CIRANDINHA 01
Nós, abaixo assinados, assassinados,
neste tempo de guerra surda, de falta e de excessos, não vamos dizer de quê.
para entendedor, uma palavra: basta! nos interpretamos a dor do mundo através da nossa, e indicamos aonde
queremos chegar: a um futuro que pertença ao homem, não as coisas ou a posição malganha,
a esperança dos deserdados e não as trevas, nada temos propósito de destruir,
queremos inovar com o n/sangue e com a n/carne, com o frio nos ossos, a herança
e útil se se junta a algo do nosso esforço, visamos os dias cinzentos do hoje,’ numa busca maior, talvez encontremos
lodo, lama, água, fezes, pedra, escombro no caminho, tentemos afasta-los, para
que a trilha dos que venham a seguir seja menos áspera. aqui começa a roda de
ciranda numero um. continuará? temos necessidade dela. trabalhando e cantando
(canto muitas vezes choro, coro, sufoco, desaforo ) juntos, chegaremos mais
longe, e a vida toda e uma estrada, cada um no seu passo, com s/idiossincrasias,
somos nove poetas nesta rodada, todos abaixo assinados, assassinados, obrigados.
as) fmm, pm, dm, hf, db, m, mm, fel, zan,
FRANCISCO MIGUEL DE MOURA
A COISA
a coisa se esparrama/cresce aqui por dentro./ o pó
da coita sobe/sei que incipiente/ nos meus olhos baços./a coisa se
encasula / em forma de espelho múltiplo/verdade encrespada* quando menos dia/se
transforma e - nada/nem alga, nem estrela/do mar - e nem perola./ em não se
mostrar/a coisa consola./a coisa não’ cai/ela se rebola/do líquido/contra!-se/
constrói-se/ e eu coiso com ela/ - coisa além do mundo./ se contém, não
mostra/ vaidade, verdade./ onde uma proposta?/ a coisa desencarna/ no fogo, na água,
no ar./ e eu só te abençoo/ por tua garra/ por tua graça/ por tua troça/ mais
por tua traça./ coisa, me estraçalha/ parte-me em pedaços / joga: que os
pedaços / mudos rolem, rolem/ queiram mais espaços/ e no fundo se colem/ e no
fundo se calem.
" os poetas, temos,
entre nossas substâncias originais, a de sermos feitos em
grande parte de fogo e fumaça . " Pablo Neruda |
FRANCISCO MIGUEL DE MOURA
PROTESTO.
protesto contra a bomba
aresto
contra a bomba
teste
contra a bomba
este
contra a bomba
de(teste ) a bomba
protesto contra o homem:
a bomba.
protesto contra
a paz:
a bomba.
protesto contra
a vida:
a bomba.
protesto contra
a bomba:
ela
ela
ela
ela a bomba.
contra a bomba – o samba.
contra a
bomba – a tumba.
cadê o poder de n/macumba?
nas asas de uma pomba
mandemos a bomba
o céu aguente:
h(á)n bomba.
PAULO MACHADO
na senador Pacheco 1193, há um poema/ onde
os primos, em volta da mesa,/ guardam suas ânsias diante das pastilhas de
hortelã./ e o avô na sala de espera ./(as vezes, de sobrecenho, fala da seca de
14, da gripe espanhola...) o tio já não tosse dentro da noite,/Fiando um’ estranho
silencio/ no fim do corredor,/ que em multo se assemelha ao gesto acanhado/ dos
meninos, com suas canecas a espera das cabras./ no verão, da mesma forma que no
poema,/ não ha lodo no muro/ e as lagartixas passeiam ao sol./ da mudez das
pedras e do vermelhão do barro/ arrebenta o verso/ como uma cicatriz esquecida.
/ nesse poema o difícil e não ser trágico./ no quintal, a erva-cidreira cresce/
por entre as rachaduras das lages, sussurrando/boatos revolta./ na sala de
fartar, o perigo de naufrágio/ nas tradições de há séculos./ há um poema que
roí o tédio,/ na rua senador pacheco 1193.
saíra,em dezembro, a coleção
de poemas’’ universo das águas”, de
autoria de Francisco Miguel de Moura. |
PAULO MACHADO HERANÇA
minha avó, Maria dentre tantas marias, rosa
sem superlativos pois jamais necessitará de-
les, segredou - me :
- uma canção precisa
ser tão forte
quanto a morte.
calei-me contrito.
pm.’
- postulado:
fazer poemas é fácil
como amordaçar um lobo.
os olhos lânguidos
do tigre do e$$o
regem a santa usura.
os olhos lépidos
do tigre da e$$o
ditam a santa aquisição.
os olhos ludibriantes’
do tigre da e$$o’
exigem a santa aqui
essência:
- ponha um tigre no
coração.
RUBERVAM DU NASCIMENTO
8° POEMA DOS RATOS
“...cidadão
receb – eu
uma conta telefônica
superior a
mil e duzentos cruzas...
detalhe:
o telefone ainda não
estava ligado...”
( jornal "o dia"
-te, lo/08/77)
••••••••••••••• é
por isso Lygia
que os ratos
'tão promovendo seminários.
CORRIDA
suma ou...
então chore
ou morda o rosto fervendo
de raiva e de sujo
e de pus.
não me dê as costas
tem lombriga escapulindo pelas vias distintas.
e grite comigo e me escute os berros.
não aposto no teu silêncio.
RUBERVAM DU NASCIMENTO
CALOS
vem “trabalhar” mais nos seu zé/ tem quiabo “maduricendo”/ na roça/ tem
melancia/ pro pênis de Cláudio Cavalcanti./ um sistema montado/ erótico/ que
não tem roça/Cavalcanti pênis/melancia e moça e moça e melancia./e seu zé/aqui
as formigas não comem as crianças falecendo/pedindo melancias/ / e melancias e
moças e seu zé; rança quiabos e os mastiga cru./..........................................................................
e esse caminho, ai!/ é coisa de sau-dade meu
menino/é “asioc” de maria morta.
“todo riso vem de um mal-entendido. Se
se olham as coisas como se deve olhá-las, nada
há de risível debaixo do sol”.
thomas hardy |
HARDI FILHO
TEMPO E VERBOS
há uma casa e nessa casa uma área onde o menino
brinca de não saber se e feliz/ há uma casa e nessa casa uma sala/ nesta sala
duas estantes abarrotadas de livros cheirando a naftalina e multa filosofia/ e
sempre um homem de gestos graves/ largo de espáduas e de raro sorriso largo/ (
a cadeira de palhinha/ a mesa de cedro poli- da/ e outros mais objetos ditos de
recordação )/ ha uma casa e nessa casa um falar/ um correr ( no corredor) /
correr e falar irmãos/ ha uma casa e nessa casa uma alcova/ à noite o medo de
almas do outro mundo/ há uma casa e nessa casa um fogão muito amigo do menino/
(com uma colher de pau/ mamãe mexe a cangica na panela de ferra/ a fogo de
lenha lento)/ ha um equívoco de tempo nestes verbos:/ havia uma casa / e nessa
casa um menino / um menino que brincava de nunca ser infeliz.
" desgraçado o pais que
necessita de heróis "
bertold brecht. |
HARDI FILHO
MÓDULO 4
não compactuar:
com movimento de mãos
abertas para o que sobra
com olhares premoldados
na forja da indiferença
com caimento de braços
levantados anteontem
com protestos deglutidos
em senhorís curvaturas
com pernas em marca-passo
na guarda ou na retaguarda
com bocas onde mil gritos
resultam sempre em silêncio.
saga-saga-sqga-saga-saga-saga diretamente de ourinhos-são pauIo para todo o Brasil. é a voz e a vez dos novos escritores brasileiros um convite: vamos apostar no "saga”?por quê
nao? |
F. EDUARDO LOPES
IMPÉRIO FALIDO
começava o show/ — sorrisos/gritos eufóricos/
aplausos./senhoras e senhores/ é com imenso prazer/que trazemos.../e o publico
aplaudia./e o show continuava/ - música,/textos, /humor./respeitável público/temos
a honra de apresentar... /e a plateia delirava./de repente vieram as vaias/ o
hoje faz-se ontem/e o apresentador/virou plateia/ esquecido na cadeira n° 1/da
última fila.
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PAPEL EM BRANCO
burlaram-lhe a liberdade/de expressão/e ele tornou-se
mudo/passivo e opaco/e suas canções de protesto/foram esquecidas/e o papel em
branco/ passou a ter mais sentido/que o pintado de letras/ expressando
pensamentos/que doem na consciência/dos ofendidos./e ele no banco dos réus/ sem
defesa/espera julgamento/por crime de falar/ a verdade.
F. EDUARDO LOPES
OPRESSÃO
detesto falar de mim
dizer que sou
isso ou aquilo
mas o que fazer
se ELES não me deixam
falar o que sinto?
_________________________
PRAIA
meados de fevereiro
sol
som
sal
só
leia e assine “ficção”, uma revista para o prazer da leitura – mensalmente nas bancas – diretamente do Rio de Janeiro para o Brasil |
DODÓ
MACEDO
BILLY THE KID
como era o vale/em que eles se encontravam!/ eles dois, o moço de olho meio rútilo/e a moça de olhar seguro/e
aquele ar que os envolvia./e foi então que o moço pós a mão no bolso/e
perguntou a moça se ela achava que deus existia./ a moça respondeu que não/que
essa conversa toda e criação/do homem comum, medroso, incerto/no meio do mundo
cão./ mas o moço perguntou de novo/e de novo e de novo. /a moça riu e o chamou
de homem comum./ele riu também e logo ficou sisudo, /a mão sempre no bolso da
calça de pano comum./falou então que sempre teve medo de que deus o visse/o
vigiasse, descobrisse seus segredos e depois se vingasse./ a moça falou o
quanto ele era bobo/ (seu bobão!)/ o moço foi mudando o olho/ e sorrindo bem pouquinho./ a moça foi falando
mais da sua bobice/ e o moço tirando a mão do bolso bem de mansinho./ então ele
lhe perguntou de novo/e ela disse exatamente o que antes dissera./ ao que o
moço tirou a mão do bolso/apontou
DODÓ MACEDO
revólver para a cara da moça e disparou./ ela caiu
e ele soprou a fumaça e saiu caminhando lentamente./ ia pensando "essas
moças de hoje tem um poder incrível/de convencer a gente."
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O’ senhor
se não concordas, o' senhor/com o direito que o poeta
tem/de abrir a boca/se não concordas, o' senhor/ com a prerrogativa que o poeta
tem/de tentar abrir “a boca e a
cabeça/dos outros/se não admites, o’ senhor/um não sequer/se te recusas, o’ senhor/a
dar ouvidos a quem mais ainda/ precida de pão/se ficas” irredutível, o’ senhor/ante
o direito que o poeta tem de dar a mão a quem dela precida/se te recusas, o’ senhor/
a compreender que língua não serve só pra sentir o gosto de farinha/
então, senhor,/que amputes a mão do poeta/ estraçalhe-lhe a língua/ despedace-lhe
a cabeça./ (mas, o' senhor, sei que tu te/ recusaras a fazê-lo só para não/seguires
a minha sugestão).
MENEZES Y MORAIS
BAIONETAS (2)
as marcas
vão exigir
de fome
de cada
entre o
al imento
í o ventre
IGUALDADE
q/ comemos’’’’
prestações
e dor
dente
o ventre
as marcas
q/comemos
na vermelhidez
do lenço/todo
medo e mal cheiro
cada pessoa
para amar
para gritar
p/ morrer
“o que mais se parece com a poesia e um pão’’’’ ou um prato de cerâmica ou uma madeira delicada- mente lavrada, ainda que por
mãos rudes”. Pablo Neruda. |
VOCÊ S/A
é livre
é odiar
e
e viver
MENESES Y MORAIS
BAIONETAS (1)
tanto faz
tanto fez
no fim do mês
o povo em geral
sangue
doperário morto
na refinaria’’’
mistura vosso tempero
acorrenta o dia a bola
sabor bem brasil
massa grossa
massa fina
me beija amor
seja
onde
for
“num delírio incoerente e demoníaco, agiganta- se a minha mostalgia". MAIAKÓVSKI. "uma vida que não tem significado aqui embaixo, não terá também nenhum no alem”. Henry Miller. |
ZEFERINO ALVES NETO
MEUS MEDOS
tenho medo de intelectualices/mais do que de
cobrador no/fim do mês/de donos da verdade mais/do que a cruz do diabo/de ser
preso, torturado/morto e sepultado/subir ao céu no terceiro dia/e sentar a
direita de deus-pai porque não tive tempo de correr/como diz o chico, o anisio/
medo de ter amigos/que me digam /pra que eu lhes diga/que eu sou o bom/entre os
dez mais/e concordem a vida inteira/ que eu não sou um imbecil/medo de ser
aceito/ajustado, bem conceituado/de que os velhos me digam/ “que moço bem
comportado”/de falar" grego/em português,tenho medo/tenho medo de não
escrever besteiras/que os bestas não entendam/ tenho muito medo dos outros/mais
tenho medo de mim.
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PROVOCAÇÃO (1)
o poeta/ sodomizou a virgencita/que queria ir/
de frente/pra delegacia/sem marcha nupcial.
ZEFERINO ALVES NETO
ODE ÀS COCOTINHAS
um dia desses sonhei/que de repente virei/imaginem, o latorraca/as seis
horinhas da tarde/ caminhei descontraído/pelo canteiro central/ da iluminada
frei serafim ./vi aquela aglomeração/ na
altura do colégio/das nossas santas irmãs./ era um enxame gigante/da mais bela espécime/a
vicejar na paróquia/ elas me viram/eu lhes vi/e qual não foi o ouriço/que o trânsito
daquela hora/fez parar e engarrafou ./me dá autografo de cá/ me dá um beijo de
Iá/me mete a mão por aqui/que eu
sei também que é ali/ o sonho que tava lindo/ foi virando pesadelo./ eu, no
sufoco de ter/ na boca um chiclete/um sorvete, um picolé,/acordei” gritando/''acode,
mamãe.
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PROVOCAÇÃO (2)
consciência social.../consciência existencial.../ há alguma diferença,/ poeta
"engajados”/ qual das duas/ dá mais ibope,/cri-ti-cu-zi-nho de província?/
me arrispondam/ se não eu me/ enforco’.
DOMINGOS BEZERRA
PROPRIEDADE
o poeta no auditório e diferente./não trouxe a
sofreguidão da alma,/ apenas a canção entre os dedos ,/a distância das noites
na retina./o poeta entre o samba e a indiferença/e diferente.../não trouxe os
sapos que cantavam nos charcos,/mas a palavra que prolifera nas esquinas./ o poeta
tem a hora da morte/ selada na consciência, no auditório./não trouxe a elegância
das trombetas/ sem as flores que subjugam o velório./tem a consciência da morte
diária/ dizem que o poeta tem o justo/merecimento da surdez/para omitir-se,/mas
a palavra e a mais casta reação/quando o silencia (medo) ameaça interferir./o
poeta no auditório é diferente: / traz o povo todo dentro do seu peito.
"no meio dos flagelos se aprende que ha nos homens mais coisas a admirar que coisas a desprezar."
Albert Camus. |
DOMINGOS BEZERRA
PARTIDA
talvez eu tenha de ir/porém não se espante/ se eu
me mostrar indiferente/ante a surpresa das bocas:/ eu partirei às oito horas da
manhã./não trema, nem tema/ a aproximação das estrelas:/ elas iluminam nosso
medo(o sol faz a combustão das nossas angústias)/ talvez eu tenha que sair./ ir
a qualquer lugar onde haja/ uma andorinha .
. .
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DIAGNÓSTICO
eu diria: calma, ao teu amor/que criaste em mim,
sem enigmas,/ mas jungido ao solo, sem ressalvas./ já não digo nem direi que eu
mesmo/ fui enigma,/ canção ou medo,/ pois me aperta aqui no peito/ um vazio(cheio
de amargura)./ eu diria: planta, ao teu amor que querias afim ao meu,
ensimesmado,/ firme no Oslo,/serei a sombra de minha própria alma./ igarapé
saído do passado,/ desemboco no delta do futuro.
DEPOIMENTO
“Sou
um poeta do Nordeste brasileiro, um poeta do Maranhão, da cidade de S. Luís do
Maranhão. Sou um poeta da Rua do Coqueiro, da Rua dos Afogados, da Quinta dos
Medeiros, do Caga-Osso, da Rua do Sol e da Praia do Caju. Um poeta da casa do
quitandeiro Newton Ferreira, da casa de dona Zizi, irmão de Dodo e de Adi, de
Newton, de Nelson, de Alzirinha, de Concita, de Norma e Consuelo, amigo de Esmagado
e Espírito da Garagem da Bosta. Um Foragido e um sobrevivente. Alguém que conseguiu
escapar do anonimato, que vem do sofrimento menor, da tragédia cotidiana e obscura
que se desenrola sob os tetos de minha pátria, abafada em soluços, a tragédia
da vida-nada, da vida-ninguém. Se algum sentido tem o que escrevo é dar voz a
esse mundo sem história.
Mas não há nenhum mérito nisso.
Primeiramente, fugi. Fugi da quitanda, fugi da família, da vida sufocante e
pouca. Fugi pela poesia, inventei um mundo feérico e feroz. Um suicídio esplendente:
ateei fogo ao verbo, minhas vestes mortais, como se fosse meu corpo. Não era. E
sobrevivi, sobrevivi, sobrevivi. Abati a poesia, calquei-a sob os pés, mijei
nela. Lavei as mãos, virei concretista, neoconcretista, enterrei o poema numa
casa da Gávea. E sepultei com ele a metafísica.
Não, não há nenhuma poética universal:
universal é a poesia, a vida mesma. Universal é Bizuza, cuja voz apagou com sua
garganta desfeita há anos no fundo da terra. O universal é o quintal da casa,
cheio de plantas, explodindo verde no dia maranhense,
longe de Paris, de Londres, de Moscou. O frango que nasce e morre ali, entre as
cercas de varas. O cheiro do galinheiro, a noite que passa arrastando bilhões
de astros sobre nossa vida de pouca duração. Universal porque Bizuza, amassando
pimenta do reino numa cozinha de S. Luís, pertence à Via láctea. E a história
humana não se desenrola apenas nos campos de batalha e nos gabinetes
presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas;
nas ruas de subúrbios, nas casas de jogo, nos prostíbulos, nos colégios, nas
ruínas, nos namoros de esquina. Disso quis eu fazer a minha poesia, dessa
matéria humilde e humilhada, dessa vida obscura e injustiçada, porque o canto
não pode ser uma traição à vida, e só é justo cantar se o nosso canto arrasta
com ele as pessoas e as coisas que não têm voz”.
— Ferreira Gullar.
ÇIRANDINHA — 1.
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REDAÇÃO:
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fone: 222-3037
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Rubervam du Nascimento
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Ferreira Gullar
ARTE:
Fábio Torres: capa, publicidades
Luiz Gomes: montagem, paginação
revista que tem por finalidade difundir a poe-
sia nova do Piauí. Os colaboradores respondem”
pelos conceitos emitidos e assinados, os artigos,
poemas e notas não assinados são de responsabili-
dade de Francisco Miguel de Moura.
CIRANDINHA 3
Revista bimestral de
literatura e artes, circulando em maio e novembro. Aceitamos colaborações em
artigos, reportagens, comentários, recortes, poemas, contos, etc. Não
devolvemos originais não publicados. Não nos responsabilizamos pelos conceitos
emitidos em matéria devidamente assinada.
Editor:
Francisco Miguel de Moura
Reportagem: Herculano Morais
Cartuns: Dodó Macedo
Encarte: Nonato
Capa: Albert Piauí.
Comissão de Leitura: Glória
Sandes, Hardi Filho e Rubervam
du Nascimento.
Redação:
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Regina Maria Queiroz da Silva — Guaraniaçu-PR) e
Alcenor Candeíra Filho (R. Dr. Joio Cândido, 1138 — Parnaíba-PI).
BILHETE
TRÊS
CIRANDINHA desta vez circulará em nada
menos de dez Estados, podendo desde já ser considerada de âmbito nacional,
graças a uma rede de correspondentes amigos e dedicados que não medem
esforços para divulgá-la. E cometemos a esses correspondentes a tarefa ingrata
de também distribuir CIRANDINHA, na medida de suas forças.
No entanto, as pessoas que, por
qualquer motivo, estejam impossibilitadas de contactar com nossos
correspondentes podem se dirigir ao nosso endereço que serão prontamente
atendidas, mas não dentro do sistema de assinaturas - impraticável para um
periódico que sai apenas duas vezes por ano.
Nosso trabalho continua em nível
amadorístico e sem condições ainda de compensar financeiramente nossos
correspondentes e colaboradores. E qual o órgão exclusivamente literário que pode
fazer isto, no Brasil?
Temos o propósito de divulgar a
literatura de nossa geração, sem exclusivismos vanguardeiros nem acomodações
bolorentas, acolhendo qualquer trabalho que não comprometa o nível dialético
mensagem-forma nem, a nosso critério, fuja completamente a nossa realidade.
Será que se pode fazer uma revista
literária somente com esses preconceitos? Este seria o programa de CIRANDINHA.
E só o futuro, a história, dirá se o alcançamos.
As novidades deste número são: um texto
inédito, integral, do teatro de Francisco Pereira da Silva e uma página Dara o
leitor. Que fica com a última palavra.
Outro aviso importante: antecipamos para este mês a saída da revista,
pois não queremos misturá-la com eleição (indireta).
Teresina, setembro de 1978
Francisco Miguel de Moura Editor
PARANÁ: I DEBATE DE
ESTUDANTES SOBRE
A NOVA LITERATURA
BRASILEIRA
EXPRESSIVA contribuição tem dado o Paraná em favor da literatura
brasileira, nos últimos tempos. Basta citar o Concurso de Contos, promoção
anual do Governo daquele Estado, em favor dos que praticam o gênero. Também o
grau de consciência de uma classe mais ligada à literatura merece ser citado.
Trata-se dos professores e do atual movimento grevista que eles sustentaram.
Recente também é o I DEBATE DE ESTUDANTES SOBRE A NOVA LITERATURA BRASILEIRA,
patrocínio da UNIAO PARANAENSE DE ESTUDANTES. Nos dias 7 e 8 de julho deste
ano, em Curitiba, reuniram-se escritores novos de várias partes do Brasil com
os estudantes daquelas paragens e de outros Estados, procurando debater
assuntos como: A Nova Literatura Brasileira e a Classe Estudantil. A
Divulgação do Autor Novo e a Função Social da Literatura.
DINÂMICA DO DEBATE
EXPOSIÇÃO DE REVISTAS,
LIVROS E PUBLICAÇÕES
MARGINAIS
Foram os seguintes os expositores dos temas dados: Rubervam du
Nascimento, Amador Ribeiro Neto, Domingos Pellegrini Jr., Wladyr Nader,
Aristides Klafke e Roniwalter Jatobá. Mas outros escritores estavam presentes,
animavam os debates apresentando sugestões e prolongando normalmente as
exposições. Alguns deles: Ricardo G. Ramos e Lúcia da Silva Ribeiro, do Rio;
VirgíHo Matos, de Belo Horizonte; Arnaldo Xavier e Sílvio Spada, de São PauIo:
Reinoldo Atem e Luiz Edson Fachin, de Curitiba. As perguntas e interpelações ou
apartes, que a principio deveriam ser feitas por escrito ao expositor, passaram
a ser de viva voz, na primeira sugestão enunciada, e a participação cresceu
Entre tais publicações, muitas piauienses: O DE CASA, CIRANDINHA,
PRESENTE DO INDICATIVO, TRIBUNA SECUNDA- RISTA, DE FRENTE PRO GOL, OPRESSÃO.
Havia outras equipes especiais para hospedagem, alimentação, publicidade,
deixando ao visitante a melhor das impressões. Os dois dias do Encontro do
COLÉGIO ESTADUAL DO PARANÁ foram realmente um exemplo de organização e
trabalho do estudante secundarista paranaense.
Eles montaram um Departamento de Publicidade do conclave que a cada
hora informava os participantes através de boletins mimeografados, sumário das
discussões e debates, acrescidos dos poemas recitados e das minúcias pertinentes.
DEPOIS
DO CONCLAVE
ENCONTRO
DOS ESCRITORES
Na
noite de sábado, dia 8, houve um encontro final de todos os escritores, na
residência de Reinoldo Atem, que é piauiense, professor universitário e um dos
diretores da Editora Cooperativa dos Escritores do Paraná, para troca de obras
autografadas, valendo a pena registrar o recital de poesias que foi
espontaneamente apresentado pelos próprios autores, cada um
recitando textos dos livros ali presentes. Rubervam du Nascimento recitou
Francisco Miguel de Moura, Paulo Machado e Afonso Lima, além dos seus próprios
poemas, deixando assim uma visão nítida do que se faz atualmente no Piauí. A
imagem do rio Parnaíba, agora magro e feio, foi insistentemente evocada diante
dos que pessoalmente não conhecem nosso Estado, deixando transparecer nossa
constante preocupação em preservar as tradições e zelar pelo meio-ambiente,
sem contudo desprezar a pesquisa formal, a atualização do poema. O problema do
rio impressionou porque foi levantado na exposição, nos debates e nos
recitais, pelo nosso poeta Rubervam: “o rio está ficando tuberculoso, ele está
sendo espremido comigo, juntamente comigo, eu sinto isto porque o atravesso
todo dia. Os novos poetas do Piauí devem sentir, como eu. a morte do rio
Parnaíba”. Reinoldo Atem, que tomou banho no Parnaíba em pequeno, sentiu pena e
falou: “Ainda voltarei ao Piauí, antes do Parnaíba secar”.
DISCORDÂNCIAS E CRÍTICAS
DURANTE OS DEBATES
Os temas em debate foram bem aproveitados pelos expositores convidados
e seriamente refletidos pelos estudantes. Houve participação maciça. Dentro da
ordem do conclave, a desordem da participação, da democracia. Tudo era posto
SÍNTESE: VALEU A PENA?
Valeu a pena, disse Rubervam du Nascimento, representante do Piauí, no
Conclave. Valeu como tentativa de pensar a realidade brasileira, num momento
cruciante. Não será feio seguir o exemplo dos paranaenses, acrescentou irônico.
Foi um passo para nossa tomada de consciência. Outros serão dados com certeza. O
Piauí ficou em Curitiba, foi pra São Paulo, Rio, Minas. E prossegue nosso
poeta: Não vi diferença grande em Curitiba, nem ninguém quis aparecer mais do
que ninguém. Tudo de igual para igual. O que apareceu mesmo foi a nova
literatura brasileira. O estudante deixou o Debate com uma impressão na
cabeça: fazer que outros leiam a nova literatura brasileira. Por outro lado, o
escritor novo levou uma lição muito grande: é preciso saber o que se está
fazendo. Literatura não é brincadeira. Não se brinca fazendo poesia. A
literatura tem que virar prática, como disse Lúcia da Silva Ribeiro.
Macunaína
em desfile
Francisco Miguel de moura
não estou contra a bandeira
antes pelo contraríssimo
eu sou brasileiro sim senhor
e dá-se aquele abraço
ou então um jeitinho.
acho isto tudo um milagre
até a morte.
abaixo o trabalho
abaixo o sofrimento
porque agora vamos contar
mais uma piada do joãozinho.
futebol carnaval e depois
a canção de protesto
de longe
que os homens da lei
merecem nosso respeito.
mas vamos pregar heroísmo
de que não participamos
e se faltar alguém
(o que é mais fácil)
qualquer um lúcio flávio
serve de herói
até um doca street.
gente, aí é quando
o homem que sua
- (desiludido de que
deus não é mais aquele
brasileiro
e também foi banido).
resmunga um palavrão.
um livro de poemas que rompe barreiras, uma avalanche no mundo bem comportado, burguês, da poesia de e para mocinhos, aqui você
pega tapa no pé do ouvido, escurece
a vista, vê estrelinhas não aquelas que conversavam com Bilac, outras, e
outros bichos, não espere coisa parecida com “pedra em sobressalto”, que já
completa quatro anos e está esgotadíssimo. se você é hipócrita, parabéns,
não leia. porque vai se arrepender. preço: cr$ 70,00. pedidos pelo correio.
edições grupo/cirandinha
rua 13 de maio, 732-n
Teresina
bárbara
porto seguro onde os homens
frequentam assiduamente como
mar famintos
bárbara
casto silêncio velando
os olhos insones dos desvalidos
bárbara
ruela torta onde os bêbados líricos
apregoam Insubmissão
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PEDAÇO DE POEMAS
Rubervam du Nascimento
Tanto mistério
no silêncio.
E minha avó come ovos
já quase chocos
de debaixo da galinha preta
Eu queria era muito
dar um soco
n(u) passado de minha vó. Não
dou e esmurro o pensamento.
AUTODEDURAÇAO
DODÓ MACEDO
fazia poesias falando de amor
e até quando as fazia
atentava para o detalhe
de não deixar margens
a outras interpretações
fazia contos inexpressivos
falando de coisas triviais
que brotavam de dentro
e até quando os fazia
atentava para o detalhe
de não deixar margens
a outras interpretações
na rua, caminhava depressa
pra chegar logo a seu destino
e livrar-se da sensação
de estar sendo observado
na banca de jornais
comprava rápido o jornal
e a revista e enrolava-os
punha-os debaixo do braço
e
partia
à noite, fumava e lia
e enquanto ruminava um
bruto conto
e uma bruta poesia
sacava a lauda branca de pureza
pronta pra receber pecados
dos mais diversos, vis
mas ante a folha branca
o pecado virava um lindo
conto de amor
e uma bela poesia
rimando flor com dor
sem deixar margens
a outras interpretações
um dia, num encontro de poetas,
escritores e outros marginais,
sentiu o olho ficar rútilo
e o coração desabalado,
levantou-se e, sem tremer a voz,
gritou: “EU SINTO MEDO!”
sentou-se lentamente
e se sentiu perdido:
aquele grito deixara margem
a muitas interpretações
Teresina - PI
SÍNTESE
F. Eduardo Lopes
Um dia a gente pára
para pensar no passado
cursos e mais cursos
coisas e mais coisas
e a gente sente
que fez muito
Um dia a gente pára
para ver como está
o presente
muita coisa
acontecendo
muita gente
se encontrando
e a gente percebe
que fez pouco.
Um dia a gente pára
para pensar no porvir
tantos planos
tantos sonhos
ambições
e a gente vê
que nada fez.
1975
_________________________________________________________________
POEMEDO
Hardi Filho
Desgravem
se foi dito que este tempo
é tempo de muito sentir
coletivas angústias
Desgravem
se foi dito que este tempo
é tempo de muito acudir
quem acorda sem nada
se chamando povo
Desgravem
se foi dito que este tempo
é tempo de muito ver
(es)cravos e mãos e ombros sua-
dos
de trabalho feito/fazendo/por fa-
zer
Desgravem
se foi dito que este tempo
é tempo de desânimo eriçado
no desassombro do sangue
(des)nutrido e co-habitado
por corrente e compulsão
Desgravem
se foi dito que este tempo
é o de muito ser macho em manso
dia:
dia/noite cercado de silêncios
iminências e holofotes
Em sendo assim desgravem
des(a)gravem por favor o poema
inútil seta sem veneno
_________________________________________________________________
ESTE ESTA
esta sapato me aperta
este relógio me espreme
esta gravata me sufoca
este paletó me abafa
esta cueca me enche o saco
esta calça me atormenta
— vontade de ser nu!
Alcenor Candeira filho
Parnaíba-PI
LANÇAMENTOS
OCORRERAM três lançamentos recentemente no
Piauí. Tudo poesia. Os nomes: “NA POEIRA DOS DIAS”, de F. Eduardo Lopes, que
tem se revelado um captador de momentos sutis, reais e angustiantes, nos seus
versos tão naturais e tão necessários, e “PONTA DE RUA” de William M. Soares,
um garotão que anda lendo o dissidente Solzhenitsyn e fazendo “a ave-maria dos
supermercados, com um montão de bons temas, mas ainda com pouco jeito na floresta
de palavras. Promete bem. Leia seu lançamento e discorde de mim, por favor.
O lançamento maior, e para este abri um
parágrafo, foi “VARIANTES DO BERRO”, de Carvalho Neto, com prefácio de Nauro
Machado (que não disse nada, absolutamente nada — o prefácio), edições COMEPI
1978. Carvalho Neto, no livro que estréia, marca uma presença madura da nossa poesia, uma presença forte, com alguns
pecadilhos, dos quais para exemplo, mostrarei o mais evidente: deixa-se levar
pelo enfeitiçamento das rimas frágeis como nas canções da música popular brasileira, talvez por
ser muito afeito à música e ter se desleixado nesse ponto. O abuso desse expediente
enfraquece a melhor das mensagens, adocica o ouvido até amolecermos e nos
desinteressarmos do que pretende dizer e efetivamente nos diz o poeta.
Ressalto a profundidade do seu lirismo, principalmente em “Insônia”, ótimo
poema que nos fala “nos pés virgens sangrados/ na corrida apocalíptica/ dos inssurrectos
anônimos”. Outros poemas dignos de nota, antologiáveis: “Minha Rua, Meu Pedaço”
e “Eu Pescador”. Enfim, um livro que deixa sua marca, que não será esquecido
facilmente. Agora, só uma pergunta: Como pode outro poeta de Amarante, nem que
seja bom, aparecer? Carvalho Neto nasceu em Amarante-Piauí, a terra de Da Costa
e Silva, em 21 de setembro de 1944. Tem colaborado constantemente em nossa
imprensa literária, somente com poesias. Com “VARIANTES DO BERRO” marcou um
tento bem marcado, Parabéns.
HOJE
Ei moço! para de falar
em
segredo
E moço! pare de sorrir
ainda é cedo
Ei moço! pare de fingir
pare de iludir
pare de mentir
A sua cara é a expressão do
MEDO
Cinéas Santos
TINTAS FRESCAS
Zémagão
No cartão
Feliz Ano Novo
Paz/Tranqüilidade/Amor
No coração
Nós povos
Na mira de um franco-atirador
Na poesia
Tá mais pra ditadura
Que pra democracia
Leia
Assine
Divulgue sua agonia
Sua fome dá xadrez
Seu menor gesto de voar
Pode ser uma volkstupidez
Bebababy
Baader-Meinhof
Tempo
Visibilidade boa
Céu Azul
Epidemia no nordeste.
Trovoadas e cassações
Na R-S
Surge a lua
Por trás dos edifícios
Biônica
Em papel-ofício
As pedras deste quarto
Têm o ar de subversão
Nota-se o pavor na mobília
E o suspense na paredepoelra do
violão
Plantou uma árvore
—
Morreu
Escreveu um livro
—
Censurado
Tem um filho
—
Na indigência
Moral:
A inflação toma café
Pelé soma a fração
115 milhões
Conferem os cartões
Wida
Wida
Aperte o cinto
—
Decolar
—
Diálogo
Pechincha
Abertura
Constituinte
E o povo /Público ouvinte
A espera da rapadura
O redentor no D.O.P.S.
É o FLA/FLU.
QUANDO estávamos fechando
a edição de “Cirandinha” n°
Corisco lançava a coletânea
“AVISO PRÉVIO", reunindo poetas
do melhor nível". Alcenor Candeira,
Rubervam du Nascimento, Paulo
Machado, Cinéas Santos, entre
outros. Da próxima vez comentaremos
o lançamento.
DE SÃO PAULO recebemos a
coletânea MOMENTO POÉTICO,
que contém poetas de boa
expressividade, a maioria inéditos.
Para nós os mais conhecidos
são Antônio Carlos Fernandes da
Silva e Francisco Miguel de Moura,
ambos piauienses. É uma bela
edição da Editora do Escritor,
de São Paulo.
A máquina de linhas
Derrota o Coronel
José Roberto Alencar
Tiros e mortes não costumam aumentar as tiragens
dos jornais alagoanos. Rotina não vende jornal. Só nos últimos 1P meses, cinco
prefeitos interioranos foram assassinados. Talvez por isso, a história daquele
estado não registre tiros mais barulhentos e mais destruidores do que os três
desfechados no peito do coronel Del- miro Gouveia, na boa noite de 10 de
outubro de 1977.
O coronel só durou mais 10 minutos. Suas plantações de algodão — que seguravam em Alagoas
milhares de retirantes enxotados pelas secas — sua usina na cachoeira de Paulo
Afonso e sua fábrica de linhas Estrella, com
dois mil empregos, ainda resistiram até 1930. Em abril, as máquinas foram
quebradas a marreta e jogadas na cachoeira, pela Machine Cotton, multinacional inglesa, que voltou a ficar
sozinha no mercado latino-americano com as suas linhas Corrente, de costura e bordado.
Geraldo Sarno — que de
O Coronel Delmiro Gouveia
é uma reportagem bem feita, com entrevista com gente que conheceu o coronel e
muita pesquisa em arquivos pernambucanos e alagoanos. Custou Cr$ 1 milhão e
500 mil à Sarus Filmes e à Embrafilme, deverá participar do Festival de Cannes
e será lançado no Brasil, em circuito nacional, só no segundo semestre, porque
o primeiro está lotado de bons lançamentos.
O filme começa com um entrevistador (invisível)
fazendo perguntas (inaudíveis) a um velho ex-operário de Delmiro, que vai
puxando pela memória e dizendo: "Antes dele era muito ruim. Depois ficou
bom. Fome ninguém passou enquanto ele viveu. Ele era bravo, sim senhor. Matar,
ele nunca mandou, não senhor. Nunca matou ninguém, não senhor”. ‘Termina com
cenas de marretas quebrando máquinas, teares, e de operários atirando os cacos
na cachoeira, enquanto a voz do mesmo entrevistado, o velho Zé Pó, diz que
trabalhar com as máquinas é melhor do que com as mãos. Que "a
gente acaba ficando amigo delas", embora elas não pensem e possam ferir o
operário. Que elas gostam de ser. bem tratadas.
Diz que o coronel chegou, mandou montar a fábrica e
os operários montaram. Foi assassinado, chegaram os ingleses, mandaram, quebrar
e os operários quebraram. E voltaram a viver mal, na roca, trabalhando com as
mãos, fugindo das secas. "Ninguém perguntou para nós se era bom quebrar as
máquinas e fechar a fábrica. Ninguém quis ouvir nossa opinião. E eu acho que
as fábricas só não serão destruídas no dia em que pertencerem realmente,
inteiramente aos trabalhadores". Delmiro morreu sem vender a fábrica aos
ingleses, dizendo que ela não era apenas sua. Era dos operários, que ele
chamava de "a terceira força".
Entre a primeira e a última cena, Geraldo Sarno
conta a história do coronel, com todas as perseguições políticas que sofreu por
parte de governadores, de vice- presidentes e presidentes da República. Conta a
história de Delmiro, desde ô último minuto do século passado, até o seu
próprio último minuto. E consegue manter em suspense a plateia. Apesar de todo
o mundo saber que o mocinho morre no fim.
COO
JORNAL - MAIO/78 PORTO ALEGRE (RS)
MEDO
Vera
Hoje a cidade me deu medo
medo de suas luzes,
de seu barulho
do mistério que existe
dentro de cada pessoa.
Me deu medo à janela
e lá fiquei
pra não me aventurar no asfalto
e terminar esquecida entre faróis.
Teresina – Pi
5.213.860-7
Alexandre Carvalho
Meu nome é José...
tenho outros
apetrechos, trechos
filetes burocráticos
números diversos — tenho
identidades
certificados
cepeefes
pasepes
fegeteesses
matrículas
outros bichos tantos
que já nem sei quem sou:
Gente ou peça
desta fria máquina
pessoa humana, alheia ou biônica.
Quem
sou?
De
onde venho?
Pr’onde
irei? Não
sei...
Até na tumba ,
final burocrático incógnito
terei:
Datas — nomes — números
após o nada.
____________________________________________________________________________
RAIO-X DA ROTINA X
José Ribeiro e Silva
Acordo...
com sono
bocejo a vida
e espreguiço os
problemas
Levanto...
sem ânimo
escovo as angústias
e banho as quimeras
Trabalho...
com afinco
estudo as idéias
e datilografo os
desejos
Como...
sem apetite
mastigo o cansaço
e engulo a ilusão
Deito...
Apago a luz
e acendo os anseios
no embalo dos sonhos.
REGISTROS
Aos 8 de junho de 1978 foi promovida a I APRESENTAÇÃO DE POESIA DE RESISTÊNCIA, com 0 apoio do Departamento de Letras da
Universidade Federal do Piauí. A frente
o poeta Francisco Castro, que editou o “Caderno de Poesia de
Resistência”, mimeografado, contendo
todos os poemas recitados naquele
simpósio.
O Anuário de POETAS DO BRASIL, 1978,
organizado por Aparício Fernandes, trouxe duas excelentes contribuições: Herculano
Morais e Rubervam du Nascimento. E por isto dizemos que aquela publicação,
feita tão sem critério seletivo, desta vez se salva. Rubervam se apresenta
espetacularmente corajoso com sua série de “poemas dos ratos”.
Herculano Morais, nosso companheiro, tanto de
CIRANDINHA como do pioneiro de todos os movimentos literários de hoje, o velho
CLIP, foi nomeado diretor do Teatro 4 de Setembro. Promete algumas inovações
na programação,
se contar com o apoio das autoridades e dos
grupos do teatro amador.
No Rio de Janeiro, o melhor lançamento em
poesia foi “EBULIÇÃO DA ESCRIVATURA”, pela Civilização. Autores: treze poetas
impossíveis. Um deles, maranhense de Caxias — O Salgado Maranhão — andou
sondando a possibilidade de lançamento da coletânea no Piauí. Não houve. Por
quê?
O Curso de Literatura Piauiense ministrado
nas dependências da Escola Industrial, pelo poeta Herculano Morais, foi muito
bom e contou com a colaboração dos escritores piauienses mais ativos. E um bom
augúrio para o estabelecimento da cadeira de Literatura do Piauí, no currículo
do ensino de segundo grau. O curso teve maciça frequência de professores dos
colégios de Teresina e das principais cidades do Estado: Picos, Floriano,
Oeiras, Parnaíba, etc.
____________________________________________________________________________
há avulsos vultos
entre decepar colinas e abrir manchetes
cortar paralelas
flutuar novas pastagens
navegar crateras
situando, triturando feras
agir, encontrar, restituir
um dia de repente enquete:
poema e povo se encontrarão
lado a lado
em cada brasileiro.
Elizabeth Rêgo - Teresina
BAIONETAS
palavras
reunidas
trabalhadores
fábricas
conselhos
salários
modos de
produção
liberdade
água
sede
frutas
fome
levante
idade
sol:
o berror
que o gato
deu
Menezes y Morais
O NADA
Maurienne Lustosa Caminha
Nada é a menina que diz que não sabe,
Só sabe que não vai passar no vestibular.
Nada é o menino que chora porque perdeu
o campeonato de tênis.
Nada é o adulto que esconde p chiclete da criança.
Nada é saber de tudo, pois assim não há mais lugar
para novos conhecimentos.
Nada é chorar de tristezas sem ter esperanças.
Nada é não saber jogar o jogo-do-contente.
Nada é não ler nada.
Nada é dizer que ama e odeia num momento
de fraqueza.
Nada é olhar o céu, enxergar, mas não ver nada.
Nada é estudar por obrigação.
Nada é namorar por hábito.
Nada é não se interessar pelos porquês
Nada é não gostar dos amigos.
Nada é início...
Porque
Quem nada tem, tem coisa de sobra
SABOR DE SAL
EU, Jupira:
Desfraldada
e numa posição fetal, berrei: e não me olhe com essa cara de bolacha sem sal —
porque eu não topo esse seu olhar de quem não diz nada e que me odeia me
tolera... não tem outro remédio. Por que você não vai embora? Não, não vai...
tá bom, então fala, berra, coloca a última tragédia d “O Dia” pra ser discutida.
Sabe corno eu me sinto? Claro que não... pois eu me sinto como Um inseto, que
foi pisado e tenta se unir, arrastando-se em pedaços. Arrependimento? Nunca.
Tenho uma fortaleza aqui dentro, minha vontade é maior que todos os
edifícios, do mundo, juntos. Isso tudo eu disse pra ELE, que me vigia dia e
noite,
Dagora
ora em diante falo para você *que tem os sentidos velejando por mares
inexistentes. Sou altruísta, não tenho medo de pouca coisa, sempre usufruí de
liberdade em todos os ângulos e se morrer hoje, morro numa boa, sabe porquê?
Porque não tenho medo de nada; nunca deixei de ir em busca das coisas por medo.
Olha
só, minha mão espalma- da — vê aí no desenho — está cheia de calos, não?
Calos... virão mais, que com o passar do tempo se calejarão, aí então eu posso
cortar porque não sentirei mais dor. Por enquanto só há suspiros, ânsias e
vontades reprimidas. Desculpa, sei que você tem uma raiva danada do diabo
dessa última palavra, mas com outra não definiria o que sinto. Minha vontade
mesmo era dar uma bordoada naquela cara, mas enfim... guardarei minhas energias
para momentos mais adequados.
Há
preocupações futuras, an-
Rosa
Maria dos Santos Rio RJ) tecipadas, assim como coisa
de cinqüenta anos, mas quem não tem? O que sinto é alucinante, percorri
todos os espaços em branco para serem
preenchidos e o cigarro no bico, os dedos estão amarelos. No fim o filtro fica todo machucadinho no cinzeiro. Provavelmente
morrerei com mais de um câncer. Está bem, não falarei mais besteiras, as
besteiras são proibidas. Uma das vontades maiores é aquela de ver gente, um
montão... multidão...
rostos cheios de emoções ambíguas, você vai
olhando e apontando: feliz, triste, carrancudo, nervoso, passivo e assim...
mas ainda existem coisas importantes, sem as quais
os pensamentos não se criavam e frutificavam.
Você por acaso é uma delas,. tão importante
que ocupa até meu sono, o que me faz mais torturas ainda, pois se durante o
dia sonho acordada à noite vêm as perseguições, me debato e acaricio o lençol,
o travesseiro, então acordo e tenho crises horríveis: chuto o tapete, trituro a
fronha com os dentes e esmurro o armário. Uma
vez saí tateando você e falando assim: por favor, não se esconda. Pensa que eu não estou lhe vendo? Ah, não faz isso comigo
que eu fico chateada. Quando descobri a triste
verdade, virei felina. Fui para a
frente do espelho: grarrrrr, cuspi e a saliva voltou molhando toda a minha cara.
Existe armário para esmurrar? E óbvio,
alucinação.
Sei
que a interrogação que existe entre nós é o sinal de maior desequilíbrio emocional,
porquê as coisas não são concluídas, se
prolongam, formando um conjunto infinito.
Me dá vontade
desesperada.
REINO DO MAR SEM FIM
História de honra, amor, traição,
pecado, graça expiação, com cenas do mais puro realismo e outras de sonhos e
alucinações que se passam no espírito de gente como Leopoldino — o pescador que
promete sua filha Narcisa a Janaína, a Rainha do Mar, em cumprimento de uma
promessa e de uma graça alcançada. “REINO DO MAR SEM FIM” é um depoimento
coletivo de Leopoldino, Arioso e Aldora, diante do invisível inquisidor (quem?
você? o mundo? o delegado? o poder?), um depoimento das fraquezas e misérias a
que foram submetidos. Seu autor, o dramaturgo Francisco Pereira da Silva,
baseou-se em fato verídico recente, acontecido no litoral da Bahia, onde vivem
pescadores na mais extrema penúria, entregues à tradição, a Deus, ao mar e aos
mitos. E um trabalho que nos coloca diante dessas pessoas simples e sofridas, a
um tempo culpadas e inocentes, envolvidas pelo mesquinho universo de suas
paixões e pela problemática da fome, que, aliás, o texto insiste em revelar de
modo -muito discreto, insistindo na palavra fartura. Aqui o homem universal e
singular se apresenta tão contraditório e quase desconhecido dos seus
semelhantes como em todas as latitudes e em quaisquer agregados sociais, não
obstante o sabor regional de algumas colocações feitas inclusive no nível da linguagem
e na utilização sutil e oportuna de trechos da literatura de cordel.
Constata-se a profunda consciência moral das pessoas simples, talvez por viverem em contato direto com a natureza e o seu poder. E um
texto conscientemente moldado no melhor gosto clássico, sem exageros nem
omissões, com a paixão do verbo em sua inteireza, trabalhado até o limite da
paciência de um artista, sobre cujo texto - segundo seu próprio autor — pode-se
montar um espetáculo de extrema simplicidade, mas de dor e dilaceração, e essa
tragicidade quase diria grega — banhada de intenso lirismo.
Francisco Miguel de Moura
Reino do Mar Sem Fim
Personagens
Antônio Leopoldino dos Santos
Aldora Estreia dos Santos Personagens
fantásticas
Narcisa Estrela dos Santos
Rei
Arioso Marinho
Princesa Rosa Flor
Um grande lençol branco que muda de forma para
sugerir — ora, uma rede de embalo, ora as velas de um saveiro. Música. No
proscênio estão Leopoldino, Aldora Estreía e Arioso Marinho. Ao lado deste, um samburá.
LEOPOLDINO — Meu nome? Antônio Leopoldino dos Santos. A idade que eu
tenho? E de 32 anos. Sim, sou casado. O nome dela é Aldora Estrela dos Santos.
Filhos? Tenho três. Isto é, agora são só dois, pois Narcisa, a mais velhinha,
sumiu. E eu sei? A gente sabe os caminhos da vida? Tudo é muito misterioso.
Sabe não. Ninguém sabe. Não. Deus mudou a vida dela Eu? Não! Não senhor! E um
aleive! A mulher? Então Aldora Estrela, tu tem a coragem de dizer que me viu?
Ah isso não! Ela me viu foi na rede do copiar — me balançando com a sumida menina
— contando para ela aquele relato de um tal de Prinspo Formoso. Se Aldora
Estrela até me disse assim: fez a menina dormir sem lavar os pés.
ALDORA —Eu? Aldora Estrela. Tenho 30 anos. Sim, sou
casada com este homem aí, que, por desgraça, é o pai de meus filhos. Sim, tive
três, Narcisa, a falecida, era a mais velha. Tinha 10 anos. Agora são só dois:
Alaore Lael,, o caçula. Narcisa? como era ela? Ah, era lourinha, lourinha.
Excelências, ai quem me dera a minha filha de volta! Que eu me encontrasse de
novo com a minha filha. Seria um sonho. Um lindo sonho! ,
LEOPOLDINO — Pois pra mim a volta dela é garantida.
É uma certeza. ALDORA (mostrando uma bonequinha) — Cacheada ver uma boneca.
Como esta bonequinha que era dela. Doutor eu juro! Minha gente eu juro! Juro
como ele deu a minha filha pra Janaína. Pois se ele prometeu?
LEOPOLDINO — Eu prometi?
MÚSICA, O LENÇOL
SUGERE, AGORA. UMA REDE NO PROFUNDO AZUL DA TARDE. E NELA VAI DEITAR-SE
LEOPOLDINO. SURGE NARCISA, QUE VEM SENTAR-SE NAS PERNAS DO PAI.
NARCISA — Conte de novo, meu pai
LEOPOLDINO — Não te contei vinte vezes? Agora vou
contar a de Janaína.
NARCISA — Não, não quero a de Janaína.
LEOPOLDINO — Por quê? Você não gosta da Rainha do
Mar? De nossa Mãe Janaina? Ela é sua madrinha. Sabia?
NARCISA (com a mão na boca do pai) — Para. Conte a
estória do Prinspo Formoso. Conte mais. Conte. Ela é bonita.
LEOPOLDINO — Então o pai tinha três filhas e ia
fazer um viajão de léguas e muitas léguas.
NARCISA — Como era ele?
LEOPOLDINO — Era assim como eu, um pescador, sendo
que era Rei. Então a primeira filha, que atendia pelo nome de Mafalda, pediu
que ele, na volta, trouvesse para ela um vestido da côr do campo com as
fulores. Lianor, a segunda, pediu que ele trouvesse um vestido da côr do céu
com as estrelas.
NARCISA — E a terceira? A de nome Rosa Flor? Já
sei. Ela pediu um vestido da côr do mar com os peixinhos.
LEOPOLDINO — Podia ter sido, que no coração dela é
o que ela queria mesmo era esse vestido, pois ela, como você, Narcisa, gostava
de tudo que era do mar.
NARCISA — Então, o que ela pediu?
LEOPOLDINO — Ela pediu uma flor.
NARCISA — E eu? Tinha pedido o quê? Deixe eu ver. Ah,
eu pedi a boneca Mãezinha. Não foi?
LEOPOLDINO — Foi. Então Rosa Flor pediu ao pai a
flor mais linda do mundo! “E quando inteirou 6 meses/ o Rei para casa voltou/
tristonho desconsolado/ pela flor que não achou/ logo pra filha estimada/ que
nunca lhe incomodou”. Quando faltava uma légua/ para em casa ele chegar/
avistou de muito longe/-
'NARCISA — “um sombrioso pomar/ perto dum velho
castelo/ onde devia passar.
LEOPOLDINO — “Havia então uma roseira/ ornamentando
o portão/
NARCISA — “e uma rosa vermelha/ perfumava a
região”.
SURGE O REI.
LEOPOLDINO — “Quando o velho Rei contente/ a linda
rosa avistou/
NARCISA — “de Rosa Flor se alembrou.
LEOPOLDINO — Mas — “foi justo tirar a flor/ e uma
voz assim dizer:/ só pode levar a rosa/ se você me prometer/ que chegando à sua
casa/ a primeira coisa que ver/ me trouver com 8 dias/ sob pena de morrer.
Então o velho lembrou-se que via era cachorrinha disse de pronto: prometo”.
NARCISA — Prometeu a Tuninha?
LEOPOLDINO— Sim — “pois ele tinha a certeza/ que o
primeiro ente que via/ era a cachorra Tuninha/ então arrepetiu: prometo/ quero
é a rosa vermelha/ para da/ a minha filhinha”.
O REI EXIBE UMA FANTÁSTICA ROSA VERMELHA. E QUANDO
VAI SAIR, ENCONTRA-SE COM A PRINCESA ROSA FLOR. A PRINCESA, ALEGRE, RECEBE A
FLOR E O REI, CHORANDO, A ABRAÇA.
ROSA FLOR — “O que foi, meu pai? O que tendes?
REI — “Seu presente, minha filha,/ no Reino de
Alisbão/ não encontrei a meu gosto/ nem que pagasse um milhão/ voltava triste
para casa/ por esta justa razão”.
NARCISA — Não havia flores?
LEOPOLDINO — As florisbelas, não.
ROSA FLOR — “E por que chorais, meu nobre pai?
REI — “Então quando.vinha de volta/ avistei esta
linda flor/ e foi quando ouvi uma voz/ que assim me interpelou: / nobre Rei,
para colher esta rosa/, precisa me prometer/ aquilo que lhe apareça/ ao chegar
na sua casa”.
LEOPOLDINO — “Então o Rei disse que prometia/ pois
toda vez que ali chegava/ quem na quina o esperava/ era a cachorra Tuninha”.
NARCISA — Mas dessa vez foi Rosa Flor.
ROSA FLOR — “Nobre pai, eu irei. Irei para esse
castelo, pois meu coração só me diz que é a morada de um Prinspo Formoso e Encantado.
E lá serei feliz”.
DESAPARECEM REI E ROSA FLOR.
LEOPOLDINO — Tu me achas, filhinha, parecido com o
Rei?
NARCISA — Acho.
LEOPOLDINO — E eu te acho mais linda que a Rosa
Flor.
NARCISA — Devera?
LEOPOLDINO — Então Rosa Flor, muito corajosa, foi
para o castelo, e ali, depois de um mês, a voz desencantou num lindo Prinspo, e
casou com ela. Tudo na maior riqueza. Muita fartura, muita comida nas mesas!
ALDORA APROXIMA-SE DA REDE.
ALDORA — Pára com tanta estória de encantos e
farturas. Garanto que a Narcisa dormiu escutando estas bobagens. E nem lavou os
pés.
LEOPOLDO E ALDORA APROXIMAM-SE DO PROSCÊNIO, ONDE
ESTÁ ARIOSO.
ALDORA — Prometeu, doutor, prometeu.
LEOPOLDINO — Tu e tuas suposições.
ALDORA — Dizendo ele que dava a Janaína um dos filhos,
caso regasse um peixe — muito grande — para resolver as dificuldades dele.
LEOPOLDINO — Tu ouviu foi a estória de Rosa Flor.
ALDORA — Foi não. Foi a tua. A do peixe.
LEOPOLDINO — O doutor acha que um mero de cem
quilos é peixe grande?
ALDORA — Eu acho.
LEOPOLDINO — Ela morre, doutor, e não conhece nada
nem de peixe nem de pescaria. Se fosse um marlim de 600 quilos, aí sim, aí ela
codia fazer as suposições. Porque só Mãe Janaína seria capaz de me ajudar a
botar o bruto de um marlim dentro do meu saveiro.
ALDORA — Tá aqui quem me deixa mentir. Disse alto e
bom som, pra todo mundo escutar. Compadre Arioso escutou. É testemunha.
ARIOSO — Meu nome? E Arioso Marinho. Idade? Tou na
casa dos 25. Não, sou solteiro. Ouvi. Ouvi o compadre Leopoldino dizer assim
mesmo. Assim como? Assim, do jeito que a comadre Aldora Estreia disse. Se eu
posso repetir? Posso, nhor sim. Ouvi bem. Ele dizia assim: “se Janaína me
ajudar a pegar um peixe grande, que dê para saldar as minhas dívidas e ainda
sobre, prometo dar um de meus filhos para ela. “E o compadre pegou ou não pegou
o peixe?
LEOPOLDINO — Peguei um mero de 100 quilos. Lhe
pergunto compadre Arioso — isso é peixe grande?
ARIOSO — Bom, tem mero e tem marlim até de 600 e
mais quilos. Mas um mero de 100 é peixe da gente não desprezar. E sorte grande.
ALDORA — Pra mim é como se fosse um boi. Dantes,
doutor, ele só conseguia pegar as miunças do mar.
ARIOSO — E com aquele peixe penso que o compadre —
vendendo ele no quilo — deu para saldar todas as dívidas e ainda ajuntou
dinheiro
LEOPOLDINO — É verdade.
ALDORA — E quem me diz que ele agora é pescador
desses peixinhos refugos, alimento de gato e rato? Só traz espécies de
primazia. Um despotismo de garoupa, anchova, albacora, badejo, espadarte. E até
o peixe pampo — a galinha do mar — ele traz e com ele presenteia os ricos!
LEOPOLDINO (de rosto baixo) — Doutor, Aldora
Estrela fala e sonha demais com peixes finos. Penso que devido ela ter sido
criada no meio das farturas.
ALDORA — Graças a Deus meu pai sabia ir buscar o
peixe. Um entendido. Um grande pescador! Não era um xem-xem-xem, um esmorecido,
um, que nasceu para as miunças. Um que, para pescar, se vale dos santos. Dos
altos poderes.
LEOPOLDINO — Agora, o peixe sendo pescado por mim,
ela não reconhece.
Não me considera com essa capacidade.
ARIOSO — Na verdade o compadre tem andado com uma
grande sorte. ALDORA — Sorte lá nada, compadre Arioso! Nem sorte nem competência.
Foi pauto. Um pauto. Um dia ele chegou bastante “tocado”. Então eu vi a
Narcisa ir abraçar ele. E, juro, ouvi uma conversa de reinos encantados. Isso
nada prova? O senhor acha?
LEOPOLDINO SE ENCAMINHA PARA O
OUTRO PLANO. NARCISA VEM
AO SEU ENCONTRO.
NARCISA — Que foi, meu pai, o que tendes?
LEOPOLDINO — Seu presente, minha filha, no Reino de
Alisbão.
Eu não queria me apartar de você. Antes fosse a
Tuninha. NARCISA — Ora. a Tuninha é uma cachorra pulguenta. Antes me carregue,
que no Reino de Alisbão vou comer tudo quanto é de doce e mel!
LEOPOLDINO — E não vai sentir a falta de seu papai?
NARCISA — E lá não é um Reino Encantado? Não tem
uma carruagem como a da Maria Borralheira? Eu mando a carruagem buscar o meu
paizinho. E aí o meu paizinho se vira no Prinspo Formoso e aí - com o vestido
da côr do céu com as estrelas — eu cacaso com ele, que é você, paizinho, e tudo
se desencanta.
LEOPOLDINO ABRAÇA A FILHA E
DEPOIS VOLTA AO PROSCÊNIO.
ALDORA — Se eram muito apegados um com o outro?
Bom, viviam num chamego... mas não penso que fosse do coração. Pra mim, doutor,
Leopoldino tava forçando a barra. Em que sentido? Não, não naquele, mas penso que
noutro. Por exemplo? Não sei meu coração só me diz. Ele enchia as oiças dela de
estórias bestas. LEOPOLDINO — Tu tem coragem de pensar essas coisas? Todo pai
acarinha os filhos, doutor. Aldora Estrela também acarinha o Alaô. E eu nunca
ia pensar mal. É mãe. No alto mar? O que eu fazia com ela no alto mar? Nhor
não, qual o quê. Eu brincava com ela era na rede, no copiar da casa, ali, no
aberto para o vento e os coqueiros. No meio de todo o mundo. Para o vento do
mar e os coqueiros.
ALDORA — É tu mesmo que tá se denunciando. Eu nem
nunca pensei naquilo. Falei de estórias de encantos. Agora me diga: por que
Narcisa choramingava? E que ela não queria seguir no barco, sou capaz de
jurar.
LEOPOLDINO — Se ela choramingava devia de ser por
outros motivos. Penso que era por outros motivos. A vida, doutor, tá difícil,
anda
difícil, muito
arrochada, muito cercante. Cercante como? Pela fome? Não, doutor, prefiro não
tocar nessa palavra. Releve-me. Tá bom, eu aguardo, mas de fé no que lhe digo.
Então, para ninar a menina, eu contava estórias para ela. Estórias de trancoso,
de encantos. Aldora Estrela não sabe distrair uma criança.
ALDORA — Graças a
Deus. Tenho a consciência tranqüila. Tranqüila. Sou uma mulher honesta, neste
ponto, tranqüila.
LEOPOLDINO — Pois
eu, doutor, me gabo disso. Sei espantar a tristeza dos olhinhos de um menino.
LEOPOLDINO VOLTA
AO PLANO DO LENÇOL. NARCISA SURGE CORRENDO.
LEOPOLDINO — Vem
cá, Narcisa, vem cá.
NARCISA — Tou
brincando, paizinho, tou brincando.
LEOPOLDINO — Não
vem me abraçar?
NARCISA
ABRAÇA LEOPOLDINO.
LEOPOLDINO — Sabe,
filhinha, Janaína é muito boa.
NARCISA — Eu sei.
Ela é a Rainha do Mar.
LEOPOLDINOI — E
tua madrinha.
NARCISA — É. Ela
me deu este anelzinho. Mas eu não conheço madrinha. Por que paizinho não me
leva no palácio dela?
LEOPOLDINO — Tu
gostava de ir?
NARCISA — Gostava.
LEOPOLDINO — Fica
no fundo do mar.
NARCISA — Então
não pode. A gente se afoga.
LEOPOLDINO — Afoga
não, que a Rainha separa as águas
NARCISA — Ah. mas
eu ia ter muito medo.
LEOPOLDINO —
Bobagem. E lá tem de um tudo. Uma cozinha como nuncas se viu maior.
NARCISA — Paizinho
já foi lá?
LEOPOLDINO —
NARCISA — Fazendo
o quê?
LEOPOLDINO —
Comendo e brincando. Os machinhos galopavam nos cavalos marinhos — que eram
grandes cavalos marinhos — e as meninas — todas do teu tamanho — brincavam com
enfeites de coral e faziam vestidinhos de algas.
NARCISA — E tinham
bonecas?
LEOPOLDINO — Pois
então? E cada uma é mais galante.
NARCISA — A Suzi,
a Soninho, a Risinho, a Dadi?
LEOPOLDINO — Toda versidade de bonecas. E tudo que
é de peixe por ali, mansinhos, andando pelo palácio. Tua madrinha é muito boa.
E de uma lindeza que é ver uma santa.
NARCISA — Ela me deu este anelzinho de pedra. Mas
por que deixou ele na praia? Podia ter sumido na areia.
LEOPOLDINO — Sumia não, que ela tem poderes. Altos
poderes. Eu tava dormindo, ela não queria me acordar. Vi tudo
NARCISA — Mas eu tenho minha mãe que se chama
Aldora Estrela dos Santos, e me quer muito bem
LEOPOLDINO — E eu?
NARCISA — Ah, meu paizinho me quer muito mais.
(Beija-o).
NARCISA SAI CORRENDO E LEOPOLDINO VOLTA AO
PROSCÊNIO.
ALDORA — Eu só sei doutor, é que Narcisa, dantes,
era muito apegada a mim. Mas o homem foi se valendo de quanta coisa podia para
apartar ela da mãe. Tenho certeza. (Finge o choro).
LEOPOLDINO — Aldora Estrela, tu me levantas este
falso? Eu nunca pensei em tirar teus filhos de teu colo. Acontece que eu também
sou um pai amoroso e não gostava de ver meus filhinhos sofrendo necessidades.
ALDORA — Ah, é? E a peixaria que tu passou a
trazer? E o baita daquele mero? Antônio Leopoldino dos Santos deu de prosperar
num relampo. Uma coisa assim, da noite para o dia. O doutor está me entendendo?
Qual o quê! Ninguém mais chorava por não ter comida não. Aliás, nunca deixei
ninguém chorar por isso. Graças a Deus sou disposta. Trabalho me viro. Não
preciso torar o dedo para ganhar um peixe. Fosse eu viver de brisas e de sonhos
e es tava morta.
LEOPOLDINO ENCAMINHA-SE PARA O
OUTRO PLANO. RETIRA DO BOLSO UM CATAVENTG DE PAPEL E SAI A CORRER. SURGE ENTÃO
NARCISA, QUE LHE ARREBATA O CATAVENTO. CORREM,
BRINCAM, SORRIEM.
LEOPOLDINO (agarrando Narcisa nos braços) - Upa!
Sabe que Mãe Janaína tem sido a nossa protetora? Acho, é porque ela gosta muito
de você, Narcisa. Sabia que o teu papai jogava as linhas no mar — dia e noite,
dia e noite na espera — e o saveiro voltava vazio? E o anzol limpo, aquele
gancho brilhante, e na ponta só um pedaço de isca desbotada. Eu sentia uma
fisgada na boca do estômago. Então, eu prometi.
NARCISA SE DESPRENDE DE LEOPOLDINO E SAI A CORRER.
LEOPOLDINO — Tão espertinha. Tão arisca...
FICA NO MESMO PLANO A
CONTEMPLAR AS EVOLUÇÕES DE NARCISA COM O CATAVENTO DE PAPEL.
ALDORA — A minha Narcisa que eu tanto amava. Taí
seu Arioso, o meu compadre, que não me deixa mentir. Ouviu ele prometer a
Janaína — caso fosse feliz na pesca — que dava a ela, Janaína, um de seus
filhos. Se foi em casa? Foi, compadre Arioso? Se o compadre tava em casa
naquela hora? Tava. Fazendo o quê? Fale, compadre.
ARIOSO — Bom, disto eu não me alembro. Quero dizer,
do lugar. Penso que não foi lá.
ALDORA — E. As vezes a gente não guarda o lugar.
Sabe que ouviu. Se lembra. Mas não sabe onde. Me parece que ele estava
interessado em me arrastar para as angústias. Por quê? Porque não sei. Ah, eu
sei que vosmecê tá perguntando é a ele. Me desculpe.
ARIOSO — O nome que eu ouvi? Se eu ouvi ele dizer o
nome de Narcisa? Não, da menina não. Falava de uma tal de Rosa Flor.
ALDORA (numa risadinha) — Para disfarçar, doutor
para disfarçar.
ARIOSO — Sim, penso que pra disfarçar, pois de
menina fêmea ele só tinha a Narcisa.
ALDORA — Eu? Onde eu estava? Eu tava no quarto e
ele, Leopoldino, no copiar, na rede. Se dava pra escutar? Dava, que as paredes
são tecidas de palha de coqueiro. O vento passa por elas.
NO OUTRO PLANO
NARCISA — Sabe, paizinho, se não fosse seu
Arioso...
LEOPOLDINO — Por quê?
NARCISA — Por que paizinho não pesca de noite, como
seu Arioso? LEOPOLDINO — Porque de noite eu quero estar com vocês, nesta nossa
casa. Não é bom?
NARCISA — E. Seu Arioso também é muito bom. Ele
brinca com a gente. Brinca até com mãe Aldora Estreia. Alegre. Dá até dinheiro.
LEOPOLDINO — E. Compadre Arioso é muito bom. Mas o dinheiro que ele dá é para
você, o Laô e o Lael, mode comprar bolacha, não
é?
NARCISA — Dá pra gente e dá para a mãe também, que
eu já ví. Muito bondoso. Chega até a dormir na nossa casa.
LEOPOLDINO – De dia?
NARCISA — E então? Ele não pesca é de noite?
LEOPOLDINO — Todo dia?
NARCISA — Não. Algumas vezes, pois a gente quer
sempre brincar com ele. Ele faz macaquice. E muito engraçado, sabia?
LEOPOLDINO — É, Narcisa, carreira de pobre é assim.
E agora eu sei com toda a certeza — de que eu só disponho de você. De mais
ninguém. Só você é minha.
NARCISA — Pai tá dizendo o quê?
LEOPOLDINO — Nada não. Bobagem.
NARCISA SAI CORRENDO E
LEOPOLDINO VOLTA AO PROSCÊNIO
LEOPOLDINO — Agora, doutor, eu pergunto; e onde
estava o compadre Arioso quando ouviu esse voto? Faz tempo que eu não encontro
o compadre na minha casa. Nem aos domingos ele tem aparecido, para um joguinho
de truco. Agora Aldora Estrela diz que Arioso ouviu também a promessa que eu
fiz a Janaína. Os dois ouviram. Então torno a perguntar: aonde estava, naquela
hora, o compadre Arioso?
ALDORA — Penso que quem pergunta são os
excelentíssimos e não o assassino. Tá certo, doutor, tá certo, eu me calo.
ARIOSO — Eu? Aonde eu estava? Ora, na beira do
cais. Eu, ele e a mulher dele, comadre Aldora Estrela.
ALDORA — Verdade! Naquela hora eu não estava na
camarinha e nem Leopoldino na rede do copiar, com Narcisa. Nós três, eu, ele e
compadre Arioso, nós três estávamos na beira do mar. Lembro- -me como se fosse
hoje, Leopoldino espichou a vista e o suspiro e falou: “se eu conseguir pescar
um peixe, bem grande, que dê para saldar as minhas dividas, e ainda sobre, eu
dou um de meus filhos para vós, Senhora Janaína, Rainha dos Mares! “Aí eu
disse: “deixa de loucura homem! Onde já se viu?” Aí ele disse: “que é a vida?
“E ele mesmo — sem olhar para ninguém — respondeu: “a vida é u’a mão de
estrelas jogadas no azul”. Anoitecia. Aí ele tomou o barco e saiu para a
pesca. Foi pescar — pela primeira vez — de noite.
LEOPOLDINO AFASTA-SE PARA O
OUTRO PLANO.
LEOPOLDINO (gritando) — Narcisa, vem cá...
APARECE NARCISA, MEIO
DESCONFIADA.
LEOPOLDINO — Tu não me ouviu te chamar?
NARCISA — Escutei não.
LEOPOLDINO — Que que tu tava fazendo?
NARCISA
— Tava brincando com a minha bonequinha.
LEOPOLDINO — E quem mais?
NARCISA –Eu, Laô e Lael. A gente fazia
comidinhas de folha.
LEOPOLDINO - Me abraça. Eu queria te ver.
NARCISA
(abraçando
o pai) – Pai prometeu me levar, de
presente, para Janaína? Mãe falou.
LEOPOLDINO — Ela falou? Como que ela falou?
NARCISA – Falou que presente a gente manda, mas
é espelho, pente, sabonete, colar e flor. Sendo tudo branco.
LEOPOLDINO
— Então, Narcisa, era no alto mar. Aí eu joguei a linha e num segundo veio
aquela ferroada violenta, aquele puxão. Larguei mais linha, linha, para deixar
o bicho correr, correr até cansar. O barco estremecia como se fosse se
arrebentar. Era puxado pelo peixe. Depois as rebanadas foram se arrefecendo, o
peixe estando cansado, e aí chegou a minha vez. Fui puxando a linha, puxando...
Aí, sabe o que eu puxei?
NARCISA
— Um mero!
LEOPOLDINO
— Um bruto! 300 quilos! Joguei — nem sei onde arranjei tanta força — joguei o
monstro no barco e foi a conta de chegar, talhar e retalhar as postas. Vendi
tudo! Paguei o que devia e ainda sobrou dinheiro!
NARCISA
— Aí pai comprou a boneca Mãezinha para mim!
LEOPOLDINO
— Justo foi! Narcisa, minha querida Narcisa, e desna aquele dia — o dia — nunca
mais peixe deixou de aferroar o meu anzol: enchova, espadarte, albacora — as
albacoras — e até um marlim – lá das profundezas. — veio correr na linha. Que
foi is- . to? A causa disto? Deste milagre? Até o pampo — com os poderes de
Janaína — este teu pai Antônio Leopoldino dos Santos tem pescado e presenteado
os amigos. A macia carne do pampo, galinha do mar! Não parece encantamento?
Está cochilando? Não escuta o que teu pai te conta? Narcisa!
NARCISA DORME NO CHÃO, MUITO
BRANCA E MUITO LOURA,
LEOPOLDINO BEBE NO GARGALO DE
UMA GARRAFA.
VOLTA AO PROSCÊNIO.
ALDORA: Agora eu apelo para o coração de vosmercês
todos, e
pergunto: por que
foi ele carregar logo a minha Narcisa? Uma me nina disposta que fazia gosto. Me
ajudava na casa, varria, lavava... LEOPOLDINO — Seu Delegado me entenda, eu não
raptei Narcisa. Eu não fui a causa de sua perdição. Mesmo, penso antes em salvação
que em perdição.
ALDORA — Vosmercês
tão entendendo o que ele vai dizer? Vai dizer que Narcisa está viva e feliz.
Narcisa apartada de mim. Mas era a minha filhinha, dei a ela o meu leite e é isto o
que eu quero que vosmercês me entendam. Sim, seu Delegado, releve o meu
desadoro, a minha pouca fé, mas não sei se a minha Narcisa se salvou.
LEOPOLDINO
VOLTA PARA O PLANO ONDE DORME NARCISA. ALDORA DESCANSA A CABEÇA NO OMBRO DE
ARIOSO. MÚSICA.
LEOPOLDINO
(cantando) — “Partiu então a Princesa/ chorando a amarga sorte/ chegou à beira
da praia/ as ondas batiam forte nisto surgiu Janaína/ para livrá-la da morte.
“Minha filha não lamente/ os golpes de sua sina/
quem se banha em minhas águas/ não sofre morte ferina/ Susana está no poder/ da
Rainha Janaína.
“Então surgiu uma
moça/ dentro do mar se banhando/ disse a Sereia: Susana/ teu pai está te
chamando/ Leva Sargento a menina/ que o Rei está esperando”.
ARIOSO
AFASTA-SE DE ALDORA. SENTA-SE E ACENDE UM
CIGARRO.
ARIOSO (fumando) —
Vossas mercês consentem que eu solte umas baforadas? Não foi por treição que me
ví metido nesta estória. Não sou de acusar ninguém.
ALDORA — Tudo foi
feito assim, nas indolências, nos nevoeiros.
LEOPOLDINO
VOLTA A BEBER NO GARGALO DA GARRAFA.
NARCISA
LEVANTA-SE E APANHA UMA PEQUENA TROUXA.
NARCISA — Canta
mais, paizinho. Seu cantar é bonito.
LEOPOLDINO — Tu
quer?
NARCISA — Isto? Eu
não. Nem nunca tomei isto.
LEOPOLDINO —
Experimenta. E bom. Esquenta o frio.
NARCISA — Mãe diz
que isto queima a goela da gente. Arde.
LEOPOLDINO — E
como não queima a minha? Olha. (Toma novo gole e estala a língua). E gostosa.
Sabe que esta tem o nome de Branquinha? Foi para satisfazer tua madrinha, pois
ela gosta de tudo muito branco, com muito asseio. Tu hoje vai conhecer ela.
Trouxe tuas coisas
todas?
NARCISA — Tá tudo nesta trouxa.
LEOPOLDINO — Tua mãe não viu? Eu te pedi cuidado,
que tua mãe é implicante e capaz de não deixar tu bolir no baú dos guardados.
NARCiSA — Fui devagarzinho. Até as fulores brancas
eu trouxe e mais a grinalda e o véu de minha Primeira Comunhão.
LEOPOLDINO — Eu sabia que tu é uma menina muito
esperta. “Então tire a rosa e leve ela”, disse a voz quase a gemer.
NARCISA — Meu pai repete o Prinspo Formoso. Antes
me conta a do Sargento Verde.
ENTRA O REI
REI — Oh, joguei minha tarrafa nágua, joguei e
tornei a jogar ‘— ontem como hoje — e nenhum peixe me veio. Estou desolado pensando
na família que não tem nada para comer.
LEOPOLDINO — “Rei Roberto, se me promete trazer/ em
chegando a seu palácio/ a primeira coisa que lhe aparecer...”
NARCISA — Como na estória do Prinspo Formoso?
LEOPOLDINO — Fale baixo, te peço. E. O pedido é
sempre o mesmo.
REI — Prometo.
LEOPOLDINO (baixo) — E que ele tava certo que,
chegando à praia, a primeira coisa que ele ia encontrar era a cachorrinha
Piaba.
O REI – ALEGRE – EXIBE UMA
TARRAFA CHEIA DE PEIXES PRATEADOS. SURGE ROSA FLOR, AGORA CHAMADA MAROCAS
REI (com as mãos nos olhos) — Cegai-me, ó céus,
cegai-me!
ROSA FLOR — Que tendes, senhor meu pai?
REI — Ao invés de tí, Marocas, preferia antes ter
encontrado a cachorrinha Piaba.
ROSA FLOR — Preferia uma cachorra pulguenta à vossa
filhinha?
REI — E que, para encher a canoa de peixe, prometi
a Janaína a primeira coisa que viesse me encontrar. E foste tu, minha Marocas.
ROSA FLOR — Senhor meu pai, não choreis por tão
pouco. Pois se Janaína me chama ao palácio dela, no fundo do mar, é para eu ser
feliz. E mais feliz vou ficar porque sei que na vossa tarrafa nunca mais
faltará peixe.
O REI ABRAÇA ROSA FLOR,
DESAPARECEM. NARCISA SENTA-SE NO CHÃO E BRINCA COM UMA BONECA. LEOPOLDINO VEM
JUNTAR-SE AO GRUPO DO PROSCÊNIO.
ALDORA – Foi tudo assim, com muito quebranto.
LEOPOLDINO — Não, não foi com outra intenção senão
a de levar a menina para um passeio. Naquele dia ela acordou cedinho, mais cedo
que todo o mundo. Não sei o que deu nela — se já tava tocada pelos altos
poderes — o certo é que ela me apareceu quando eu me preparava para sair para a
pesca. Ai eu disse: “tu já tá acordada? “E ela respondeu: “quero que você me
leve no seu barco, para a pesca”. Então eu disse: “filhinha, no saveiro a vida
é sem distração, só muito vento e sol e o sol queima demais”. Aí ela chorou dizendo:
“eu quero, eu quero. “Era um chorar chega o coração me apertou, e pensei: “meu
Santo, será que Janaína quer ver a afilhada dela passeando no seu mar?” Aí o
jeito foi eu consentir e dizer: “pois vem”.
ALDORA — Doutor, isto é uma conversa mal
contada. Pra mim ele embebedou a menina e carregou ela, dormindo. Eu tenho o
sono maneiro e não ouvi nada. Choro nenhum. Foi tudo feito assim, com muita
ilusão.
LEOPOLDINO VOLTA A
ENCONTRAR-SE COM NARCISA.
LEOPOLDINO — Que que tu achas, Narcisa?
NARCISA — Da gente passear? Ah, eu acho bonito!-
LEOPOLDINO — Sabe, filhinha, que eu ando apanhando
muito peixe, não sabe?
NARCISA — Tou cansada de saber. Sei que vosmecê
pegou o maior marlim do mundo!
LEOPOLDINO — Não era um marlim, era um mero. um
mero de 300 quilos! Esbanjei dinheiro!
NARCISA — Pai se parece com o Rei do Prinspo
Formoso, pai da Rosa Flor, o Rei do Sargento Verde, pai da Princesa Susana, o
Rei Roberto, pai de Maroquinha. Se parece com todos os reis.
LEOPOLDINO BEBE.
NARCISA — Por que meu pai tá entrando na azulzinha?
LEOPOLDINO — E tu, não vai te aprontar?
NARCISA — Janaína vem agora?
LEOPOLDINO — Se sabe quando? Qualquer instante pode
aparecer. Se ela é encantada!
NARCISA — Paizinho de coroa era ver um rei.
LEOPOLDINO — E tu, filhinha, é ver Rosa Flor.
VOLTA LEOPOLDINO PARA O
PROSCÊNIO.
ALDORA — Eu sei que ele só carregou Narcisa pra me
machucar. Como se ela não fosse filha dele, também. Um desalmado!
LEOPOLDINO — Não, doutor, agora eu lhe confesso.
Tou pronto a confessar tudo. Tudinho. Eu não levei a menina com aquela intenção.
ALDORA — Tá vendo, compadre Arioso? E que outra
intenção era a dele, senão pirraçar a gente, por pura vingança?
LEOPOLDINO — Isto é ela quem diz. Me diga, me
digam, quem pode adivinhar o que se passa na cabeça de cada vivente?
ALDORA — Mas tu falou alto, prometeu! A coisa não
se passou só no silêncio do teu juízo. Tu falou alto, pra todo mundo escutar.
Prometeu:
LEOPOLDINO — Podia até prometer — pois posso
prometer o que é meu — mas não havia de ser em voz alta, para o teu entendimento
e de compadre Arioso.
ALDORA — Esse voto eu ouvi. E tanto é que, depois
dele, tu deu de trazer do mar tudo que é versidade. E me disse, até, ameaçador;
“te apuluma Aldora Estreia, que agora chegou o tempo de jogar as linhas e puxar
o preço. “Não, não foi peixe. Ele disse — ouvi bem — “puxar o preço”. E mais:
“acabou-se a miséria. Tu agora vai ser uma mulher honrada”. Como se eu fosse o
quê?
LEOPOLDINO — Não havia de ser para o teu
entendimento e de compadre Arioso.
ALDORA — Por que — te pergunto — já que tu queria
dispor de um inocente, por que não ofereceu Lael que é aleijado? Sem remissão?
Como? Se faço diferença? Se os dois não são meus filhos? São, doutor. Mas entre
uma menina se pondo mocinha e sadia, e uma criatura sem remissão, como é o meu
Lael, antes o pobrezinho. Ou será que Janaína não gosta de refugo? Ela não é a
Mãe de todos? A bondade dela levaria Lael, que ia viver, então, muito feliz, no
seu reino. Que que tu diz, Arioso? Tu me acha uma mãe de preferências? Fala.
ARIOSO — Posso falar, doutor? Tá certo. Pois é.
Olhe, Aldora Estreia, eu não acho nada.
ALDORA — E Nessas horas ninguém acha nada. Ninguém
diz o que está lá dentro. Mas eu digo. Eu acho.
LEOPOLDINO VOLTA AO OUTRO PLANO. SENTA-SE. NARCISA
SEGURA-LHE AS ORELHAS.
NARCISA — Seu esquecido, esquecidão...
LEOPOLDINO — Que foi?
NARCISA — Se lembra do que me perguntou ainda
agora? Se lembra não?
LEOPOLDINO — Ah, é! Narcisa, menina vadia, cadê a
tua roupa?
NARCISA DESFAZ A TROUXA E VAI
VESTIR O
SEU VESTIDO BRANCO.
NARCISA — Tá aqui.
LEOPOLDINO — Não. Deixe que eu te apreparo.
LEOPOLDINO VAI DESPINDO A
FILHA, PARA VESTIR NELA O
VESTIDO DA PRIMEIRA COMUNHÃO.
LEOPOLDINO — Credo! Tá de peitinho! Despontando!
tenha vergonha não. E uma mocinha. (Abraçando-a). Você gostado seu paizinho?
Muito, muito?
NARCISA — Chega, paizinho, chega. Vosmecê tá me
apertando. Minha mãe disse que é para eu não deixar ninguém pegar aí, que faz
mal.
LEOPOLDINO — Eu sei. Mas é só os meninos machos.
Teu paizinho pode. Vem cá...
NARCISA — Não. Vosmecê tá diferente. Vosmecê tá com
bafo de cachaça. Me abrace não, que minha mãe não aprova. Não, me deixe. Me
deixa ou eu grito pela minha madrinha. Pela minha madrinha!
LEOPOLDINO CAI AJOELHADO, DE
MÃOS SUPLICANTES.
LEOPOLDINO — Soberana Rainha das Águas, minha Mãe
Janaína! Arastai de mim as malinidades do Demônio! Pronto. Agora estou limpo de
coração. Vem. Deixa em pôr o véu.
NARCISA APROXIMA-SE DE
LEOPOLDINO E ESTE LHE
PÕE NA CABECA O VEU E
GRINALDA.
LEOPOLDINO — Galante como uma santa! Cadê o buquê
de jasmim caiano?
NARCISA APANHA O BUQUÊ DE
JASMINS.
LEOPOLDINO — Galante, galante! Agora a fita azul,
que é da cõr do mar de Janaína.
LEOPOLDINO PÕE UMA FITA AZUL
NA CINTURA DE NARCISA.
LEOPOLDINO — E então? Tu é minha, e eu te consagro
à Rainha do Mar. Os braços abertos de tanta alegria!
NARCISA, DE BRAÇOS ABERTOS,
FICA PARADA
LEOPOLDINO — Doutor, me aceite nesta opinião. Me
diga se estou
certo. Eu podia prometer o que não é meu? Meu mesmo
é minha Narcisa. Laô Lael, ser não. Então a menina chorava. Aí me veio um
nervoso... Por que ela cismava em querer dar um passeio no barco? Por que
acordou de madrugadinha para dizer que queria conhecer o mar sem beira? A
gente sente que está sendo determinado. E nada pode fazer.
ALDORA — E para um passeio, carecia de arrumar uma
trouxa onde levava até o vestido da Primeira Comunhão? Seu Delegado, se o caso
não foi um voto, então como se explica tudo isso? Seu Delegado aceita um pampo?
Aquele peixe raramente que a gente pesca para presentear os amigos? E que
Leopoldino doravante vem trazendo dúzias de pampos para casa. Aceita? Desculpe,
doutor, se estou me adiantando, se estou sendo saliente...
LEOPOLDINO VAI PARA JUNTO DE
NARCISA.
NARCISA — Paizinho, estamos rodeados de azul e
vento. Não vejo terra. Tenho medo.
LEOPOLDINO — Tenha medo não, Narcisa. Tenha não.
Para que terra? Terra é para os homens, e para a fome dos homens. Estamos no
Reino de lemanjá. Não é bom este cheiro do mar alto? Este remoer de ondas?
NARCISA — E. Mas a água é zangada, é forte e fria.
E lá dentro, os peixes ferozes. Os bandos de peixes ferozes. Eu tenho medo.
LEOPOLDINO — Bobagem, filhinha. A Rainha chegando,
tudo serena. Os peixes ficam mansinhos. A água parada, morna. Aí o mar se abre
e aparece a carruagem de Janaína. (Ajoelhando-se.) De nossa boa, santa e
poderosa Mãe Janaína.
LEOPOLDINO VOLTA AO PROSCÊNIO.
ENQUANTO. ESTE SE RETIRA, NARCISA CORRE AO REDOR DO TOLDO E GRITA:
NARCISA — Paizinho deixa eu te dizer uma coisa? Eu
fugi para te acompanhar. (Mais alto:) Para te acompanhar.
ARIOSO — Não. Prá falar a verdade eu não vi nada. O
homem dormia, só. O saveiro na deriva.
ALDORA (suspirando) — Que que se há de fazer quando
dois se combinam? Foi na confiança que pedi a compadre Arioso que saísse no
saveiro dele à procura de Leopoldino. Ele diz que não viu nada. Mas, daqui de
longe, vi tudo, ou melhor, senti tudo.
NARCISA (gritando, alegre) — Paizinho deixa eu te
dizer uma coisa? Eu fugi para te acompanhar. Mãe não aprova. Mãe desconfiava.
ALDORA — Não aprovava essas conversas de Reis e
Princesas. Depois, doutor, o que se pode esperar de um pai capaz de trocar a
filha por um pampo?
ARIOSO — Um pampo não, um mero.
ALDORA — Fosse o diabo!
LEOPOLDINO — Saravá, meu pai! Doutor, esta mulher
desafia os Altos Poderes!
ALDORA — Que que se pode esperar de um homem que
tenciona, num barco, vestir a filha de branco? Com que intenção?
ARIOSO — Não, seu Delegado, nenhuma mancha. Nenhum
sinal de luta, de violência. Tudo na mais santa paz. O compadre dormia.
Cachaça? Bom, capaz que ele andou tomando umas e outras. Pesar de que, no mar,
a gente costuma provar menos que na terra.
ALDORA — O que me invoca não é a bebedeira. Antes.
Era a atenção dele para aquele aprontamento. Aprontamento como? O vestido, o
véu, a grinalda. Uma criança ainda. Noiva de quem?
LEOPOLDINO — O doutor já relatou, no papel, que
esta mulher anda nas trevas das obsessões? Não? Relatou não? Será que as excelências
vão pensar o quê, de mim? Um aleive, um aleive! Agora, fosse eu falar das ações
dela. Esta Aldora Estrela, minha mulher, pegada e amolegada pelo mundo.
ALDORA — Fale. Desabafe os seus ciúmes. Mas, fosse
verdade, as ações eram só minhas. Não cortei, não atrapalhei o destino de uma
criança. Lael? Mas é diferente, doutor. O aleijadinho é traste sem futuro. Não
é, desamor de mãe. E quando pensei em Lael — acredite dos meus olhos brotaram
pedras. Eu sei, doutor, eu sei que vosmecê está se cansando, que vosmecê quer
fatos e não fantasias, como vosmecê bem diz. Fale, meu compadre Arioso.
ARIOSO — Falar?
LEOPOLDINO
VOLTA AO PLANO DE NARCISA.
NARCISA — Meu pai
está que parece longe... Se esqueceu até de jogar as linhas. Ei, Leopoldino,
acorde...
LEOPOLDINO — Não
aprova o quê? De que ela desconfia? Ela pensa que eu sou o quê?
NARCISA — Se
embrabeça não. Venha cá, se zangue comigo não.
Eu não arrumei
tudo e não vim? Não esqueci de nada. Pergunte: “Narcisa, você esqueceu de
escovar os dentes?” Ande, pergunte.
LEOPOLDINO —
Narcisa, você esqueceu de escovar os dentes?
NARCISA — Esqueci
não, pai. Tá aqui a minha escova de dente e a minha branca pastinha fílipes.
VOLTA
LEOPOLDINO.
ARIOSO — Então a
mulher me acordou e disse: “levanta compadre
Arioso”. Que mulher? Aldora Estreia.
ALDORA — Na minha casa? Não, nhor não! Compadre
Arioso drome é na casa dele. Credo! Deus me livre! É que eu acordei e não encontrei nem Leopoldino
nem a menina. Depois vi o bauzinho aberto, sem o vestidinho branco e o véu. Ai
me lembrei do voto do homem. Me lembrei das perturbações dele. De quando vem nele
aquelas vágados.
LEOPOLDINO — Eu, perturbado? Doutor, esta mulher
não está no juízo dela.
ALDORA — Me veio um sobrosso... O dia todo com
aquele nó na garganta. Atravessado. Deu meio dia. Deu de tarde, Anoitecia.
Então passou por aqui compadre Arioso Marinho, que faz a pesca de noite. Mas eu
estava tão desadorada que compadre Arioso ficou pra me fazer companhia. O medo
dele era que eu, naquela aflição, fizesse uma besteira.
ARIOSO — Confirmo, sim. Por que não saí no saveiro
para procurar o barco de Leopoldino? Mas naquela noite, as nuvens se misturando
com o mar, adiantava? Melhor era esperar o quebrar da barra e então sair para
procurar o homem.
LEOPOLDINO — Aí está, doutor. Lá, eu larçando o
anzol. Lá, a lancinante ferroada. E Aldora Estrela se consolando na companhia
de Arioso. E quem me valia senão a fé? A enorme fé que tenho nos poderes da
Senhora do Mar. Por que eu me lancinava? Eu, me sentindo anzol e peixe — o
sangue a pingar no anzoi — me sentindo a galinha do mar. Por que o sacrifício
de ser fisgado? Para ver e viver isto?
LEOPOLDINO VOLTA A
ENCONTRAR-SE COM NARCISA.
NARCISA — Paizinho, me conte uma estória
LEOPOLDINO — Onde nós estamos? na rede ou no barco?
NARCISA — Na rede. No copiar. O vento batendo nas
palmas dos coqueiros. Conte, conte mais.
LEOPOLDINO — Eu só sei contar estórias do agrado de
nossa Mãe. Mas você já está cansada de ouvir.
NARCISA — Não, não estou. Conte.
ENTRA O REI, DE MAOS NO ROSTO.
LEOPOLDINO — “Meu bom Rei não se lamente/ dos
golpes de sua sina/ quem se banha em minhas águas/ não sofre morte malina/
Maroca está no poder/ da Rainha Janaína”.
ENTRA ROSA FLOR.
ROSA FLOR — Benção meu pai.
REI — Deus te abençoe.
ROSA FLOR — Meu pai, beije sua filha Marocas. E
toda semana venha aqui me ver. Mas me leve pra terra não, que lá é só tristeza.
Aqui. no Reino de Janaína, eu tenho toda felicidade.
REI E ROSA FLOR DESAPARECEM,
LEOPOLDINO DEIXA
NARCISA E VOLTA AO PROSCÊNIO.
ALDORA — Só me queixo das estórias de trancoso, que
ele contava, contava. Encasquetando a menina, carregando a minha filha para
outros mundos, os mundos dos ventos, das águas, dos nevoeiros.
LEOPOLDINO — Ah, excelências, ela fala desses
mundos e me vem até água na boca. Pudesse eu, um dia, encontrar essas paragens
so nhadas. Não é que eu refugue o trabalho. O melhor era voltar. Voltar sabendo
não encontrar ninguém — nem a cachorra Tuninha — mas as linhas, excelências,
estavam lançadas.
LEOPOLDINO DIRIGE-SE AO PLANO
DE NARCISA.
LEOPOLDINO — Narcisa! Narcisa! Estou perdido!
NARCISA — Pai não está me vendo?
LEOPOLDINO — O nevoeiro, Narcisa, o nevoeiro. Ah,
aqui está ela! Parece uma noivinha! Que anelzinho é este, hem? Que anelzinho é
este?
NARCISA (chorando) — Foi minha madrinha Janaína que
me deu. Mas eu vou arrancar de meu dedo e jogar ele pra ela.
LEOPOLDINO — Filhinha, que má criação...
NARCISA — Não quero, não quero ir. Meu pai, vamos
voltar, voltar!
LEOPOLDINO
TENTA SEGURAR NARCISA, QUE, DESCONFIADA, SAI
A
CORRER AO REDOR DELE. LEOPOLDINO SENTA-SE.
ARIOSO — De real,
o que eu encontrei? Não já disse? Peguei o meu saveiro e saí na direção do alto
mar. Andei que andei, E só no pender do sol foi que divisei, à deriva, o barco
de Antônio Leopoldino. Encostei a embarcação na outra e vi que, dentro dela,
ele estava a dormir. Sim, o compadre. Bati com o remo, mas o homem não
acordava. Então amarrei o meu saveiro no dele e saltei para dentro. Aí consegui
despertar o compadre e perguntei pela menina. “Que menina?” - me respondeu, se
fazendo desentendido. Eu disse: “a Narcisa”. E ele: “a Narcisa não está em
casa?” Eu
Disse: “não, tu trouxe ela neste teu barco”. Ele aí
gritou: “Deus do céu, é mesmo! A menina veio comigo! E eu dormi, compadre. Eu
senti uma modorra, um peso de chumbo nos olhos. Vai, a menina, muito malina,
caiu!” E aí ele se pôs a gritar pela filha, e desmaiou. Confirmo. É a pura
verdade. Se não vi mancha? Não, mancha nenhuma. Também não, nem fiapo de pano.
Nada quebrado. Sinal nenhum de luta.
ALDORA — Não foi ela que pulou. Não foi malinidade
da menina.
Ah, vosmercês acham que são suposições? Pois eu
digo e afirmo: ele matou Narcisa. Antônio Leopoldino dos Santos matou Narcisa.
Ele atirou a menina nas correntezas do mar alto. E ela era minha também,
doutor, não era só dele, me entenda.
NARCISA AO LADO DO TOLDO.
NARCISA (gritando) — Meu pai!
LEOPOLDINO VAI JUNTAR-SE A NARCISA.
LEOPOLDINO — Narcisa!
NARCISA — Jura que não vai me afogar?
LEOPOLDINO — Juro.
NARCISA — Tou com medo dos seus olhos.
LEOPOLDINO (sorrindo) — Filhinha, confie no teu
paizinho que te quer bem, que tem o coração arroxeado de tanto amor. (Abraçando-a.)
Você mesma chorou para me acompanhar, não foi? Agora que nossa mãe ficou
sabendo de sua vinda, que enfeitou o palácio para esperar você — ela e as
sereiazinhas de seu tamanho, que vão brincar de comidinha — agora, Narcisa,
você quer refugar? Então você prefere voltar?
NARCISA — E eu indo, paizinho, vai ter peixe pro
resto da vida? como o Rei?
LEOPOLDINO AJOELHA-SE AO LADO
DE NARCISA
LEOPOLDINO — Como o Rei. Pro resto da vida. (Tomado
de súbito pavor). Não! Não! Narcisa, não me fale mais de peixe, que chega me
arrepuna todo, me baldeia a alma. Não, não quero mais peixe.
NARCISA — E se madrinha arreclamar do trato?
LEOPOLDINO — Peço outra penitência, outra
obrigação. Lanço pra ela o teu véu de grinalda. Eu te quero, filhinha, só para
mim. Eu não vou jogar você para ela. Nunca! (Está trêmulo e ofegante). Me
abrace, me abrace.
NARCISA AGARRA-SE AO PAI, E
ESTE, AMEDRONTADO, OLHA PARA OS LADOS. DE REPENTE LANÇA UM GRITO E LEVANTA-SE
COM A MENINA NOS BRAÇOS.
LEOPOLDINO — Narcisa! Olha, acolá. Está vendo?
NARCISA (tapando os olhos com as mãos) — Não, não!
Não estou vendo nada.
LEOPOLDINO — Ali, filhinha, veja!
NARCISA — Não, não! Só vejo frio e azul.
,
LEOPOLDINO — A nossa Rainha. Narcisa! E ela! Tá
vendo o brilho prateado? Senhora, senhora, esta é a minha filha! Aí, chega a
minha vista cega de tanto brilho! Senhora!
ESCURECE. LEOPOLDINO VOLTA AO PROSCÊNIO. LUZES
SOBRE OS TRÊS.
LEOPOLDINO — Me admira tu fazer este juízo de mim:
que eu garrei a minha filha — a milha única filha — e que atirei ela no mar.
ALDORA — Negou que ela estivesse no barco. Depois
disse que ela te pediu para ír, que chorou querendo ir e o jeito foi tu levar
ela. Te pergundo — por que negou?
LEOPOLDINO — Doutor, eu refuguei porque sei que o
desejo desta mulher é me incriminar. Dantes era um pescador falido. Um traste,
para ela. Que, se não fosse Arioso... Aí está porque me vali de Janaína,
Senhora dos mares. Fiz um voto, confesso. Joguei para ela um buquê de jasmins.
Por que neguei? Não foi negação. Uma coisa foi um voto. Podia oferecer à
Senhora qualquer prenda de sc embelezar: pente, espelho, sabonete, flores, na
qualidade de ser tudo branco. Outra coisa foi satisfazer a minha filha num
passeio de saveiro. Agora, se numa hora perdi os sentidos e Janaína chamou
Narcisa — tenho culpa? Sofri muito, mas quem sou eu para me revoltar com a
sabedoria da deusa?
ALDORA — Compadre Arioso rebocou o barco dele. Além
das cachaças, é também dado ao vício da erva.
LEOPOLDINO — Aldora Estrela, por que este desejo de
me Derder? Tu anda bem vestida e bem calçada. Os meninos também. Nas
trempes^não faltou mais uma panela, uma chaleira.
ALDORA — E, seu Leopoldino, o preço foi alto. Foi
acima das minhas
forças.
LEOPOLDINO — O doutor acredite, eu não atirei a
minha filha. E se eu quisesse até podia ter atirado. Era minha, e galante como
uma boneca. Loura, cacheada. alegre, sã, limpinha. Ah, eu sou um assassino?
Estou confessando que atirei Narcisa nas águas? Mas doutor, repare bem que eu
não disse isto. Eu disse que até podia — pois era oferta — dispor de Narcisa.
Mas o que
eu atirei foi um buquê de jasmins, foi u’a mão de
estrelas no azul.
ALDORA — Uma estória muito enfeitada. Com pouco ele
canta aqueles versos do Príncipe Formoso. Até me lembro dum pé que começava
assim:
“Meu bom Rei não se lamente
pelos golpes de sua sina...”
Quer completar,
Antônio Leopoldino dos Santos?
LEOPOLDINO — Seu Delegado, o bom julgador é como
Aldora Estrela. Ela diz que eu atirei porque ela acha que é muito fácil atirar.
Tanto é que, se fosse Lael, ela tava bastante satisfeita, pois toda hora vive a
desejar a morte do aleijadinho, a chamar ele de estorvo. E a pois o menino nem
é meu filho, mas eu tomei amizade ao bichinho. Dizem que é obra, aí, de
compadre Arioso. Fale, homem, se manifeste.
ARIOSO — E verdade. Aldora Estrela não tem apego a
Lael.E eu não sei explicar. A vida, doutor, este andar de todo dia, este velejar-velejar.
Tudo assim, nas incertezas. Pode ser e pode não ser. (Retirando do samburá o
véu com a grinalda de Narcisa). Atirei a linha no mar e o que pesquei foi isto.
Lá, nas ondas do mar alto. Pode ser e pode não ser.
— Fim —
NOTA — Os versos foram extraídos dos romances de cordel “História do
Sargento Verde” e “História do Príncipe Formoso", de Rodolfo Coelho
Cavalcante, e sofreram modificações para melhor adaptação à peça. FPS/Agosto/1972.
MINI-BIBLIOGRAFIA
FRANCISCO PEREIRA DA SILVA
nasceu
Começou a freqüentar teatros,
exposições de artes plásticas, etc. Mas o sonho e a realidade se cruzavam. Foi
então que iniciou escrevendo contos que eram publicados em revistas e
suplementos literários, passando pelo trabalho jornalístico por algum tempo,
quando então fazia crônica de teatro. Sua maior descoberta foi Garcia Lorca,
sentindo uma quase absoluta identidade entre a Espanha do grande poeta e o Nordeste
do seu coração.
Fez o Curso de
Biblioteconomia, continuou e permanece residindo no Rio, onde é bibliotecário
da Biblioteca Nacional, mas de vez em quando voa ao Piauí para matar saudades e
gozar as delícias da nossa vida simples.
A primeira peça para teatro
chamou-se Viagem, embalada em plena crise Iorqueana. Continua inédita, a
dormir, mas muito amada pelo autor. Lázaro, escrita em 1948 é encenada em 1952
por um grupo de amadores doTeatro Duse, de Paschoal Carlos Magno: Com essa peça
− uma transposição da Eletra grega para
o Nordeste brasileiro – mereceu da crítica o prêmio de “Revelação de Autor”.
Outras peças, a maioria
encenadas e premiadas: Memórias de um Sargento de Milícias (adaptação do
romance do mesmo nome, de Manoel Antônio de Almeida). A Nova Helena, Uma Carga
de Laranjas, Graça e Desgraça na Casa do Engole Cobra, O Vaso Suspirado,
Romance do Vilena, Cristo Proclamado, A Caça e o Caçador, Hans Staden no País
da Antropologia, Raimunda-Raimunda e Chapéu-de-Sebo.
Esta última, traduzida em alemão,
numa antologia em que figuram cinco autores do moderno teatro brasileiro, já
foi representada com grande êxito em Berlim, sendo logo depois levada também na
Tchecoslováquia e Finlândia. Tem várias inéditas. Reino do Mar Sem Fim é uma
delas, agora publicada por nós e levada ao palco pelo grupo TESTE, que tem a
direção de Tarciso Prado.
Os
três bagos de chuva
Adriano Aragão de
Freitas Brasília (DF)
No
primeiro dia, ele vestiu o avental, pôs as luvas e fez espocar na calçada o
primeiro bago de chuva. A semente, lançada há milênios rompeu o concreto
enquanto os pombos brancos partiam
No
segundo dia, ele vestiu o avental pôs as luvas e fez espocar na calçada o
segundo bago de chuva. A árvore riscou no chão a mancha escura que eles não
chegaram a decifrar. Mais tarde, surgiram nos galhos da árvore os frutos ainda
verdes. Como os homens estivessem proibidos de comer frutos, nenhum gesto
tiveram com o acontecimento.
No
terceiro dia, ele vestiu o avental pôs as luvas e a máscara de oxigênio, e fez
espocar na calçada o terceiro bago de chuva. Foi quando os vermes da terra
saíram e devoraram a árvore e os frutos. O oráculo já havia partido em busca
dos pombos. Só restou aos homens aguardarem o quarto dia.
________________________________________________________________________
TEMPO
DE POLICIA
Pedro Celestino de
Barros
O
PONTO de reunião era no café do Otacílio, mas como ficava nas barbas do
Comando, nada se podia fazer. A turma rumava Avenida acima, cada um com seu
par, em direção ao Carneiro, que ficava bem defronte ao Santo Cruzeiro. As
meninas eram caíram pelos milicos que nem bode em cumbuca de sal. Paisano para
arranjar uma era serviço. Suava frio e tinha que pedir licença ao milico.
Valdemar, caboclo viciado por curica, gostava de avançar o sinal para as
meninas, sem a devida permissão. Certa vez – noite de São João – o foguete
papocava no ar, a sanfona soluçava num baião, a gente atracado com a negra, coladinho
que parecia querer entrar um no outro. Quem era que se lembrava que ali em
frente estava o Santo Cruzeiro, fundado pelo Frei Teobaldo e, ao seu redor, pé,
cabeça, braço, perna, olho e até orelha?
Ela é
que era bom. Distante, longe das vistas dos superiores e ao som irrequieto e
desgoso da sanfona do Maneco, do bombo do Malaquias, do reco-reco do Zé Pança e
do som bonito da gaita do gaiteiro Andrelino (que, deixando de tocar gaita para
cavar um poço, lá ficou soterrado para sempre). O samba empolgava e a gente
esquecia de tudo. Desabotoava-se todo. Tirava o cinto, afrouxava o colarinho,
erguia o capacete para o meio da cabeça, atracava a cabrocha pela cintura e
fazia um corrupio no salão que só negro do Congo em dia de festa. Rebolava a
negra para a direita e para a esquerda. E a poeira cobria. Mas a gente ficava
de sobreaviso, com o olho na patrulha. O sargento Mineu era uma onça para pegar
recruta. O pobre do Mil-e-um sofria o diabo em suas unhas. A ordem era dura.
Estávamos no auge da guerra.
Mas
soldado velho é como macaco: não mete a mão
ficava limpa. A sanfona, o
bombo, o reco-reco, a gaita, tudo parava. Silêncio de cemitério. É que a turma
estava toda deitada, espalhada que nem grupo de combate, por baixo do
mangueiral. Quando a patrulha ou a cavalaria se retirava, a turma ouvia a voz
de comando do sargento Sousa Lima, amigo com ninguém:
- Fala constantemente,
Gumeril!
E o sargento Gumeril
respondia:
- Ta tudo azul, menino.
Era a senha.
A
turma retornava ao local. O forró continuava até alta madrugada.
Certa
feita, depois de uma dessas fugidas, a infuca recomeçou, recendeu um mau cheiro
que não havia quem suportasse. Cheiro de sola mal curtida. O pessoal berrava e
fungava que nem tatu em buraco: É que o Mil-e-um havia-se esparrado em cima de
uma porcaria. E a turma ria a bom rir.
Todas
as meninas haviam-se combinado para comparecerem á festa, naquele dia, trajando
vestido azul. Por isso mesmo o baile foi chamado de “sonho azul”. Dançava-se
aqui, bebia-se ali, e todo mundo brincava a valer. Com ares de Don Juan e
fumaça de cabra festeiro, aparece e caboclo Valdemar, que se enfaça, quase á
força, com a mulata e dengosa Ritinha, garota de Mil-e-um, provocando um atrito
que se degenerou. Quando o par passava rodopiado, Ritinha lançava um olhar
comprido para o Mil-e-um, como que pedindo que a salvasse daquele intruso, até
que o seu amor, não suportando a afronta, deu um salto no meio da sala e gritou
a plenos pulmões:
-
Deixe a menina e dança comigo, cabra da peste.
Ai
apagaram o candeeiro, que era de três bicos e ficava bem no entrar da porta
principal. Valdemar, acossado por Mil-e-um, ao saltar da janela, recebeu bem no
seco da testa uma porrada. O cabra dá um urro, cal e a fita de sangue
acompanha. A confusão é grossa.
As
meninas gritam:
- Meu
Santo Cruzeiro!
A
cavalaria vem chegando, a espada canta no lombo dos cabras. Valdemar levanta-se,
agarra a perna de pau que lhe abriria a goteira e se atira prá cima de um
milico. O milico é adestrado, mergulha e aplica-lhe uma cabeçada, deixando-o
por terra. Toma da perna de pau e desfecha golpe para a direita e para a
esquerda. O apito da cavalaria soa continuamente, e a negrada dá no pé.
Depois, já tudo calmo, quando Carneiro
está a juntar os cacos do seu boteco, pois quebraram-lhe até a banca de gelado,
ouviu uma voz:
- Seu Carneiro...
Resolve ir até fora. Nada. A voz vinha
era de dentro da casa. Entrou. De olhos arregalados olhou para os cantos. Ficou
assustado.
- Seu Carneiro...
Levantou a vista. Deu com Maria Cabelo
de Fogo, também conhecida por Machadanta, bem repimpada, no alto da travessa,
com um braço de madeira que apanhara ao pé do Santo Cruzeiro, ainda reclamando
a falta de uma perna de pau que na confusão lhe fora arrebatada. E acrescentou:
- É um desrespeito as coisas santas, por
isso mesmo o baile deu nessa confusão. Que azar!
Carneiro
ficou a imaginar como diabo Cabelo de Fogo conseguira trepar ali, bêbeda como
estava, com toda aquela bagunça, e no escuro.
Machadanta era mulata de corpo de
violão, pernas longas e bem
torneadas,
e tinha um balanço no andar que dava gosto.
Carneiro pôs escada e ajudou-a a descer.
Depois, lamentando-se, pediu que ficasse, pois seria chamada à Polícia, com
certeza, para contar toda aquela feia história. Mesmo precisava de uma
companheira para fazer-lhe o café da manhã: vivia como um cão sem dono. E os
dois, em pé – ela bamboleando como quem vai cair, ela procurando ampará-la com
jeito – olhavam-se bem nos olhos um do outro. Até que os corpos se enlaçaram.
E um baque fofo soou no espaço.
LIBERTAS
QUASE SERÁ TAMEN..
“LIBERTA,
QUE SERÁS TAMBÉM”,
ALGUÉM
DIZIA.
O
CERTO, PORÉM, É:
“LIBERDADE
AINDA
QUE
TARDIA”.
....MAS
MESMO ASSIM
NÃO
IMPORTA:
O
LATIM É UMA
LÍNGUA
MORTA.
TORRE
DE PAPEL
Drumond Amorim
Abominável
porca foi encontrada, e antes não a visse Juão. Era uma peça no chão fofo,
jogada como peça que se joga, inânime porca que cai, nem se sabe como, assim,
deslocada. Recolhesse-a o pessoal da limpeza por lixo, imundície, coisa – não
João, de olhar folgado.
Na
grossura de três dedos em pé, o verde-musgo do tapete não lhe ocultou o
rebrilhar. Que ocultasse, a percuciência de Juão radiografia madeira ou o que
transpareça estranho, tal o norteio no ambiente rico. Pois se aninhava na
passagem, paisagem de empresa, num canto de refrigerada sala. Empresa se
espalhando em sonolentas inaugurações: mais uma, cem, mil filiais – no país das
sanfonas, foguetórios, cigarros de palha, futebol, gente afeada de sofrer,
samba e cachaça (bendita seja) e tudo o mais que se delibera.
Ninguém
ligaria, menos João. Este se reservava segredos do transportar bandeja, xícaras
– serviços miúdos. Muito mais que isso: o que sobrava, o que faltasse. A
decoração João a conferia de cor.
Se a
desgraça da S. A, refocila anseios na comunidade desdentada? Qual nada. Mas
ajuda, em diversãozinha idiota. A S. A, finge refocilamento (credo) na
entrevada economia. Mentira impura. A pança ancha se entulha. A massa restam
desgraças para o riso, que a graça anda sumida. Que vida. Que época.
Autêntica
empresa (modernas). Aqui a novidade inexiste: a justaposição das peças
sedimenta, une, liga, ata. Ata. Às dezesseis horas e trinta, o contínuo inominado
João Qualquer declara cumprido o deve de ver.
Era um
dia como nenhum outro.
Juão,
o contínuo, assobia. Incrível lograr equilíbrio do que se equilibre. E Juão
sustenta a bandeja, irrepreensível na postura, embora nas circunstâncias do
assobio e salário. Assobia, o infeliz. Detrás da outrora xizada perna da mesa,
a ponta que rebrilha, luz – metaleco de merda, peça que vê e se rebaixa. Juão
recolhe, João cai cafezinho (só acontecia no princípio da profissão, depois
trago um pano e limpo). Até aí, nada. Pelo que veio foi que se ligou, roxos de
ira erma.
Prestimoso,
na pinça dos dedos examina a porca (olhai, Chefe, caiu de algures) (Juão não
diria o palavrão).
Chefe,
no que recebe, abandona na mesa, vê, deixa, revê, redeixa. Traste á toa, peça
bestalhona (obrigado, Juão, urge-alguma-providência no-sentido-de). O que não
diz, pensa (depois, jogo fora a porcaria).
Considera:
porca que caiu! De onde, onde? Não acho e se desconheço, emperro qualquer
maqui, na carente. Viu a peça é cúmplice. E viu. Volta aos quefazeres. Em
acúmulo de trabalho, o tempo voa curto para se perder. Ah, mas queria saber era
de onde me fugiu a porca. Porca encaixa em parafuso, quê? Sei lá. Não entendo.
Atarracho o problema no Administrador. Com o memorando de praxe.
Administrador
calcula envelope mede memorando, engendra usos, desengendra tudo. Chefe precisa
de férias. A dúvida agora é se tento, se passo para a frente. Devolvo ou passo.
Devolvo ou passo, devolvo ou passo? Passo,
com o memorando para
encaminhar. Mostrar seriedade, Chefe enlouqueceu. Passo.
Advogado:
por isso engenheiro tem cabeça de concreto. Nem tanto, é concreto na cabeça.
Engenheiro não sabe, advogado vai saber? Não vai não, cheiro longe a
malandragem, data vênia. Não estudei direito para entender de porca. Pode até
ser: algum superior maníaco (aqui está cheio) mede eficiência. Verá. Assim,
Economista colherá o abacaxi. Com memorando e tudo.
Economista
é quem prevê o previsível. Burrocracia levar empresa para buraco. Contador
Geral se virra com parrafusa. Secretárrria, escreve memorranda. Manda
parrafusa.
Parrafusa
que chega a Contador Geral, intimador de subordinados para reuniões. Se marca
para a terça, todos comparecerão, é ordem. Comparecem. Em cima do tapete, a
verbiagem açoita a subordinação. Quem sabe, o Diretor? A porca é importante?
Rubiginosa ou brilhante? Hem, demissão pela porca? Fica resolvido: nada ficou
resolvido. Vai comunicado para todos. Marcam-se reuniões.
Até
que no manda-não-manda, manda, mandam. Acompanha-a relatório, valioso apêndice
da porca (Terminando com atenciosamente para o momento, aproveitamos-o-ensejo,
etc. Na discussão brigava, ganha o cordiaes saudações. Oportunidades forjicada.
Ao desenhar o jamegão (infalsificável, claro), o contador ergue a caneta e
corrige o cordiaes.)
Na
S.A, não se dorme, é literal. Exceção para quem já dormia
No
meio do gráfico estatístico desce uma risca desce uma risca no meio do gráfico
desce uma risca. Ensurdeceram os empresários do país. Irreconciliáveis, há
pouco eram concorrentes. Agora, os risos vão do o ao s das orelhas.
Convocaram-se
peritos. Eles insinuaram dores muitas, compromissos inadiáveis, inutilidade da
peça. Discordo, berra o Presidente da S.A., há que descobrir o enigma. O
mistério da Peça Perdida, continua, a papagaiar manchetes. Não seria de Peça
Encontrada, Presidente?, sugere o Diretor Administrativo.
No
cofre, a peça aguarda destino e função. O Presidente, crucificado no traspasso,
deixa morrer a cabeça para o lado e brada: tudo está vasculhado.
Diretor
Financeiro busca imprensa e engenho. Busca empenho, dos clientes ou não. Já
mendiga a-quem-interessar-possa.
Jornais
publicaram bases de Concurso de Sugestões. Há promessa de bom prêmio e
divulgação do nome vencedor. Candidatos sapateiam sobre o fuzuê da Empresa.
Não
precisavam essa crueldade diante de tudo: são sádicos, insensíveis, ferozes,
comenta o Inspetor Geral. E abre mais um envelope.
Que a
Comissão se reuniu. O Inspetor prossegue na leitura. Em voz alta, mais alto,
pedem os Jurados.
Ouvem
sisudos, engravatado responsáveis. Cada envelope aberto estafa na cara. Empresa
a porca na firma. Rasga. Agora que a porca torce o rabo. Rasga. Assa e manda
pro padre. Lixo. Procure as
causas
no topo. Rasga. Qualquer cartomante advinha. Rasga. Demita o contínuo. Separa.
A que-faz-de-tudo resolve. Rasga. Bota no chiqueiro. Lixo. Decreta falência da
pocilga. Rasga. Enfia no Diretor. Cretino (a). porca miserial Lixo. Desmonta e
monta a firma, o que falar é porca. Lixo. Devolve pra Marte. Rasga. Cuidado que
a porca é comuna. Subversivo!, separa para averiguações. Falta uma porca em
minha vida. Rasga. O chefe sabe e não diz. Fora. Pergunta pra porca. Lixo.
E vai
por aí a alegria da comunidade sofrida, ávida de desafogo: segura a porca.
Solta a porca. Esqueça a porca.
Mas
também vai que, repiscane no verde-musgo do tapete, o Juão Qualquer (não
assobia há muito), vê peça idêntica, por trás da mesa do Chefe. Gato escaldado, apanha-não-apanha. Apanha e
enrega,
- Olha
aqui, Chefe, outra peça. Igualzinha.
Brasília – DF
_______________________________________________________________
DIA
VIRÁ
Luíz Edson Fachin –
Curitiba
EMBORA OS
ESFORÇOS
SEJAM BEM
CONSIDERÁVEIS
A FEBRE
CONTÍNUA
DIZIMANDO
REBANHOS INTEIROS
As justificativas
são sempre as mesmas.
Nos
enganam,
ELA
PROVOCA
A MACIÇA
MORTALIDADE,
E cedemos
ao medo,
Para
conter a nossa reação
Haverá
sempre 1° de abril dizendo
VEJA
COMO
COMBATÊ-LA.
14 facas
na dança
Não
representam o país.
_____________________________________________________________
APOCALIPSE
Renato José de Carvalho
Um anjo
vento forte só,
Com braço
forte,
Ergueu a
grande pedra mó
De
moinho.
Em
remoinho louco
E
lançou-se fúria
No louco
mar de largura
De
largura boca.
Na boca
muita do mar,
João disposto
no porto,
O ímpeto
no rosto...
João a
postos no posto,
No posto
Precipitando
a cidade,
A grande
cidade
No rosto
do fero mar.
João
babilônico e sântico,
Furor
demoníaco, irônico,
N braço
forte, venitânico,
Tessálico,
Erguendo
a cidade moinho
Na ira de
vendaval....
João a
postos no posto,
Abissal...
João
apostólico, tirânico,
Com o
braço forte de mó
Lançando
a pedra cidade
No ventre
vômito do mar,
João
perdendo a cidade.
No dentro
fundo do mar.
AUTO-ABC
ou ABC PARA MIM MESMO...
Paulo Nunes Batista
Aos dois de agosto nasci,
do ano mil, novecentos
e vinte e quatro, conforme
consta dos assentamentos
do Cartório do Registro
Civil, sobre nascimentos.
Batista de sobrenome,
Filho de Chagas Batista
E dona Hugolina Nunes
− de família repentista,
trouxe, no sangue, o destino
de poeta cordelista.
Cordelista, de Cordel,
cordial e coração....
Na corda bamba da vida
venho cumprindo a missão
− dançando e me equilibrando:
artista entre o céu e o
chão...
Da terra de João Pessoa
− Paraíba Nordestina –
sou natural, sem disfarce:
de estrutura pequenina
− um metro e cinqüenta e cinco
de poesia repentina.
Estudante
dos Mistérios
de Deus
–Vida –Morte – Amor:
Enamorado
das Musas
- o seu
Menor Trovador-
faço
sorrir, em poesia.
minha
Angústia aberta em flor!
Flor do
Mato, Fruta Agreste,
guajiru
da beira-mar,
tenho o
Sol do meu Nordeste
minha
Noite a iluminar...
Versejo
desde menino,
Como quem
vive a brincar...
Glosador,pegando
um mote,
dou meu
recado na praça,
seguindo
o plano-roteiro
que o
Espírito me traça:
não nego
do Cantador,
a raiz, a
fibra, a Raça.
Homem
vivido, sofrido,
Corrido
Brasil à fora
-
Viajando no Repente,
Nave onde
meu Sonho mora:
Minha
fonte de improviso
Despejo
em cima da hora...
Inimigo
de tiranos,
tenho
horror à hipocrisia.
Para
festejar a Vida
-troco a
Noite pelo Dia.
O Caboclo
Cachoeira
á –nas
Umbandas – meu guia!...
Jornalista,
jornaleiro,
poeta
profissional,
fui
corretor, fui livreiro,
fui
Professor do Mobral;
sou – por
concurso – em Goiás
funcionário
fiscal.
Liberto
de compromissos
com
credos religiosos.
SEI de
DEUS – porque O sinto
nos
transes mais dolorosos.
tanto
quanto em meus mergulhos
nos
abismos luminosos...
Medularmente
contrário
a todo
sectarismo,
repudio o
enquadramento,
o cabresto, o bitolismo;
sou um
livre-atirador
nas lutas
contra o Egoísmo.
Navegador
do Alto Mar
onde
veleja a Aventura,
as Naus
Eternas do Sonho
navego,
fabrico
flores de Luz
da pedra
mais densa e escura...
Operário
da caneta,
já vivi
só de escrever:
poeta de
profissão,
em Goiás
pude viver
dos
folhetos que escrevia
para nas
pragas vender.
Paulo de
Pau.... de Paul....
- dureza
que a Luz Inflama!
Meu nome
termina em O
- um zero
de onde sai chama!
E eu –
sendo Pau – dos meus frutos
e
flores.... mesmo na lama!...
Quase
todos os Estados
do Brasil
já percorri.
Morei em
vinte cidades.
Das
profissões que exerci,
conservei
a de poesia,
desde o
dia em que nasci.
Registrados,
são dez filhos
Que o meu
sobrenome tem.
Sou
casado com baiana
- quanto
a mulher, vivo bem,
Não tomo
nada dos outros,
nem prejudico
ninguém.
Sincero
desde o tutano
dos
ossos, desde a raiz
da
própria alma – não minto:
Paulo
sustenta o que diz
e - por
amor de Verdade,
sofrendo
– vive feliz...
Trovador:
escrevo trovas,
soneto,
sambas, canções,
contos
rimados, poemas
- num mar
de improvisações.
Tenho
setenta folhetos,
com
diversas edições.
Univérsico,
homem-cósmico
-Jesus
Cristo é meu modelo,
Embora
saiba estar longe
De
imitá-LO, por sabê-lo:
Teço a
Túnica Inconsútil
Com o
Luminoso Novelo...
Versejador
Viajante
Das
Estradas do Repente:
Abro a
boca – o Verso nasce,
Como
nasce a água corrente,
Tenho
feito alexandrinos
Em três
minutos, somente...
Xiquexique
tem espinhos
- mas dá
fruto que se come...
Assim
também na aspereza
Da
Angústia que me consome
- solto
fagulhas de Luz,
- mato,
de Beleza, a Fome!...
Zambe,meu
Negro, Você
Que é tão
branquinho de Luz,
Que – na
alta Noite eu que sofro
Para o
Dia me conduz!
- faça
com que eu possa, um dia,
Seguir o
Mestre Jesus!...
(Anápolis
– GO, O8-Julho,77)
_______________________________________________________________
CANÇÃO
DO VENTO
Lúcia da Silva Ribeiro
–Rio (RJ)
Minha
terra
tem
bananeiras
onde
canções não há
as aves
que se ensaiam
são
obrigadas a calar.
ai quem
me dera que um dia
pudesse
contar um segredo
a
publicá-lo em notícia
sem que
isso acarretasse
desespero
ou
desterro.
ai que
doidice que é essa
que me
queima dentro do peito
que sobe
a tona da boca
que torna
as fases vermelhas?
minha
terra
tem
barreiras
onde
direitos não há
os
pássaros que já cantaram
morreram
por confessar.
ai que me
dera que um dia
soubesse
abrir a gaiola
e cantar
em liberdade
sem que
isto acorrentasse
meu
sorriso
minha
rota
ai que
desejo que é esse
que vira
o corpo ao contrário
que traz
pra fora o que é dentro
que traz
para dentro o que é fora?
minha
terra...
minha
terra...
tem
bananeiras
barreiras.
não tem
canções
nem
direitos.
Tem aves
e
passarinhos
que
sonham quando em silêncio.
MOTIVOS
Nilza Menezes Caixa Postal 2246
Curitiba-Paraná.
Ei, amigo,
a fome é bastante, é?
A sede de pinga é maior.
Vem dor
e frio que congela.
A morte que assusta
E os problemas que te estatizam
e te tornam mendigo.
______________________________________________________
Corpo de Judia
Meu corpo está hoje na
feira
quem o quer comprar?
Seu preço i uma coroa de
rosas
com plumas de pavão real
e um beijo amarelo no
meio do céu.
Meu corpo queimou-se na
praça
faz agora mil anos, por
uma verdade instantânea,
quando a igreja decidiu
em meio dos gritos do
rebanho
que estava muito feito de
pecados...
Mas um dia renasceu das
ruínas
e cresceu na proporção
das
luzes que se abriam em
cada século.
Desta vez nasci com um
peito enorme,
dois braços que se
derramam sobre o mar,
uma formosa boca que
mastiga os nomes dos rapazes
e um sexo sepulcral onde
abrigar o dia e a noite,
e talvez
ainda a tarde e a manhã, todas juntas.
Teresinka Pereira
Universidade do Colorado
U.S. A.
Noite
de natal
na noite de natal
às vezes a gente consulta
o álbum de família
a surpresa informa
que um vazio anda
pelos cantos na sala de visita
na parede o espelho
reflete o tempo
e o tempo não se sabe refletido
na noite de natal
os mortos são radicais
só sabem viver com os vivos
barros pinho
Fortaleza-CE
__________________________________________________________
O
SILÊNCIO
São gritos loucos, moucos,
os teus.
São gritos, somente.
São esperneios da voz,
inconscientes elocubrações
vocais.
O silêncio é o resultado
do grito,
o silêncio da alma da voz,
o silêncio-remédio
o silêncio-insânia.
EDILSON
DA SILVA JARDIM FILHO
RUA
DOS ILHÉUS N° 03 FLORIANÓPOLIS SANTA
CATARINA
Mãe,
eu quero água
“é preciso ter coragem para mexer na zona
de mata pernambucana...” (técnicos do Ministério de Agricultura)
é preciso ter coragem para mexer
não podemos conviver com as balas morreu de sede
(no hospital)
não podemos beber água
morreu de balas
(no hospital)
não tendo a coragem de mexer na zona da mata
morreu de fome (no
hospital)
não tendo a coragem de mexer na zona da mata
tendo a coragem de mexer na comida
tendo a coragem de mexer na bebida
da zona da mata
morreu de balas
(no hospital)
é preciso ter coragem para mexer
Pedro Américo
Recife (PB)
CLUBE
DO ESCRITOR
Dando prosseguimento a suas
atividades culturais, a Editora do Escritor, por seu diretor-presidente Luz e
Silva, fundou, em julho de 1977, o seu CLUBE DO ESCRITOR, visando congregar
ainda mais não só seus autores como também seus leitores, permitindo-lhes uma
participação comunitária maior.
Haverá no CLUBE DO ESCRITOR
duas categorias de sócios:
1 – CATEGORIA AUTOR
Nesta categoria, o sócio deve
provar a condição de escritor, com a apresentação, no ato de inscrição, de
trabalho seu, publicado em livro ou periódico, ou, no caso de ser autor
inédito, cópia do original datilografado.
Com o pagamento da Anuidade,
que para 1978 é de Cr$ 500,00, o sócio passa a ter direito a:
a)
Participar de todas as atividades culturais do
Clube do Escritor;
b)
Votar e ser votado nas eleições para escolha da
diretoria do Clube do Escritor, conforme Estatuto.
c)
Receber mensalmente uma das obras lançadas pela
Editora do Escritor;
d)
Receber os números semestrais do EM REVISTA,
órgão do Clube do Escritor;
e)
Inscrever suas obras a seleção e sorteio
periódicos para publicação pela Editora do Escritor, em bases próprias;
f)
Inscrever trabalhos a seleção e sorteio para
publicação nas diversas antologias organizadas pela Editora do Escritor,
inclusive o EM REVISTA.
Os
autores que desejarem participar das atividades do CLUBE DO ESCRITOR –
CATEGORIA AUTOR – devem remeter proposta de inscrição nos seguintes termos:
Sr.
Presidente do Clube do Escritor,
Peço-lhe
incluir-me como sócio do Clube do Escritor – Categoria Autor, para o que abaixo
apresento meus dados e meu currículo.
Nome
......................................................................
Nome
Literário
............................................................................
Endereço
................................................................................
CEP...............................
Cidade ..............................Est. ........................
Obras
......................................................................................................
................................................................................................................
.................................................................................................................
Obs. –
A proposta, datilografada em papel ofício, acompanhada de duas fotografias 3x4,
deve, juntamente com o pagamento de Anuidade, ser enviada para a sede do Clube
do Escritor, Rua Barão de Itapetininga, 262 – Conj. 304-305, em nome da Editora
do Escritor Ltda. A Anuidade pode ser efetuada em 2 parcelas semestrais.
2 – CATEGORIA LEITOR
Nesta
categoria, entrarão todos aqueles que desejarem prestigiar o escritor
brasileiro, participando lado a lado de sua luta.
Com o
pagamento da Anuidade, que para 1978 é de Cr$ 300,00 o sócio passa a ter
direito a:
a)
Participar de todas as atividades culturais do
Clube do Escritor;
b)
Ser eleito para o Conselho Deliberativo do Clube
do Escritor, quando passará a ter direito a votar e ser votado na escolha da
diretoria, conforme Estatuto.
c)
Receber mensalmente uma das obras lançadas pela
Editora do Escritor;
d)
Receber os números semestrais do EM REVISTA,
órgão do Clube do Escritor;
Os leitores
que desejarem participar das atividades do CLUBE DO ESCRITOR - CATEGORIA LEITOR
– deve remeter proposta de inscrição nos seguintes termos:
Sr.
Presidente do Clube do Escritor,
Peço-lhe
incluir-me como sócio do Clube do Escritor – Categoria Autor, para o que abaixo
apresento meus dados e meu currículo.
Nome
......................................................................
Nome
Literário
............................................................................
Endereço
................................................................................
CEP...............................
Cidade ..............................Est. ........................
Obras
......................................................................................................
................................................................................................................
.................................................................................................................
Obs. –
A proposta, datilografada em papel ofício, acompanhada de duas fotografias 3x4,
deve, juntamente com o pagamento de Anuidade, ser enviada para a sede do Clube
do Escritor, Rua Barão de Itapetininga, 262 – Conj. 304-305, em nome da Editora
do Escritor Ltda. A Anuidade pode ser efetuada em 2 parcelas semestrais.
DEPOIMENTO:
A NOVA GERAÇÃO
Damário Matos da Cruz
Damário da Cruz foi o vencedor
do prêmio “CONVIVIO DE POESIA
“A nova geração de poetas da
Bahia ainda dá os primeiros passos
Mesmo cometendo erros naturais
de quem inicia o aprendizado do verso, é preciso estar sempre atento para
determinados fatos que rodeiam o poeta quando começa, principalmente no que diz
respeito ás pessoas que só fazem tumultuar o ambiente em proveito próprio,
afastando cada vez mais os leitores de poesia e enganando o jovem poeta,
dizendo-lhe que a sua poesia o capacitará, sem dúvida alguma, a ser um grande
poeta.
Sem fazer ainda uma boa
poesia, esta geração tem grande mérito de buscar caminhos que pareciam
esquecidos. A palavra e a emoção tornam a incomodá-los e este é o ponto de
partida da maioria dos jovens poetas que começa a escrever no fim da década de
60, e que durante dez anos resistiram isoladamente, criando diante de tudo que
acontecia e hoje começam a avançar.
Dez anos é algum tempo, mas
não significa muito
Atualmente, vários poetas
jovens, e quase sempre inexperientes, pagam a estes “editores” para poderem
participar de antologias que, na verdade, não contribuem em nada, efetivamente.
É preciso que todos percebam isto e tratem primeiro e discutir e questionar com
os outros, acerca de seus poemas, do significado deles, da necessidade da
poesia e de sua função social.
Todo bom poema tem seu lugar
guardado nos muros da cidade. A não publicação imediata dos poemas nos jornais
ou nas inúmeras antologias feitas quase sempre sem nenhuma reflexão, não
significa o acomodamento do poeta no seu quarto ou nas salas de aula.
Participar de alguma forma das lutas por uma sociedade mais digna é o primeiro
dever de todo poeta que se respeita, e somente assim haverá coerência entre o
que ele faz e escreve. Ser poeta é alguma coisa. Mas não é tudo. O endeusamento
do poeta nasceu de uma forma inconsciente e tende a morrer a cada dia, e aí o
homem que hoje faz poesia estará cada vez mais ligado ao homem que ele deve
ser, para que possa lutar por suas necessidades e pelos seus direitos, numa
sociedade que ainda é injusta para com a maioria”.
___________________________________________________________
OS
LEITORES COM A ÚLTIMA PALAVRA
CONTRA
“Faço uma crítica a
CIRANDINHA: está muito pretensiosa, sofrendo de megalomania, querendo publicar
de tudo, tudo de uma vez, de tal forma que me parece muito poluída em
quantidade de textos, e nesse papo de democracia editorial permitindo folclore,
(...), lendas,
editorial permitindo folclore,
(...), lendas, ,ensaios e outras mumunhas do mundo letrado eu não embarco. Acho
que uma xis política editorial fica bem e marca melhor presença nesse caótico
universo papelístico em que vivemos...”
Pedro Américo Recife-PE
Pró
“O |
APARECIMENTO de jornais e
revistas alternativos marcou, definitivamente, esta década. E propiciou, embora
sem nenhum rigor crítico, o surgimento de novos autores, - uns poucos
realizando trabalho sério, calcado numa realidade que apenas os cegos não
conseguem ver. Muitas dessas publicações, no entanto, fazem questão de seguir uma
linha de valorização crítica, sem concessões filosóficas ou puramente formais,
exigindo do autor, além de uma atitude combativa e responsável face à vida, um
certo nível de qualidade. Enfim, parece-me, estamos começando a resistir aquela
copiosa literatura de evasão, simples masturbações intelectuais, que durante
muito tempo visitou e conquistou os suplementos literários do país, menos por
imposição de uma auto-censura do que por incompetência desses autores, mais
preocupados com a divulgação do que propriamente com a criação e a análise da
realidade. “Cirandinha”, revista semestral de literatura editada pelo poeta
piauiense Francisco Miguel de Moura, chega ao número dois com a mesma
disposição que norteou sua criação. Nela, os autores, fugindo a atitudes
egocêntricas, tão comuns e tão prejudiciais, mostram-se (com raras exceções)
criticamente aparelhados, atentos e dispostos. Não é pois, por coincidência que
H. Dobal, indiscutivelmente o mais importante poeta piauiense de nossos dias,
afirma à página 46 de “Cirandinha” que “seria um homem pleno/se lhe bastassem
apenas/ a suavidade da tarde,/a variação do mar,/ a indolência do tempo”. E, por
conseguinte, a facilidade de uma vida bem comportada. Eis aí a definição exata
do espírito dessa ótima revista editada – não sei como – por esse combativo
Miguel de Moura, poeta e crítico muito conhecido em Teresina por suas
polêmicas, muito amado e odiado por sua salutar sinceridade.”
Franklin Jorge
R. Felismino Dantas, 150
59.570-Ceará-Mirim (RN)
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