uma fisgada na boca do estômago. Então, eu prometi.

 

NARCISA SE DESPRENDE DE LEOPOLDINO E SAI A CORRER.

LEOPOLDINO — Tão espertinha. Tão arisca...

 

FICA NO MESMO PLANO A CONTEMPLAR AS EVOLUÇÕES DE NARCISA COM O CATAVENTO DE PAPEL.

ALDORA — A minha Narcisa que eu tanto amava. Taí seu Arioso, o meu compadre, que não me deixa mentir. Ouviu ele prometer a Janaína — caso fosse feliz na pesca — que dava a ela, Janaína, um de seus filhos. Se foi em casa? Foi, compadre Arioso? Se o compadre tava em casa naquela hora? Tava. Fazendo o quê? Fa­le, compadre.

ARIOSO — Bom, disto eu não me alembro. Quero dizer, do lugar. Penso que não foi lá.

ALDORA — E. As vezes a gente não guarda o lugar. Sabe que ou­viu. Se lembra. Mas não sabe onde. Me parece que ele estava interessado em me arrastar para as angústias. Por quê? Porque não sei. Ah, eu sei que vosmecê tá perguntando é a ele. Me des­culpe.

ARIOSO — O nome que eu ouvi? Se eu ouvi ele dizer o nome de Narcisa? Não, da menina não. Falava de uma tal de Rosa Flor.

ALDORA (numa risadinha) — Para disfarçar, doutor para disfarçar.

ARIOSO — Sim, penso que pra disfarçar, pois de menina fêmea ele só tinha a Narcisa.

ALDORA — Eu? Onde eu estava? Eu tava no quarto e ele, Leopoldino, no copiar, na rede. Se dava pra escutar? Dava, que as pa­redes são tecidas de palha de coqueiro. O vento passa por elas.

NO OUTRO PLANO

NARCISA — Sabe, paizinho, se não fosse seu Arioso...

LEOPOLDINO — Por quê?

NARCISA — Por que paizinho não pesca de noite, como seu Arioso? LEOPOLDINO — Porque de noite eu quero estar com vocês, nesta nos­sa casa. Não é bom?

NARCISA — E. Seu Arioso também é muito bom. Ele brinca com a gente. Brinca até com mãe Aldora Estreia. Alegre. Dá até dinheiro. LEOPOLDINO — E. Compadre Arioso é muito bom. Mas o dinheiro que ele dá é para você, o Laô e o Lael, mode comprar bolacha, não

é?

NARCISA — Dá pra gente e dá para a mãe também, que eu já ví. Mui­to bondoso. Chega até a dormir na nossa casa.

LEOPOLDINO – De dia?

 

 

 

NARCISA — E então? Ele não pesca é de noite?

LEOPOLDINO — Todo dia?

NARCISA — Não. Algumas vezes, pois a gente quer sempre brincar com ele. Ele faz macaquice. E muito engraçado, sabia?

LEOPOLDINO — É, Narcisa, carreira de pobre é assim. E agora eu sei com toda a certeza — de que eu só disponho de você. De mais ninguém. Só você é minha.

NARCISA — Pai tá dizendo o quê?

LEOPOLDINO — Nada não. Bobagem.

 

NARCISA SAI CORRENDO E LEOPOLDINO VOLTA AO PROSCÊNIO

LEOPOLDINO — Agora, doutor, eu pergunto; e onde estava o compa­dre Arioso quando ouviu esse voto? Faz tempo que eu não en­contro o compadre na minha casa. Nem aos domingos ele tem apa­recido, para um joguinho de truco. Agora Aldora Estrela diz que Arioso ouviu também a promessa que eu fiz a Janaína. Os dois ouviram. Então torno a perguntar: aonde estava, naquela hora, o compadre Arioso?

ALDORA — Penso que quem pergunta são os excelentíssimos e não o assassino. Tá certo, doutor, tá certo, eu me calo.

ARIOSO — Eu? Aonde eu estava? Ora, na beira do cais. Eu, ele e a mulher dele, comadre Aldora Estrela.

ALDORA — Verdade! Naquela hora eu não estava na camarinha e nem Leopoldino na rede do copiar, com Narcisa. Nós três, eu, ele e compadre Arioso, nós três estávamos na beira do mar. Lembro- -me como se fosse hoje, Leopoldino espichou a vista e o sus­piro e falou: “se eu conseguir pescar um peixe, bem grande, que dê para saldar as minhas dividas, e ainda sobre, eu dou um de meus filhos para vós, Senhora Janaína, Rainha dos Mares! “Aí eu disse: “deixa de loucura homem! Onde já se viu?” Aí ele disse: “que é a vida? “E ele mesmo — sem olhar para ninguém — res­pondeu: “a vida é u’a mão de estrelas jogadas no azul”. Anoite­cia. Aí ele tomou o barco e saiu para a pesca. Foi pescar — pela primeira vez — de noite.

LEOPOLDINO AFASTA-SE PARA O OUTRO PLANO.

LEOPOLDINO (gritando) — Narcisa, vem cá...

 

APARECE NARCISA, MEIO DESCONFIADA.

LEOPOLDINO — Tu não me ouviu te chamar?

NARCISA — Escutei não.

LEOPOLDINO — Que que tu tava fazendo?

 NARCISA — Tava brincando com a minha bonequinha.

LEOPOLDINO — E quem mais?

NARCISA –Eu, Laô e Lael. A gente fazia comidinhas de folha.

LEOPOLDINO - Me abraça. Eu queria te ver.

NARCISA (abraçando o pai) – Pai prometeu me levar, de presente, para Janaína? Mãe falou.

LEOPOLDINO — Ela falou? Como que ela falou?

NARCISA – Falou que presente a gente manda, mas é espelho, pente, sabonete, colar e flor. Sendo tudo branco.

LEOPOLDINO — Então, Narcisa, era no alto mar. Aí eu joguei a li­nha e num segundo veio aquela ferroada violenta, aquele puxão. Larguei mais linha, linha, para deixar o bicho correr, correr até can­sar. O barco estremecia como se fosse se arrebentar. Era puxado pelo peixe. Depois as rebanadas foram se arrefecendo, o peixe estando cansado, e aí chegou a minha vez. Fui puxando a linha, puxando... Aí, sabe o que eu puxei?

NARCISA — Um mero!

LEOPOLDINO — Um bruto! 300 quilos! Joguei — nem sei onde ar­ranjei tanta força — joguei o monstro no barco e foi a conta de chegar, talhar e retalhar as postas. Vendi tudo! Paguei o que devia e ainda sobrou dinheiro!

NARCISA — Aí pai comprou a boneca Mãezinha para mim!

LEOPOLDINO — Justo foi! Narcisa, minha querida Narcisa, e desna aquele dia — o dia — nunca mais peixe deixou de aferroar o meu anzol: enchova, espadarte, albacora — as albacoras — e até um marlim – lá das profundezas. — veio correr na linha. Que foi is- . to? A causa disto? Deste milagre? Até o pampo — com os po­deres de Janaína — este teu pai Antônio Leopoldino dos Santos tem pescado e presenteado os amigos. A macia carne do pampo, galinha do mar! Não parece encantamento? Está cochilando? Não escuta o que teu pai te conta? Narcisa!

NARCISA DORME NO CHÃO, MUITO BRANCA E MUITO LOURA,

LEOPOLDINO BEBE NO GARGALO DE UMA GARRAFA.

VOLTA AO PROSCÊNIO.

ALDORA: Agora eu apelo para o coração de vosmercês todos, e

 

 

 

 

 

 

 

pergunto: por que foi ele carregar logo a minha Narcisa? Uma me nina disposta que fazia gosto. Me ajudava na casa, varria, lavava... LEOPOLDINO — Seu Delegado me entenda, eu não raptei Narcisa. Eu não fui a causa de sua perdição. Mesmo, penso antes em sal­vação que em perdição.

ALDORA — Vosmercês tão entendendo o que ele vai dizer? Vai dizer que Narcisa está viva e feliz. Narcisa apartada de mim. Mas era a minha filhinha, dei a ela o meu leite e é isto o que eu quero que vos­mercês me entendam. Sim, seu Delegado, releve o meu desadoro, a minha pouca fé, mas não sei se a minha Narcisa se salvou.

LEOPOLDINO VOLTA PARA O PLANO ONDE DORME NARCISA. ALDORA DESCANSA A CABEÇA NO OMBRO DE ARIOSO. MÚSICA.

LEOPOLDINO (cantando) — “Partiu então a Princesa/ chorando a amarga sorte/ chegou à beira da praia/ as ondas batiam forte nisto surgiu Janaína/ para livrá-la da morte.

“Minha filha não lamente/ os golpes de sua sina/ quem se banha em minhas águas/ não sofre morte ferina/ Susana está no poder/ da Rainha Janaína.

                         “Então surgiu uma moça/ dentro do mar se banhan­do/ disse a Sereia: Susana/ teu pai está te chamando/ Leva Sar­gento a menina/ que o Rei está esperando”.

ARIOSO AFASTA-SE DE ALDORA. SENTA-SE E ACENDE UM

CIGARRO.

ARIOSO (fumando) — Vossas mercês consentem que eu solte umas baforadas? Não foi por treição que me ví metido nesta estória. Não sou de acusar ninguém.

ALDORA — Tudo foi feito assim, nas indolências, nos nevoeiros.

 

LEOPOLDINO VOLTA A BEBER NO GARGALO DA GARRAFA.

NARCISA LEVANTA-SE E APANHA UMA PEQUENA TROUXA.

NARCISA — Canta mais, paizinho. Seu cantar é bonito.

LEOPOLDINO — Tu quer?

NARCISA — Isto? Eu não. Nem nunca tomei isto.

LEOPOLDINO — Experimenta. E bom. Esquenta o frio.

NARCISA — Mãe diz que isto queima a goela da gente. Arde.

LEOPOLDINO — E como não queima a minha? Olha. (Toma novo gole e estala a língua). E gostosa. Sabe que esta tem o nome de Branquinha? Foi para satisfazer tua madrinha, pois ela gosta de tudo muito branco, com muito asseio. Tu hoje vai conhecer ela.

Trouxe tuas coisas todas?

 

 

 

 

 

NARCISA — Tá tudo nesta trouxa.

LEOPOLDINO — Tua mãe não viu? Eu te pedi cuidado, que tua mãe é implicante e capaz de não deixar tu bolir no baú dos guardados.

NARCiSA — Fui devagarzinho. Até as fulores brancas eu trouxe e mais a grinalda e o véu de minha Primeira Comunhão.

LEOPOLDINO — Eu sabia que tu é uma menina muito esperta. “En­tão tire a rosa e leve ela”, disse a voz quase a gemer.

NARCISA — Meu pai repete o Prinspo Formoso. Antes me conta a do Sargento Verde.

 

ENTRA O REI

REI — Oh, joguei minha tarrafa nágua, joguei e tornei a jogar ‘— ontem como hoje — e nenhum peixe me veio. Estou desolado pen­sando na família que não tem nada para comer.

LEOPOLDINO — “Rei Roberto, se me promete trazer/ em chegando a seu palácio/ a primeira coisa que lhe aparecer...”

NARCISA — Como na estória do Prinspo Formoso?

LEOPOLDINO — Fale baixo, te peço. E. O pedido é sempre o mesmo.

REI — Prometo.

LEOPOLDINO (baixo) — E que ele tava certo que, chegando à praia, a primeira coisa que ele ia encontrar era a cachorrinha Piaba.

 

O REI – ALEGRE – EXIBE UMA TARRAFA CHEIA DE PEIXES PRATEADOS. SURGE ROSA FLOR, AGORA CHAMADA MAROCAS

REI (com as mãos nos olhos) — Cegai-me, ó céus, cegai-me!

ROSA FLOR — Que tendes, senhor meu pai?

REI — Ao invés de tí, Marocas, preferia antes ter encontrado a cachorrinha Piaba.

ROSA FLOR — Preferia uma cachorra pulguenta à vossa filhinha?

REI — E que, para encher a canoa de peixe, prometi a Janaína a primeira coisa que viesse me encontrar. E foste tu, minha Maro­cas.

ROSA FLOR — Senhor meu pai, não choreis por tão pouco. Pois se Janaína me chama ao palácio dela, no fundo do mar, é para eu ser feliz. E mais feliz vou ficar porque sei que na vossa tarrafa nun­ca mais faltará peixe.

 

O REI ABRAÇA ROSA FLOR, DESAPARECEM. NARCISA SENTA-SE NO CHÃO E BRINCA COM UMA BONECA. LEOPOLDINO VEM JUNTAR-SE AO GRUPO DO PROSCÊNIO.

ALDORA – Foi tudo assim, com muito quebranto.

LEOPOLDINO — Não, não foi com outra intenção senão a de levar a menina para um passeio. Naquele dia ela acordou cedinho, mais cedo que todo o mundo. Não sei o que deu nela — se já tava tocada pelos altos poderes — o certo é que ela me apareceu quando eu me preparava para sair para a pesca. Ai eu disse: “tu já tá acordada? “E ela respondeu: “quero que você me leve no seu barco, para a pesca”. Então eu disse: “filhinha, no saveiro a vida é sem distração, só muito vento e sol e o sol queima de­mais”. Aí ela chorou dizendo: “eu quero, eu quero. “Era um chorar chega o coração me apertou, e pensei: “meu Santo, será que Janaína quer ver a afilhada dela passeando no seu mar?” Aí o jei­to foi eu consentir e dizer: “pois vem”.

ALDORA — Doutor, isto é uma conversa mal contada. Pra mim ele embebedou a menina e carregou ela, dormindo. Eu tenho o sono maneiro e não ouvi nada. Choro nenhum. Foi tudo feito assim, com muita ilusão.

 

LEOPOLDINO VOLTA A ENCONTRAR-SE COM NARCISA.

LEOPOLDINO — Que que tu achas, Narcisa?

NARCISA — Da gente passear? Ah, eu acho bonito!-

LEOPOLDINO — Sabe, filhinha, que eu ando apanhando muito peixe, não sabe?

NARCISA — Tou cansada de saber. Sei que vosmecê pegou o maior marlim do mundo!

LEOPOLDINO — Não era um marlim, era um mero. um mero de 300 quilos! Esbanjei dinheiro!

NARCISA — Pai se parece com o Rei do Prinspo Formoso, pai da Ro­sa Flor, o Rei do Sargento Verde, pai da Princesa Susana, o Rei Roberto, pai de Maroquinha. Se parece com todos os reis.

LEOPOLDINO BEBE.

NARCISA — Por que meu pai tá entrando na azulzinha?

LEOPOLDINO — E tu, não vai te aprontar?

NARCISA — Janaína vem agora?

LEOPOLDINO — Se sabe quando? Qualquer instante pode aparecer. Se ela é encantada!

NARCISA — Paizinho de coroa era ver um rei.

LEOPOLDINO — E tu, filhinha, é ver Rosa Flor.

VOLTA LEOPOLDINO PARA O PROSCÊNIO.

ALDORA — Eu sei que ele só carregou Narcisa pra me machucar. Co­mo se ela não fosse filha dele, também. Um desalmado!

 

LEOPOLDINO — Não, doutor, agora eu lhe confesso. Tou pronto a confessar tudo. Tudinho. Eu não levei a menina com aquela inten­ção.

ALDORA — Tá vendo, compadre Arioso? E que outra intenção era a de­le, senão pirraçar a gente, por pura vingança?

LEOPOLDINO — Isto é ela quem diz. Me diga, me digam, quem pode adivinhar o que se passa na cabeça de cada vivente?

ALDORA — Mas tu falou alto, prometeu! A coisa não se passou só no silêncio do teu juízo. Tu falou alto, pra todo mundo escutar. Prometeu:

LEOPOLDINO — Podia até prometer — pois posso prometer o que é meu — mas não havia de ser em voz alta, para o teu entendi­mento e de compadre Arioso.

ALDORA — Esse voto eu ouvi. E tanto é que, depois dele, tu deu de trazer do mar tudo que é versidade. E me disse, até, ameaça­dor; “te apuluma Aldora Estreia, que agora chegou o tempo de jogar as linhas e puxar o preço. “Não, não foi peixe. Ele disse — ouvi bem — “puxar o preço”. E mais: “acabou-se a miséria. Tu agora vai ser uma mulher honrada”. Como se eu fosse o quê?

LEOPOLDINO — Não havia de ser para o teu entendimento e de com­padre Arioso.

ALDORA — Por que — te pergunto — já que tu queria dispor de um inocente, por que não ofereceu Lael que é aleijado? Sem re­missão? Como? Se faço diferença? Se os dois não são meus filhos? São, doutor. Mas entre uma menina se pondo mocinha e sadia, e uma criatura sem remissão, como é o meu Lael, antes o pobrezinho. Ou será que Janaína não gosta de refugo? Ela não é a Mãe de todos? A bondade dela levaria Lael, que ia viver, então, muito feliz, no seu reino. Que que tu diz, Arioso? Tu me acha uma mãe de preferências? Fala.

ARIOSO — Posso falar, doutor? Tá certo. Pois é. Olhe, Aldora Es­treia, eu não acho nada.

ALDORA — E Nessas horas ninguém acha nada. Ninguém diz o que está lá dentro. Mas eu digo. Eu acho.

LEOPOLDINO VOLTA AO OUTRO PLANO. SENTA-SE. NARCISA SEGURA-LHE AS ORELHAS.

NARCISA — Seu esquecido, esquecidão...

LEOPOLDINO — Que foi?

NARCISA — Se lembra do que me perguntou ainda agora? Se lem­bra não?

LEOPOLDINO — Ah, é! Narcisa, menina vadia, cadê a tua roupa?

 

 

 

NARCISA DESFAZ A TROUXA E VAI VESTIR O

SEU VESTIDO BRANCO.

NARCISA — Tá aqui.

LEOPOLDINO — Não. Deixe que eu te apreparo.

 

LEOPOLDINO VAI DESPINDO A FILHA, PARA VESTIR NELA O

VESTIDO DA PRIMEIRA COMUNHÃO.

LEOPOLDINO — Credo! Tá de peitinho! Despontando! tenha vergonha não. E uma mocinha. (Abraçando-a). Você gostado seu paizinho? Muito, muito?

NARCISA — Chega, paizinho, chega. Vosmecê tá me apertando. Minha mãe disse que é para eu não deixar ninguém pegar aí, que faz mal.

LEOPOLDINO — Eu sei. Mas é só os meninos machos. Teu paizi­nho pode. Vem cá...

NARCISA — Não. Vosmecê tá diferente. Vosmecê tá com bafo de cachaça. Me abrace não, que minha mãe não aprova. Não, me deixe. Me deixa ou eu grito pela minha madrinha. Pela minha ma­drinha!

 

LEOPOLDINO CAI AJOELHADO, DE MÃOS SUPLICANTES.

LEOPOLDINO — Soberana Rainha das Águas, minha Mãe Janaína! Arastai de mim as malinidades do Demônio! Pronto. Agora estou limpo de coração. Vem. Deixa em pôr o véu.

NARCISA APROXIMA-SE DE LEOPOLDINO E ESTE LHE

PÕE NA CABECA O VEU E GRINALDA.

LEOPOLDINO — Galante como uma santa! Cadê o buquê de jasmim caiano?

 

NARCISA APANHA O BUQUÊ DE JASMINS.

LEOPOLDINO — Galante, galante! Agora a fita azul, que é da cõr do mar de Janaína.

 

LEOPOLDINO PÕE UMA FITA AZUL NA CINTURA DE NARCISA.

LEOPOLDINO — E então? Tu é minha, e eu te consagro à Rainha do Mar. Os braços abertos de tanta alegria!

NARCISA, DE BRAÇOS ABERTOS, FICA PARADA EM CENA. LEOPOLDINO VOLTA AO PROSCÊNIO.

 

LEOPOLDINO — Doutor, me aceite nesta opinião. Me diga se estou

certo. Eu podia prometer o que não é meu? Meu mesmo é minha Narcisa. Laô Lael, ser não. Então a menina chorava. Aí me veio um nervoso... Por que ela cismava em querer dar um passeio no barco? Por que acordou de madrugadinha para dizer que queria co­nhecer o mar sem beira? A gente sente que está sendo determi­nado. E nada pode fazer.

ALDORA — E para um passeio, carecia de arrumar uma trouxa onde levava até o vestido da Primeira Comunhão? Seu Delegado, se o caso não foi um voto, então como se explica tudo isso? Seu Delegado aceita um pampo? Aquele peixe raramente que a gente pesca para presentear os amigos? E que Leopoldino doravante vem trazendo dúzias de pampos para casa. Aceita? Desculpe, doutor, se estou me adiantando, se estou sendo saliente...

 

LEOPOLDINO VAI PARA JUNTO DE NARCISA.

NARCISA — Paizinho, estamos rodeados de azul e vento. Não vejo terra. Tenho medo.

LEOPOLDINO — Tenha medo não, Narcisa. Tenha não. Para que ter­ra? Terra é para os homens, e para a fome dos homens. Estamos no Reino de lemanjá. Não é bom este cheiro do mar alto? Este remoer de ondas?

NARCISA — E. Mas a água é zangada, é forte e fria. E lá dentro, os peixes ferozes. Os bandos de peixes ferozes. Eu tenho medo.

LEOPOLDINO — Bobagem, filhinha. A Rainha chegando, tudo serena. Os peixes ficam mansinhos. A água parada, morna. Aí o mar se abre e aparece a carruagem de Janaína. (Ajoelhando-se.) De nossa boa, santa e poderosa Mãe Janaína.

 

LEOPOLDINO VOLTA AO PROSCÊNIO. ENQUANTO. ESTE SE RETIRA, NARCISA CORRE AO REDOR DO TOLDO E GRITA:

NARCISA — Paizinho deixa eu te dizer uma coisa? Eu fugi para te acompanhar. (Mais alto:) Para te acompanhar.

ARIOSO — Não. Prá falar a verdade eu não vi nada. O homem dormia, só. O saveiro na deriva.

ALDORA (suspirando) — Que que se há de fazer quando dois se com­binam? Foi na confiança que pedi a compadre Arioso que saísse no saveiro dele à procura de Leopoldino. Ele diz que não viu na­da. Mas, daqui de longe, vi tudo, ou melhor, senti tudo.

NARCISA (gritando, alegre) — Paizinho deixa eu te dizer uma coisa? Eu fugi para te acompanhar. Mãe não aprova. Mãe desconfiava.

ALDORA — Não aprovava essas conversas de Reis e Princesas. De­pois, doutor, o que se pode esperar de um pai capaz de trocar a filha por um pampo?

 

 

ARIOSO — Um pampo não, um mero.

ALDORA — Fosse o diabo!

LEOPOLDINO — Saravá, meu pai! Doutor, esta mulher desafia os Altos Poderes!  

ALDORA — Que que se pode esperar de um homem que tenciona, num barco, vestir a filha de branco? Com que intenção?

ARIOSO — Não, seu Delegado, nenhuma mancha. Nenhum sinal de luta, de violência. Tudo na mais santa paz. O compadre dormia. Cachaça? Bom, capaz que ele andou tomando umas e outras. Pe­sar de que, no mar, a gente costuma provar menos que na terra.

ALDORA — O que me invoca não é a bebedeira. Antes. Era a aten­ção dele para aquele aprontamento. Aprontamento como? O vestido, o véu, a grinalda. Uma criança ainda. Noiva de quem?

LEOPOLDINO — O doutor já relatou, no papel, que esta mulher anda nas trevas das obsessões? Não? Relatou não? Será que as exce­lências vão pensar o quê, de mim? Um aleive, um aleive! Agora, fosse eu falar das ações dela. Esta Aldora Estrela, minha mu­lher, pegada e amolegada pelo mundo.

ALDORA — Fale. Desabafe os seus ciúmes. Mas, fosse verdade, as ações eram só minhas. Não cortei, não atrapalhei o destino de uma criança. Lael? Mas é diferente, doutor. O aleijadinho é traste sem futuro. Não é, desamor de mãe. E quando pensei em Lael — acredite dos meus olhos brotaram pedras. Eu sei, doutor, eu sei que vosmecê está se cansando, que vosmecê quer fatos e não fantasias, como vosmecê bem diz. Fale, meu compadre Arioso.

ARIOSO — Falar?

 

LEOPOLDINO VOLTA AO PLANO DE NARCISA.

NARCISA — Meu pai está que parece longe... Se esqueceu até de jogar as linhas. Ei, Leopoldino, acorde...

LEOPOLDINO — Não aprova o quê? De que ela desconfia? Ela pensa que eu sou o quê?

NARCISA — Se embrabeça não. Venha cá, se zangue comigo não.

Eu não arrumei tudo e não vim? Não esqueci de nada. Pergunte: “Narcisa, você esqueceu de escovar os dentes?” Ande, pergunte.

LEOPOLDINO — Narcisa, você esqueceu de escovar os dentes?

NARCISA — Esqueci não, pai. Tá aqui a minha escova de dente e a minha branca pastinha fílipes.

VOLTA LEOPOLDINO.

ARIOSO — Então a mulher me acordou e disse: “levanta compadre

 

Arioso”. Que mulher? Aldora Estreia.

ALDORA — Na minha casa? Não, nhor não! Compadre Arioso drome é na casa dele. Credo! Deus me livre! É que eu acordei e não encontrei nem Leopoldino nem a menina. Depois vi o bauzinho aberto, sem o vestidinho branco e o véu. Ai me lembrei do voto do homem. Me lembrei das perturbações dele. De quando vem ne­le aquelas vágados.

LEOPOLDINO — Eu, perturbado? Doutor, esta mulher não está no juízo dela.

ALDORA — Me veio um sobrosso... O dia todo com aquele nó na garganta. Atravessado. Deu meio dia. Deu de tarde, Anoitecia. Então passou por aqui compadre Arioso Marinho, que faz a pesca de noite. Mas eu estava tão desadorada que compadre Arioso ficou pra me fazer companhia. O medo dele era que eu, naquela afli­ção, fizesse uma besteira.

ARIOSO — Confirmo, sim. Por que não saí no saveiro para procurar o barco de Leopoldino? Mas naquela noite, as nuvens se mis­turando com o mar, adiantava? Melhor era esperar o quebrar da barra e então sair para procurar o homem.

LEOPOLDINO — Aí está, doutor. Lá, eu larçando o anzol. Lá, a lancinante ferroada. E Aldora Estrela se consolando na companhia de Arioso. E quem me valia senão a fé? A enorme fé que tenho nos poderes da Senhora do Mar. Por que eu me lancinava? Eu, me sentindo anzol e peixe — o sangue a pingar no anzoi — me sentindo a galinha do mar. Por que o sacrifício de ser fisgado? Para ver e viver isto?

LEOPOLDINO VOLTA A ENCONTRAR-SE COM NARCISA.

NARCISA — Paizinho, me conte uma estória

LEOPOLDINO — Onde nós estamos? na rede ou no barco?

NARCISA — Na rede. No copiar. O vento batendo nas palmas dos co­queiros. Conte, conte mais.

LEOPOLDINO — Eu só sei contar estórias do agrado de nossa Mãe. Mas você já está cansada de ouvir.

NARCISA — Não, não estou. Conte.

 

ENTRA O REI, DE MAOS NO ROSTO.

LEOPOLDINO — “Meu bom Rei não se lamente/ dos golpes de sua sina/ quem se banha em minhas águas/ não sofre morte malina/ Maroca está no poder/ da Rainha Janaína”.

 

 

 

ENTRA ROSA FLOR.

ROSA FLOR — Benção meu pai.

REI — Deus te abençoe.

ROSA FLOR — Meu pai, beije sua filha Marocas. E toda semana venha aqui me ver. Mas me leve pra terra não, que lá é só tristeza. Aqui. no Reino de Janaína, eu tenho toda felicidade.

 

REI E ROSA FLOR DESAPARECEM, LEOPOLDINO DEIXA

NARCISA E VOLTA AO PROSCÊNIO.

ALDORA — Só me queixo das estórias de trancoso, que ele contava, contava. Encasquetando a menina, carregando a minha filha para outros mundos, os mundos dos ventos, das águas, dos nevoeiros.

LEOPOLDINO — Ah, excelências, ela fala desses mundos e me vem até água na boca. Pudesse eu, um dia, encontrar essas paragens so nhadas. Não é que eu refugue o trabalho. O melhor era voltar. Voltar sabendo não encontrar ninguém — nem a cachorra Tuninha — mas as linhas, excelências, estavam lançadas.

 

LEOPOLDINO DIRIGE-SE AO PLANO DE NARCISA.

LEOPOLDINO — Narcisa! Narcisa! Estou perdido!

NARCISA — Pai não está me vendo?

LEOPOLDINO — O nevoeiro, Narcisa, o nevoeiro. Ah, aqui está ela! Pa­rece uma noivinha! Que anelzinho é este, hem? Que anelzinho é este?

NARCISA (chorando) — Foi minha madrinha Janaína que me deu. Mas eu vou arrancar de meu dedo e jogar ele pra ela.

LEOPOLDINO — Filhinha, que má criação...

NARCISA — Não quero, não quero ir. Meu pai, vamos voltar, voltar!

 

LEOPOLDINO TENTA SEGURAR NARCISA, QUE, DESCONFIADA, SAI

A CORRER AO REDOR DELE. LEOPOLDINO SENTA-SE.

ARIOSO — De real, o que eu encontrei? Não já disse? Peguei o meu saveiro e saí na direção do alto mar. Andei que andei, E só no pender do sol foi que divisei, à deriva, o barco de Antônio Leopoldino. Encostei a embarcação na outra e vi que, dentro dela, ele estava a dormir. Sim, o compadre. Bati com o remo, mas o ho­mem não acordava. Então amarrei o meu saveiro no dele e saltei para dentro. Aí consegui despertar o compadre e perguntei pela menina. “Que menina?” - me respondeu, se fazendo desentendido. Eu disse: “a Narcisa”. E ele: “a Narcisa não está em casa?” Eu

 

Disse: “não, tu trouxe ela neste teu barco”. Ele aí gritou: “Deus do céu, é mesmo! A menina veio comigo! E eu dormi, compa­dre. Eu senti uma modorra, um peso de chumbo nos olhos. Vai, a menina, muito malina, caiu!” E aí ele se pôs a gritar pela fi­lha, e desmaiou. Confirmo. É a pura verdade. Se não vi man­cha? Não, mancha nenhuma. Também não, nem fiapo de pano. Nada quebrado. Sinal nenhum de luta.

ALDORA — Não foi ela que pulou. Não foi malinidade da menina.

Ah, vosmercês acham que são suposições? Pois eu digo e afirmo: ele matou Narcisa. Antônio Leopoldino dos Santos matou Narcisa. Ele atirou a menina nas correntezas do mar alto. E ela era mi­nha também, doutor, não era só dele, me entenda.

NARCISA AO LADO DO TOLDO.

NARCISA (gritando) — Meu pai!

LEOPOLDINO VAI JUNTAR-SE A NARCISA.

LEOPOLDINO — Narcisa!

NARCISA — Jura que não vai me afogar?

LEOPOLDINO — Juro.

NARCISA — Tou com medo dos seus olhos.

LEOPOLDINO (sorrindo) — Filhinha, confie no teu paizinho que te quer bem, que tem o coração arroxeado de tanto amor. (Abraçan­do-a.) Você mesma chorou para me acompanhar, não foi? Agora que nossa mãe ficou sabendo de sua vinda, que enfeitou o palácio para esperar você — ela e as sereiazinhas de seu tamanho, que vão brincar de comidinha — agora, Narcisa, você quer refugar? Então você prefere voltar?

NARCISA — E eu indo, paizinho, vai ter peixe pro resto da vida? como o Rei?

 

LEOPOLDINO AJOELHA-SE AO LADO DE NARCISA

LEOPOLDINO — Como o Rei. Pro resto da vida. (Tomado de súbito pavor). Não! Não! Narcisa, não me fale mais de peixe, que chega me arrepuna todo, me baldeia a alma. Não, não quero mais peixe.

NARCISA — E se madrinha arreclamar do trato?

LEOPOLDINO — Peço outra penitência, outra obrigação. Lanço pra ela o teu véu de grinalda. Eu te quero, filhinha, só para mim. Eu não vou jogar você para ela. Nunca! (Está trêmulo e ofegante). Me abrace, me abrace.

 

 

 

NARCISA AGARRA-SE AO PAI, E ESTE, AMEDRONTADO, OLHA PARA OS LADOS. DE REPENTE LANÇA UM GRITO E LEVANTA-SE COM A MENINA NOS BRAÇOS.

LEOPOLDINO — Narcisa! Olha, acolá. Está vendo?

NARCISA (tapando os olhos com as mãos) — Não, não! Não estou vendo nada.

LEOPOLDINO — Ali, filhinha, veja!

NARCISA — Não, não! Só vejo frio e azul. ,

LEOPOLDINO — A nossa Rainha. Narcisa! E ela! Tá vendo o brilho prateado? Senhora, senhora, esta é a minha filha! Aí, chega a minha vista cega de tanto brilho! Senhora!

ESCURECE. LEOPOLDINO VOLTA AO PROSCÊNIO. LUZES SOBRE OS TRÊS.

LEOPOLDINO — Me admira tu fazer este juízo de mim: que eu garrei a minha filha — a milha única filha — e que atirei ela no mar.

ALDORA — Negou que ela estivesse no barco. Depois disse que ela te pediu para ír, que chorou querendo ir e o jeito foi tu levar ela. Te pergundo — por que negou?

LEOPOLDINO — Doutor, eu refuguei porque sei que o desejo desta mulher é me incriminar. Dantes era um pescador falido. Um tras­te, para ela. Que, se não fosse Arioso... Aí está porque me vali de Janaína, Senhora dos mares. Fiz um voto, confesso. Joguei para ela um buquê de jasmins. Por que neguei? Não foi negação. Uma coisa foi um voto. Podia oferecer à Senhora qualquer pren­da de sc embelezar: pente, espelho, sabonete, flores, na quali­dade de ser tudo branco. Outra coisa foi satisfazer a minha filha num passeio de saveiro. Agora, se numa hora perdi os sentidos e Janaína chamou Narcisa — tenho culpa? Sofri muito, mas quem sou eu para me revoltar com a sabedoria da deusa?

ALDORA — Compadre Arioso rebocou o barco dele. Além das cacha­ças, é também dado ao vício da erva.

LEOPOLDINO — Aldora Estrela, por que este desejo de me Derder? Tu anda bem vestida e bem calçada. Os meninos também. Nas trempes^não faltou mais uma panela, uma chaleira.

ALDORA — E, seu Leopoldino, o preço foi alto. Foi acima das minhas

forças.

LEOPOLDINO — O doutor acredite, eu não atirei a minha filha. E se eu quisesse até podia ter atirado. Era minha, e galante como uma boneca. Loura, cacheada. alegre, sã, limpinha. Ah, eu sou um assassino? Estou confessando que atirei Narcisa nas águas? Mas doutor, repare bem que eu não disse isto. Eu disse que até podia — pois era oferta — dispor de Narcisa. Mas o que

 

eu atirei foi um buquê de jasmins, foi u’a mão de estrelas no azul.

ALDORA — Uma estória muito enfeitada. Com pouco ele canta aque­les versos do Príncipe Formoso. Até me lembro dum pé que começava assim:

“Meu bom Rei não se lamente

pelos golpes de sua sina...”

 

Quer completar, Antônio Leopoldino dos Santos?

LEOPOLDINO — Seu Delegado, o bom julgador é como Aldora Es­trela. Ela diz que eu atirei porque ela acha que é muito fácil ati­rar. Tanto é que, se fosse Lael, ela tava bastante satisfeita, pois toda hora vive a desejar a morte do aleijadinho, a chamar ele de estorvo. E a pois o menino nem é meu filho, mas eu tomei ami­zade ao bichinho. Dizem que é obra, aí, de compadre Arioso. Fa­le, homem, se manifeste.

ARIOSO — E verdade. Aldora Estrela não tem apego a Lael.E eu não sei explicar. A vida, doutor, este andar de todo dia, este velejar-velejar. Tudo assim, nas incertezas. Pode ser e pode não ser. (Retirando do samburá o véu com a grinalda de Narcisa). Atirei a linha no mar e o que pesquei foi isto. Lá, nas ondas do mar alto. Pode ser e pode não ser.

— Fim —

 

NOTA — Os versos foram extraídos dos romances de cordel “História do Sargento Verde” e “His­tória do Príncipe Formoso", de Rodolfo Coelho Cavalcante, e sofreram modificações para melhor adaptação à peça. FPS/Agosto/1972.

 

 

 

 

 

 

 

MINI-BIBLIOGRAFIA

 

FRANCISCO PEREIRA DA SILVA nasceu em Campo Maior, Piauí, em 1918. Infância e juventude em sua cidade, com intervalos em Teresina onde era ginasiano (Liceu Piauiense). No Rio de Janeiro freqüentou a Faculdade Nacional de Direito até o 3° ano, ali juntando-se com um grupo mais a fim com a literatura que com assuntos jurídicos.

Começou a freqüentar teatros, exposições de artes plásticas, etc. Mas o sonho e a realidade se cruzavam. Foi então que iniciou escrevendo contos que eram publicados em revistas e suplementos literários, passando pelo trabalho jornalístico por algum tempo, quando então fazia crônica de teatro. Sua maior descoberta foi Garcia Lorca, sentindo uma quase absoluta identidade entre a Espanha do grande poeta e o Nordeste do seu coração.

Fez o Curso de Biblioteconomia, continuou e permanece residindo no Rio, onde é bibliotecário da Biblioteca Nacional, mas de vez em quando voa ao Piauí para matar saudades e gozar as delícias da nossa vida simples.

A primeira peça para teatro chamou-se Viagem, embalada em plena crise Iorqueana. Continua inédita, a dormir, mas muito amada pelo autor. Lázaro, escrita em 1948 é encenada em 1952 por um grupo de amadores doTeatro Duse, de Paschoal Carlos Magno: Com essa peça −  uma transposição da Eletra grega para o Nordeste brasileiro – mereceu da crítica o prêmio de “Revelação de Autor”.

Outras peças, a maioria encenadas e premiadas: Memórias de um Sargento de Milícias (adaptação do romance do mesmo nome, de Manoel Antônio de Almeida). A Nova Helena, Uma Carga de Laranjas, Graça e Desgraça na Casa do Engole Cobra, O Vaso Suspirado, Romance do Vilena, Cristo Proclamado, A Caça e o Caçador, Hans Staden no País da Antropologia, Raimunda-Raimunda e Chapéu-de-Sebo.

Esta última, traduzida em alemão, numa antologia em que figuram cinco autores do moderno teatro brasileiro, já foi representada com grande êxito em Berlim, sendo logo depois levada também na Tchecoslováquia e Finlândia. Tem várias inéditas. Reino do Mar Sem Fim é uma delas, agora publicada por nós e levada ao palco pelo grupo TESTE, que tem a direção de Tarciso Prado.

 

 

 

 

Os três bagos de chuva

Adriano Aragão de Freitas Brasília (DF)


No primeiro dia, ele vestiu o avental, pôs as luvas e fez espocar na calçada o primeiro bago de chuva. A semente, lançada há milênios rompeu o concreto enquanto os pombos brancos partiam em revoada. O oráculo reuniu o povo e louvaram o desaparecimento dos antigos caçadores de pombo.

No segundo dia, ele vestiu o avental pôs as luvas e fez espocar na calçada o segundo bago de chuva. A árvore riscou no chão a mancha escura que eles não chegaram a decifrar. Mais tarde, surgiram nos galhos da árvore os frutos ainda verdes. Como os homens estivessem proibidos de comer frutos, nenhum gesto tiveram com o acontecimento.

No terceiro dia, ele vestiu o avental pôs as luvas e a máscara de oxigênio, e fez espocar na calçada o terceiro bago de chuva. Foi quando os vermes da terra saíram e devoraram a árvore e os frutos. O oráculo já havia partido em busca dos pombos. Só restou aos homens aguardarem o quarto dia.


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TEMPO DE POLICIA

Pedro Celestino de Barros


O PONTO de reunião era no café do Otacílio, mas como ficava nas barbas do Comando, nada se podia fazer. A turma rumava Avenida acima, cada um com seu par, em direção ao Carneiro, que ficava bem defronte ao Santo Cruzeiro. As meninas eram caíram pelos milicos que nem bode em cumbuca de sal. Paisano para arranjar uma era serviço. Suava frio e tinha que pedir licença ao milico. Valdemar, caboclo viciado por curica, gostava de avançar o sinal para as meninas, sem a devida permissão. Certa vez – noite de São João – o foguete papocava no ar, a sanfona soluçava num baião, a gente atracado com a negra, coladinho que parecia querer entrar um no outro. Quem era que se lembrava que ali em frente estava o Santo Cruzeiro, fundado pelo Frei Teobaldo e, ao seu redor, pé, cabeça, braço, perna, olho e até orelha?

Ela é que era bom. Distante, longe das vistas dos superiores e ao som irrequieto e desgoso da sanfona do Maneco, do bombo do Malaquias, do reco-reco do Zé Pança e do som bonito da gaita do gaiteiro Andrelino (que, deixando de tocar gaita para cavar um poço, lá ficou soterrado para sempre). O samba empolgava e a gente esquecia de tudo. Desabotoava-se todo. Tirava o cinto, afrouxava o colarinho, erguia o capacete para o meio da cabeça, atracava a cabrocha pela cintura e fazia um corrupio no salão que só negro do Congo em dia de festa. Rebolava a negra para a direita e para a esquerda. E a poeira cobria. Mas a gente ficava de sobreaviso, com o olho na patrulha. O sargento Mineu era uma onça para pegar recruta. O pobre do Mil-e-um sofria o diabo em suas unhas. A ordem era dura. Estávamos no auge da guerra.

Mas soldado velho é como macaco: não mete a mão em cumbuca. Punha-se de atalaia o Mil-e-um. E quando a patrulha com o sargento Mineu à frente ou a cavalaria apontava, a turma dava no pé caía fora, escondia-se. A saia



ficava limpa. A sanfona, o bombo, o reco-reco, a gaita, tudo parava. Silêncio de cemitério. É que a turma estava toda deitada, espalhada que nem grupo de combate, por baixo do mangueiral. Quando a patrulha ou a cavalaria se retirava, a turma ouvia a voz de comando do sargento Sousa Lima, amigo com ninguém:

- Fala constantemente, Gumeril!

E o sargento Gumeril respondia:

- Ta tudo azul, menino.

Era a senha.

A turma retornava ao local. O forró continuava até alta madrugada.

Certa feita, depois de uma dessas fugidas, a infuca recomeçou, recendeu um mau cheiro que não havia quem suportasse. Cheiro de sola mal curtida. O pessoal berrava e fungava que nem tatu em buraco: É que o Mil-e-um havia-se esparrado em cima de uma porcaria. E a turma ria a bom rir.

Todas as meninas haviam-se combinado para comparecerem á festa, naquele dia, trajando vestido azul. Por isso mesmo o baile foi chamado de “sonho azul”. Dançava-se aqui, bebia-se ali, e todo mundo brincava a valer. Com ares de Don Juan e fumaça de cabra festeiro, aparece e caboclo Valdemar, que se enfaça, quase á força, com a mulata e dengosa Ritinha, garota de Mil-e-um, provocando um atrito que se degenerou. Quando o par passava rodopiado, Ritinha lançava um olhar comprido para o Mil-e-um, como que pedindo que a salvasse daquele intruso, até que o seu amor, não suportando a afronta, deu um salto no meio da sala e gritou a plenos pulmões:

- Deixe a menina e dança comigo, cabra da peste.

Ai apagaram o candeeiro, que era de três bicos e ficava bem no entrar da porta principal. Valdemar, acossado por Mil-e-um, ao saltar da janela, recebeu bem no seco da testa uma porrada. O cabra dá um urro, cal e a fita de sangue acompanha. A confusão é grossa.

As meninas gritam:

- Meu Santo Cruzeiro!

A cavalaria vem chegando, a espada canta no lombo dos cabras. Valdemar levanta-se, agarra a perna de pau que lhe abriria a goteira e se atira prá cima de um milico. O milico é adestrado, mergulha e aplica-lhe uma cabeçada, deixando-o por terra. Toma da perna de pau e desfecha golpe para a direita e para a esquerda. O apito da cavalaria soa continuamente, e a negrada dá no pé.

Depois, já tudo calmo, quando Carneiro está a juntar os cacos do seu boteco, pois quebraram-lhe até a banca de gelado, ouviu uma voz:

- Seu Carneiro...

Resolve ir até fora. Nada. A voz vinha era de dentro da casa. Entrou. De olhos arregalados olhou para os cantos. Ficou assustado.

- Seu Carneiro...

Levantou a vista. Deu com Maria Cabelo de Fogo, também conhecida por Machadanta, bem repimpada, no alto da travessa, com um braço de madeira que apanhara ao pé do Santo Cruzeiro, ainda reclamando a falta de uma perna de pau que na confusão lhe fora arrebatada. E acrescentou:

- É um desrespeito as coisas santas, por isso mesmo o baile deu nessa confusão. Que azar!

Carneiro ficou a imaginar como diabo Cabelo de Fogo conseguira trepar ali, bêbeda como estava, com toda aquela bagunça, e no escuro.

Machadanta era mulata de corpo de violão, pernas longas e bem


torneadas, e tinha um balanço no andar que dava gosto.

Carneiro pôs escada e ajudou-a a descer. Depois, lamentando-se, pediu que ficasse, pois seria chamada à Polícia, com certeza, para contar toda aquela feia história. Mesmo precisava de uma companheira para fazer-lhe o café da manhã: vivia como um cão sem dono. E os dois, em pé – ela bamboleando como quem vai cair, ela procurando ampará-la com jeito – olhavam-se bem nos olhos um do outro. Até que os corpos se enlaçaram.

E um baque fofo soou no espaço.

 

LIBERTAS QUASE SERÁ TAMEN..

“LIBERTA, QUE SERÁS TAMBÉM”,

ALGUÉM DIZIA.

O CERTO, PORÉM, É:

“LIBERDADE AINDA

QUE TARDIA”.

....MAS MESMO ASSIM

NÃO IMPORTA:

O LATIM É UMA

LÍNGUA MORTA.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

TORRE DE PAPEL

Drumond Amorim


Abominável porca foi encontrada, e antes não a visse Juão. Era uma peça no chão fofo, jogada como peça que se joga, inânime porca que cai, nem se sabe como, assim, deslocada. Recolhesse-a o pessoal da limpeza por lixo, imundície, coisa – não João, de olhar folgado.

Na grossura de três dedos em pé, o verde-musgo do tapete não lhe ocultou o rebrilhar. Que ocultasse, a percuciência de Juão radiografia madeira ou o que transpareça estranho, tal o norteio no ambiente rico. Pois se aninhava na passagem, paisagem de empresa, num canto de refrigerada sala. Empresa se espalhando em sonolentas inaugurações: mais uma, cem, mil filiais – no país das sanfonas, foguetórios, cigarros de palha, futebol, gente afeada de sofrer, samba e cachaça (bendita seja) e tudo o mais que se delibera.

Ninguém ligaria, menos João. Este se reservava segredos do transportar bandeja, xícaras – serviços miúdos. Muito mais que isso: o que sobrava, o que faltasse. A decoração João a conferia de cor.

Se a desgraça da S. A, refocila anseios na comunidade desdentada? Qual nada. Mas ajuda, em diversãozinha idiota. A S. A, finge refocilamento (credo) na entrevada economia. Mentira impura. A pança ancha se entulha. A massa restam desgraças para o riso, que a graça anda sumida. Que vida. Que época.

Autêntica empresa (modernas). Aqui a novidade inexiste: a justaposição das peças sedimenta, une, liga, ata. Ata. Às dezesseis horas e trinta, o contínuo inominado João Qualquer declara cumprido o deve de ver.

 

 

 

Era um dia como nenhum outro.

Juão, o contínuo, assobia. Incrível lograr equilíbrio do que se equilibre. E Juão sustenta a bandeja, irrepreensível na postura, embora nas circunstâncias do assobio e salário. Assobia, o infeliz. Detrás da outrora xizada perna da mesa, a ponta que rebrilha, luz – metaleco de merda, peça que vê e se rebaixa. Juão recolhe, João cai cafezinho (só acontecia no princípio da profissão, depois trago um pano e limpo). Até aí, nada. Pelo que veio foi que se ligou, roxos de ira erma.

Prestimoso, na pinça dos dedos examina a porca (olhai, Chefe, caiu de algures) (Juão não diria o palavrão).

Chefe, no que recebe, abandona na mesa, vê, deixa, revê, redeixa. Traste á toa, peça bestalhona (obrigado, Juão, urge-alguma-providência no-sentido-de). O que não diz, pensa (depois, jogo fora a porcaria).

          Considera: porca que caiu! De onde, onde? Não acho e se desconheço, emperro qualquer maqui, na carente. Viu a peça é cúmplice. E viu. Volta aos quefazeres. Em acúmulo de trabalho, o tempo voa curto para se perder. Ah, mas queria saber era de onde me fugiu a porca. Porca encaixa em parafuso, quê? Sei lá. Não entendo. Atarracho o problema no Administrador. Com o memorando de praxe.

Administrador calcula envelope mede memorando, engendra usos, desengendra tudo. Chefe precisa de férias. A dúvida agora é se tento, se passo para a frente. Devolvo ou passo. Devolvo ou passo, devolvo ou passo? Passo,

 

com o memorando para encaminhar. Mostrar seriedade, Chefe enlouqueceu. Passo.

Advogado: por isso engenheiro tem cabeça de concreto. Nem tanto, é concreto na cabeça. Engenheiro não sabe, advogado vai saber? Não vai não, cheiro longe a malandragem, data vênia. Não estudei direito para entender de porca. Pode até ser: algum superior maníaco (aqui está cheio) mede eficiência. Verá. Assim, Economista colherá o abacaxi. Com memorando e tudo.

Economista é quem prevê o previsível. Burrocracia levar empresa para buraco. Contador Geral se virra com parrafusa. Secretárrria, escreve memorranda. Manda parrafusa.

Parrafusa que chega a Contador Geral, intimador de subordinados para reuniões. Se marca para a terça, todos comparecerão, é ordem. Comparecem. Em cima do tapete, a verbiagem açoita a subordinação. Quem sabe, o Diretor? A porca é importante? Rubiginosa ou brilhante? Hem, demissão pela porca? Fica resolvido: nada ficou resolvido. Vai comunicado para todos. Marcam-se reuniões.

Até que no manda-não-manda, manda, mandam. Acompanha-a relatório, valioso apêndice da porca (Terminando com atenciosamente para o momento, aproveitamos-o-ensejo, etc. Na discussão brigava, ganha o cordiaes saudações. Oportunidades forjicada. Ao desenhar o jamegão (infalsificável, claro), o contador ergue a caneta e corrige o cordiaes.)

Na S.A, não se dorme, é literal. Exceção para quem já dormia em serviço. Uns inúteis, dardeja corado e esmurrante Diretor do Pessoal. A fera incendiada sabe vomitar chavões por sobre o vasto-complexo, complexo. As coisas correm mal, mal andam. Mas as causas se procuram no topo. (Aqui se estrepa: delegar é eficiência.) Quando silencia, enrouquece. Mesmo atônico hei de gritar: empresários do país, univos.

No meio do gráfico estatístico desce uma risca desce uma risca no meio do gráfico desce uma risca. Ensurdeceram os empresários do país. Irreconciliáveis, há pouco eram concorrentes. Agora, os risos vão do o ao s das orelhas.

Convocaram-se peritos. Eles insinuaram dores muitas, compromissos inadiáveis, inutilidade da peça. Discordo, berra o Presidente da S.A., há que descobrir o enigma. O mistério da Peça Perdida, continua, a papagaiar manchetes. Não seria de Peça Encontrada, Presidente?, sugere o Diretor Administrativo.

No cofre, a peça aguarda destino e função. O Presidente, crucificado no traspasso, deixa morrer a cabeça para o lado e brada: tudo está vasculhado.

          Diretor Financeiro busca imprensa e engenho. Busca empenho, dos clientes ou não. Já mendiga a-quem-interessar-possa.

Jornais publicaram bases de Concurso de Sugestões. Há promessa de bom prêmio e divulgação do nome vencedor. Candidatos sapateiam sobre o fuzuê da Empresa.

Não precisavam essa crueldade diante de tudo: são sádicos, insensíveis, ferozes, comenta o Inspetor Geral. E abre mais um envelope.

Que a Comissão se reuniu. O Inspetor prossegue na leitura. Em voz alta, mais alto, pedem os Jurados.

Ouvem sisudos, engravatado responsáveis. Cada envelope aberto estafa na cara. Empresa a porca na firma. Rasga. Agora que a porca torce o rabo. Rasga. Assa e manda pro padre. Lixo. Procure as

causas no topo. Rasga. Qualquer cartomante advinha. Rasga. Demita o contínuo. Separa. A que-faz-de-tudo resolve. Rasga. Bota no chiqueiro. Lixo. Decreta falência da pocilga. Rasga. Enfia no Diretor. Cretino (a). porca miserial Lixo. Desmonta e monta a firma, o que falar é porca. Lixo. Devolve pra Marte. Rasga. Cuidado que a porca é comuna. Subversivo!, separa para averiguações. Falta uma porca em minha vida. Rasga. O chefe sabe e não diz. Fora. Pergunta pra porca. Lixo.

E vai por aí a alegria da comunidade sofrida, ávida de desafogo: segura a porca. Solta a porca. Esqueça a porca.

Mas também vai que, repiscane no verde-musgo do tapete, o Juão Qualquer (não assobia há muito), vê peça idêntica, por trás da mesa do Chefe. Gato  escaldado, apanha-não-apanha. Apanha e enrega,

- Olha aqui, Chefe, outra peça. Igualzinha.

Brasília – DF


­­­­­­­­­_______________________________________________________________

DIA VIRÁ

Luíz Edson Fachin – Curitiba


EMBORA OS

ESFORÇOS

SEJAM BEM CONSIDERÁVEIS

A FEBRE CONTÍNUA

DIZIMANDO REBANHOS INTEIROS

As justificativas são sempre as mesmas.

Nos enganam,

ELA PROVOCA

A MACIÇA

MORTALIDADE,

E cedemos ao medo,

Para conter a nossa reação

Haverá sempre 1° de abril dizendo

VEJA

COMO

COMBATÊ-LA.

14 facas na dança

Não representam o país.


 


 

_____________________________________________________________

APOCALIPSE

Renato José de Carvalho


Um anjo vento forte só,

Com braço forte,

Ergueu a grande pedra mó

De moinho.

Em remoinho louco

E lançou-se fúria

No louco mar de largura

De largura boca.

Na boca muita do mar,

João disposto no porto,

O ímpeto no rosto...

João a postos no posto,

No posto

Precipitando a cidade,

A grande cidade

No rosto do fero mar.

João babilônico e sântico,

Furor demoníaco, irônico,

N braço forte, venitânico,

Tessálico,

Erguendo a cidade moinho

Na ira de vendaval....

João a postos no posto,

Abissal...

João apostólico, tirânico,

Com o braço forte de mó

Lançando a pedra cidade

No ventre vômito do mar,

João perdendo a cidade.

No dentro fundo do mar.


AUTO-ABC ou ABC PARA MIM MESMO...

Paulo Nunes Batista

 


Aos dois de agosto nasci,

do ano mil, novecentos

e vinte e quatro, conforme

consta dos assentamentos

do  Cartório do Registro

Civil, sobre nascimentos.

 

Batista de sobrenome,

Filho de Chagas Batista

E dona Hugolina Nunes

− de família repentista,

trouxe, no sangue, o destino

de poeta cordelista.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Cordelista, de Cordel,

cordial e coração....

Na corda bamba da vida

venho cumprindo a missão

− dançando e me equilibrando:

artista entre o céu e o chão...

 

Da terra de João Pessoa

− Paraíba Nordestina –

sou natural, sem disfarce:

de estrutura pequenina

− um metro e cinqüenta e cinco

de poesia repentina.


Estudante dos Mistérios

de Deus –Vida –Morte – Amor:

Enamorado das Musas

- o seu Menor Trovador-

faço sorrir, em poesia.

minha Angústia aberta em flor!

 

Flor do Mato, Fruta Agreste,

guajiru da beira-mar,

tenho o Sol do meu Nordeste

minha Noite a iluminar...

Versejo desde menino,

Como quem vive a brincar...

 

Glosador,pegando um mote,

dou meu recado na praça,

seguindo o plano-roteiro

que o Espírito me traça:

não nego do Cantador,

a raiz, a fibra, a Raça.

 

Homem vivido, sofrido,

Corrido Brasil à fora

- Viajando no Repente,

Nave onde meu Sonho mora:

Minha fonte de improviso

Despejo em cima da hora...

 

Inimigo de tiranos,

tenho horror à hipocrisia.

Para festejar a Vida

-troco a Noite pelo Dia.

O Caboclo Cachoeira

á –nas Umbandas – meu guia!...

 

Jornalista, jornaleiro,

poeta profissional,

fui corretor, fui livreiro,

fui Professor do Mobral;

sou – por concurso – em Goiás

funcionário fiscal.

 

Liberto de compromissos

com credos religiosos.

SEI de DEUS – porque O sinto

nos transes mais dolorosos.

tanto quanto em meus mergulhos

nos abismos luminosos...

 

Medularmente contrário

a todo sectarismo,

repudio o enquadramento,

 o cabresto, o bitolismo;

sou um livre-atirador

nas lutas contra o Egoísmo.

 

Navegador do Alto Mar

onde veleja a Aventura,

as Naus Eternas do Sonho

navego, em plena Amargura:

fabrico flores de Luz

da pedra mais densa e escura...

 

Operário da caneta,

já vivi só de escrever:

poeta de profissão,

em Goiás pude viver

dos folhetos que escrevia

para nas pragas vender.

 

Paulo de Pau.... de Paul....

- dureza que a Luz Inflama!

Meu nome termina em O

- um zero de onde sai chama!

E eu – sendo Pau – dos meus frutos

e flores.... mesmo na lama!...

 

Quase todos os Estados

do Brasil já percorri.

Morei em vinte cidades.

Das profissões que exerci,

conservei a de poesia,

desde o dia em que nasci.

 

Registrados, são dez filhos

Que o meu sobrenome tem.

Sou casado com baiana

- quanto a mulher, vivo bem,

Não tomo nada dos outros,

nem prejudico ninguém.

 

Sincero desde o tutano

dos ossos, desde a raiz

da própria alma – não minto:

Paulo sustenta o que diz

e - por amor de Verdade,

sofrendo – vive feliz...

 

Trovador: escrevo trovas,

soneto, sambas, canções,

contos rimados, poemas

- num mar de improvisações.

Tenho setenta folhetos,

com diversas edições.

 

Univérsico, homem-cósmico

-Jesus Cristo é meu modelo,

Embora saiba estar longe

De imitá-LO, por sabê-lo:

Teço a Túnica  Inconsútil

Com o Luminoso Novelo...

 

Versejador Viajante

Das Estradas do Repente:

Abro a boca – o Verso nasce,

Como nasce a água corrente,

Tenho feito alexandrinos

Em três minutos, somente...

 

Xiquexique tem espinhos

- mas dá fruto que se come...

Assim também na aspereza

Da Angústia que me consome

- solto fagulhas de Luz,

- mato, de Beleza, a Fome!...

 

Zambe,meu Negro, Você

Que é tão branquinho de Luz,

Que – na alta Noite eu que sofro

Para o Dia me conduz!

- faça com que eu possa, um dia,

Seguir o Mestre Jesus!...

 

(Anápolis – GO, O8-Julho,77)


 


_______________________________________________________________

 

CANÇÃO DO VENTO

Lúcia da Silva Ribeiro –Rio (RJ)

 


Minha terra

tem bananeiras

onde canções não há

 

as aves que se ensaiam

são obrigadas a calar.

 

ai quem me dera que um dia

pudesse contar um segredo

a publicá-lo em notícia

sem que isso acarretasse

desespero ou

desterro.

 

ai que doidice que é essa

que me queima dentro do peito

que sobe a tona da boca

que torna as fases vermelhas?

 

minha terra

tem barreiras

onde direitos não há

 

os pássaros que já cantaram

morreram por confessar.

 

ai que me dera que um dia

soubesse abrir a gaiola

e cantar em liberdade

sem que isto acorrentasse

meu sorriso

minha rota

 

ai que desejo que é esse

que vira o corpo ao contrário

que traz pra fora o que é dentro

que traz para dentro o que é fora?

 

minha terra...

minha terra...

tem bananeiras

barreiras.

não tem canções

nem direitos.

Tem aves

e passarinhos

que sonham quando em silêncio.


 

MOTIVOS

 

Nilza Menezes Caixa Postal 2246 Curitiba-Paraná.


 

 

Ei, amigo,

a fome é bastante, é?

A sede de pinga é maior.

Vem dor

 

 

e frio que congela.

A morte que assusta

E os problemas que te estatizam

e te tornam mendigo.


 

______________________________________________________

 

Corpo de Judia

 

Meu corpo está hoje na feira

quem o quer comprar?

Seu preço i uma coroa de rosas

com plumas de pavão real

e um beijo amarelo no meio do céu.

 

Meu corpo queimou-se na praça

faz agora mil anos, por uma verdade instantânea,

quando a igreja decidiu

em meio dos gritos do rebanho

que estava muito feito de pecados...

 

Mas um dia renasceu das ruínas

e cresceu na proporção das

luzes que se abriam em cada século.

 

Desta vez nasci com um peito enorme,

dois braços que se derramam sobre o mar,

uma formosa boca que mastiga os nomes dos rapazes

e um sexo sepulcral onde abrigar o dia e a noite,

e talvez ainda a tarde e a manhã, todas juntas.

 

Teresinka Pereira

Universidade do Colorado

U.S. A.

 

 

 

 

 

Noite de natal

na noite de natal

às vezes a gente consulta

o álbum de família

 

a surpresa informa

que um vazio anda

pelos cantos na sala de visita

 

na parede o espelho

reflete o tempo

e o tempo não se sabe refletido

 

na noite de natal

os mortos são radicais

só sabem viver com os vivos

barros pinho

Fortaleza-CE

__________________________________________________________

O SILÊNCIO


São gritos loucos, moucos,

os teus.

São gritos, somente.

São esperneios da voz,

inconscientes elocubrações

vocais.

O silêncio é o resultado

do grito,

o silêncio da alma da voz,

o silêncio-remédio

o silêncio-insânia.


EDILSON DA SILVA JARDIM FILHO

RUA DOS ILHÉUS N° 03 FLORIANÓPOLIS  SANTA CATARINA

 

Mãe, eu quero água

“é preciso ter coragem para mexer na zona de mata pernambucana...” (técnicos do Ministério de Agricultura)

 

é preciso ter coragem para mexer

não podemos conviver com as balas morreu de sede  

 (no hospital)

não podemos beber água

morreu de balas 

 (no hospital)

não tendo a coragem de mexer na zona da mata

morreu de fome   (no hospital)

não tendo a coragem de mexer na zona da mata

tendo a coragem de mexer na comida

tendo a coragem de mexer na bebida

da zona da mata

morreu de balas  

                      (no hospital)

é preciso ter coragem para mexer

 

Pedro Américo

Recife (PB)

 

 

 

 

 

CLUBE DO ESCRITOR

Dando prosseguimento a suas atividades culturais, a Editora do Escritor, por seu diretor-presidente Luz e Silva, fundou, em julho de 1977, o seu CLUBE DO ESCRITOR, visando congregar ainda mais não só seus autores como também seus leitores, permitindo-lhes uma participação comunitária maior.

Haverá no CLUBE DO ESCRITOR duas categorias de sócios:

1 – CATEGORIA AUTOR

Nesta categoria, o sócio deve provar a condição de escritor, com a apresentação, no ato de inscrição, de trabalho seu, publicado em livro ou periódico, ou, no caso de ser autor inédito, cópia do original datilografado.

Com o pagamento da Anuidade, que para 1978 é de Cr$ 500,00, o sócio passa a ter direito a:

a)    Participar de todas as atividades culturais do Clube do Escritor;

b)    Votar e ser votado nas eleições para escolha da diretoria do Clube do Escritor, conforme Estatuto.

c)     Receber mensalmente uma das obras lançadas pela Editora do Escritor;

d)    Receber os números semestrais do EM REVISTA, órgão do Clube do Escritor;

e)    Inscrever suas obras a seleção e sorteio periódicos para publicação pela Editora do Escritor, em bases próprias;

f)      Inscrever trabalhos a seleção e sorteio para publicação nas diversas antologias organizadas pela Editora do Escritor, inclusive o EM REVISTA.

Os autores que desejarem participar das atividades do CLUBE DO ESCRITOR – CATEGORIA AUTOR – devem remeter proposta de inscrição nos seguintes termos:

Sr. Presidente do Clube do Escritor,

Peço-lhe incluir-me como sócio do Clube do Escritor – Categoria Autor, para o que abaixo apresento meus dados e meu currículo.

Nome ......................................................................

Nome Literário ............................................................................

Endereço ................................................................................

CEP............................... Cidade ..............................Est. ........................

Obras ......................................................................................................

................................................................................................................

.................................................................................................................

Obs. – A proposta, datilografada em papel ofício, acompanhada de duas fotografias 3x4, deve, juntamente com o pagamento de Anuidade, ser enviada para a sede do Clube do Escritor, Rua Barão de Itapetininga, 262 – Conj. 304-305, em nome da Editora do Escritor Ltda. A Anuidade pode ser efetuada em 2 parcelas semestrais.

2 – CATEGORIA LEITOR

Nesta categoria, entrarão todos aqueles que desejarem prestigiar o escritor brasileiro, participando lado a lado de sua luta.

Com o pagamento da Anuidade, que para 1978 é de Cr$ 300,00 o sócio passa a ter direito a:

a)    Participar de todas as atividades culturais do Clube do Escritor;

b)    Ser eleito para o Conselho Deliberativo do Clube do Escritor, quando passará a ter direito a votar e ser votado na escolha da diretoria, conforme Estatuto.

c)     Receber mensalmente uma das obras lançadas pela Editora do Escritor;

d)    Receber os números semestrais do EM REVISTA, órgão do Clube do Escritor;

Os leitores que desejarem participar das atividades do CLUBE DO ESCRITOR - CATEGORIA LEITOR – deve remeter proposta de inscrição nos seguintes termos:

Sr. Presidente do Clube do Escritor,

Peço-lhe incluir-me como sócio do Clube do Escritor – Categoria Autor, para o que abaixo apresento meus dados e meu currículo.

Nome ......................................................................

Nome Literário ............................................................................

Endereço ................................................................................

CEP............................... Cidade ..............................Est. ........................

Obras ......................................................................................................

................................................................................................................

.................................................................................................................

Obs. – A proposta, datilografada em papel ofício, acompanhada de duas fotografias 3x4, deve, juntamente com o pagamento de Anuidade, ser enviada para a sede do Clube do Escritor, Rua Barão de Itapetininga, 262 – Conj. 304-305, em nome da Editora do Escritor Ltda. A Anuidade pode ser efetuada em 2 parcelas semestrais.

 

DEPOIMENTO: A NOVA GERAÇÃO

Damário Matos da Cruz

Damário da Cruz foi o vencedor do prêmio “CONVIVIO DE POESIA 77”, conferido pela Escola de Cultura de São Paulo, representando a Escola de Comunicação da UFBa. Além disse é técnico da TELEBAHIA e edita, junto com outros dois poetas, o jornal “UNE-VERSO”. Nascido em Salvador, muito cedo começou a exercitar a sua sensibilidade, observando as pessoas e as coisas do mundo que o rodeia. Aqui, ele fala da nova geração de poetas baianos, dizendo coisas que muito têm a ver com os poetas do resto do Brasil, especialmente os do Nordeste.

 


“A nova geração de poetas da Bahia ainda dá os primeiros passos em poesia. Domar um poema requer experiência e vivência.

Mesmo cometendo erros naturais de quem inicia o aprendizado do verso, é preciso estar sempre atento para determinados fatos que rodeiam o poeta quando começa, principalmente no que diz respeito ás pessoas que só fazem tumultuar o ambiente em proveito próprio, afastando cada vez mais os leitores de poesia e enganando o jovem poeta, dizendo-lhe que a sua poesia o capacitará, sem dúvida alguma, a ser um grande poeta.

Sem fazer ainda uma boa poesia, esta geração tem grande mérito de buscar caminhos que pareciam esquecidos. A palavra e a emoção tornam a incomodá-los e este é o ponto de partida da maioria dos jovens poetas que começa a escrever no fim da década de 60, e que durante dez anos resistiram isoladamente, criando diante de tudo que acontecia e hoje começam a avançar.

Dez anos é algum tempo, mas não significa muito em poesia. Publicar um poema sempre foi necessário para qualquer poeta, jovem, mas perceber o momento que deve iogá-lo no meio da rua é fundamental, e isso não está sendo observado. Existe hoje um incentivo muito grande daqueles que têm interesses contrários á própria poesia, de publicarem novos autores para que os seus currículos de editores aumentem e possam dizer um dia que incentivam a poesia jovem na Bahia.

Atualmente, vários poetas jovens, e quase sempre inexperientes, pagam a estes “editores” para poderem participar de antologias que, na verdade, não contribuem em nada, efetivamente. É preciso que todos percebam isto e tratem primeiro e discutir e questionar com os outros, acerca de seus poemas, do significado deles, da necessidade da poesia e de sua função social.

Todo bom poema tem seu lugar guardado nos muros da cidade. A não publicação imediata dos poemas nos jornais ou nas inúmeras antologias feitas quase sempre sem nenhuma reflexão, não significa o acomodamento do poeta no seu quarto ou nas salas de aula. Participar de alguma forma das lutas por uma sociedade mais digna é o primeiro dever de todo poeta que se respeita, e somente assim haverá coerência entre o que ele faz e escreve. Ser poeta é alguma coisa. Mas não é tudo. O endeusamento do poeta nasceu de uma forma inconsciente e tende a morrer a cada dia, e aí o homem que hoje faz poesia estará cada vez mais ligado ao homem que ele deve ser, para que possa lutar por suas necessidades e pelos seus direitos, numa sociedade que ainda é injusta para com a maioria”.


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OS LEITORES COM A ÚLTIMA PALAVRA

CONTRA


“Faço uma crítica a CIRANDINHA: está muito pretensiosa, sofrendo de megalomania, querendo publicar de tudo, tudo de uma vez, de tal forma que me parece muito poluída em quantidade de textos, e nesse papo de democracia editorial permitindo folclore, (...), lendas,

editorial permitindo folclore, (...), lendas, ,ensaios e outras mumunhas do mundo letrado eu não embarco. Acho que uma xis política editorial fica bem e marca melhor presença nesse caótico universo papelístico em que vivemos...”

Pedro Américo Recife-PE


Pró


“O

 


APARECIMENTO de jornais e revistas alternativos marcou, definitivamente, esta década. E propiciou, embora sem nenhum rigor crítico, o surgimento de novos autores, - uns poucos realizando trabalho sério, calcado numa realidade que apenas os cegos não conseguem ver. Muitas dessas publicações, no entanto, fazem questão de seguir uma linha de valorização crítica, sem concessões filosóficas ou puramente formais, exigindo do autor, além de uma atitude combativa e responsável face à vida, um certo nível de qualidade. Enfim, parece-me, estamos começando a resistir aquela copiosa literatura de evasão, simples masturbações intelectuais, que durante muito tempo visitou e conquistou os suplementos literários do país, menos por imposição de uma auto-censura do que por incompetência desses autores, mais preocupados com a divulgação do que propriamente com a criação e a análise da realidade. “Cirandinha”, revista semestral de literatura editada pelo poeta piauiense Francisco Miguel de Moura, chega ao número dois com a mesma disposição que norteou sua criação. Nela, os autores, fugindo a atitudes egocêntricas, tão comuns e tão prejudiciais, mostram-se (com raras exceções) criticamente aparelhados, atentos e dispostos. Não é pois, por coincidência que H. Dobal, indiscutivelmente o mais importante poeta piauiense de nossos dias, afirma à página 46 de “Cirandinha” que “seria um homem pleno/se lhe bastassem apenas/ a suavidade da tarde,/a variação do mar,/ a indolência do tempo”. E, por conseguinte, a facilidade de uma vida bem comportada. Eis aí a definição exata do espírito dessa ótima revista editada – não sei como – por esse combativo Miguel de Moura, poeta e crítico muito conhecido em Teresina por suas polêmicas, muito amado e odiado por sua salutar sinceridade.” 

Franklin Jorge

R. Felismino Dantas, 150

59.570-Ceará-Mirim (RN)


 

 

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