terça-feira, 29 de dezembro de 2015

APARTAÇÃO DE BEZERRO E DE GENTE

            
Profª. Francelina Macedo*

Cosme Ribeiro, filho de Aureliano e bisneto de Clementino, este último, escravo de propriedade do Coronel Joaquim de Moura, nascido e criado em Fazenda Nova, atual município de Aroeiras do Itaim-PI, narrou para Claro Borges, dono da Fazenda Mandioca Brava e genro de Salustiano, ainda pelos idos dos anos 70, a seguinte história que eu, Francelina Macedo, menina, tive a oportunidade de ouvi-la.

Movido pelo desejo de dominar a escrita e a leitura, Cosme imaginava histórias e as guardava para si, sem balbuciar uma palavra e, às vezes, se sentia louco por constituir e alimentar tais desejos, na medida em que a vida lhe impelia para outros caminhos e até mesmo para descaminhos.
Cosme recebeu do avô a herança do trabalho e com ela o dever de preservar uma honra pouco valorizada, honra de descendente de escravo que não teria direito, pelas vias de fato, à educação formal, pois teve desde cedo que trabalhar para ajudar na própria sobrevivência e na da família.
Aureliano, pai de Cosme, era vaqueiro de varanda, morava  agregado na casa grande da Fazenda do Coronel Joaquim de Moura, haja vista que um dos problemas que a abolição não resolveu foi oferecer condições de vida para que os ex-escravos realmente se emancipassem civil e financeiramente. Muitos recebiam a alforria e permaneciam servindo aos patrões, ex-senhores, por falta de opção de vida e, foi assim com Aureliano, cuja descendência se espalhou por Santa Cruz, Paquetá, Wall Ferraz e demais cidades vizinhas. Vamos à história.

Nos chamados “fins d’agua”, que no Nordeste ocorre entre maio e julho, era comum, nas grandes fazendas, realizar-se a chamada “festa de apartação”, espécie de precursora da vaquejada. Consistia em um fazendeiro convidar outros fazendeiros vizinhos, com suas famílias, dar uma grande festa e apartar os bezerros, desmamando-os para que as vacas novamente pegassem cria.
Essa pega de gado era coroada com forró, cantoria e muita comida regional. Uma curiosidade marcava o evento: é que lá não havia vaqueiros, apenas patrões e seus filhos, pois o objetivo era estreitar laços, arranjando casamentos entre os filhos de coronéis, de modo a negociar dotes e a aumentar o poderio econômico e político da oligarquia rural. 

Então, Aureliano, que fazia o trabalho pesados de vaqueirice todos os dias do ano, era dispensado da festa de apartação, pelos motivos já mencionados, ou seja, aquele era um evento “político, vedado a empregados e a agregados”. Mas o sincero desejo de saber o porquê de ser decantado exatamente naquele dia do ano, embora sabendo que no dia seguinte o serviço ficaria para si, o movia a participar mesmo sem convite ou comando que o determinasse.

Segundo Cosme, certo dia o Coronel Joaquim de Moura e sua esposa Sinhá Porcina receberam em casa 100 (cem) convidados, vindos das fazendas do centro sul do Piauí, diversos lugares, devidamente “na beca” e montados em possantes cavalos. Aureliano, sem dizer uma palavra, selou o burrico e entrou no bando para campear. Meio dia, ao voltarem para casa, Aureliano sentou-se no alpendre e os demais adentraram a sala para a refeição. Sabendo que não ia mesmo ser convidado, resolveu ignorar os olhares e tomar a iniciativa. Entrou vestido em couros, segundo ele porque a roupa era rasgada. Enquanto os demais lavavam as mãos, Aureliano fez o próprio prato e depois de se servir, ia se retirando para a calçada, quando a roseta da espora se prende ao bordado de labirinto da toalha da mesa e, no que ele dá o passo, leva junto todo o banquete.

Segundo Cosme, o patrão morreu à procura do vaqueiro para matá-lo, tamanha foi a ira que o incidente causou. Esta parte ele narrava sorrindo, mas na verdade, fora o lado cômico, trata-se da tragédia que marcou a vida do povo simples, notadamente dos negros que construíram a riqueza desse país. Cosme fazia uma analogia entre este almoço mal sucedido e a vontade de aprender a ler que o tomou durante a vida e é aí que esta história se entrecruza com a de Miguel Guarani.

Segundo ele, próximo dali, em Angico Branco, casa de Maria José de Zuca Panta, passou um professor, conhecido como Mestre Miguel que também ensinara como quem celebrava um banquete onde havia afeiçoados e apartados, não por si, mas pela própria estrutura social. Ele, criança ainda e numa espécie de segunda versão de Aureliano, subia em uma cocheira no oitão da casa e curiava as aulas de Mestre Miguel por uma janela e conta que não conseguiu se alfabetizar, mas elas também marcaram a sua vida. Tanto que varria uma moita nos arredores de casa e a tratava como se fosse um santuário onde o mesmo brincava de escolinha com seus irmãos. “Eles eram os alunos e eu era o mestre Guarani em Pessoa. Um homem de palavras elegantes, admirado e temido, de quem nunca presenciei um sorriso. Era sisudo.”

Ele conta que não aprendeu a ler, mas sempre que se falava em saber, em inteligência, retidão e disciplina vinham-lhe à memória dois nomes: o primeiro Miguel Guarani e o segundo o professor Zé Mestre de Santa Cruz. “A obra que eles deixaram foi imensa, maior que a de qualquer coronel da época dos avós”. Na verdade, Miguel multiplicou mestres leigos pela região de Aroeiras, meninos que beberam na sua fonte de saber e nesta fonte não havia apenas ABC e Tabuada, havia princípios. E foi assim que tantos outros meninos do seu tempo conheceram a palavra escrita e escreveram novas histórias, menos sombrias e mais humanas, numa pirâmide social rígida, com pouca expectativa de mobilidade.

Cosme faleceu no final do século XX e a administração municipal de Aroeiras resolveu, por indicação da comunidade, quebrar o paradigma de homenagear coronéis.  Atualmente, a única escola municipal de Fazenda Nova traz o Nome de Cosme Ribeiro, sendo que lá estudam seus netos e bisnetos, constatando-se que alguns já frequentam faculdades de Picos e até de Teresina. 

             Xicote, em homenagem à verdade e ao bom humor de Cosme, escrevi:


Vaqueiro 101 da festa de apartação

             
              1

Meus respeito, seu doutor
Meu nome é oreliano
Se me permite o senhor
Tenho mais de 70 anos
De uma labuta de  amor
Qu’ hoje vivo relembrando

             2

Fui um cabra atrapaiado
Bão vaqueiro do sertão!
Peguei boi em alvaiado
E fiz muita apartação
Que agora é vaquejada
E me apelidam de peão

              3

Dizem que fui um lendário
Que‘inda converso com gado
Que o cavalo é companheiro
Que entende o que é falado
Com a proteção de São José
Nessa fé fui ensinado

              4

Verdade ou não é história
Que o tempo nunca provou
Só sei qu’ a lida é tremenda
Posso afirmar ao senhor
E maior é a desimenda
Da gente que me criou

              5

Vosmecê já percebeu
Nos traços da solidão
De um velho qu’entristeceu
E traz dor no coração
Uma bagagem pesada:
A lembrança na estrada
De orgulho e desilusão

                
            6

Da lição que acumulei
E acalenta meu sono
Aprendi que touro é forte
Bicho bruto, mas eu domo
Já com gente é pura sorte
Penso, divido e num somo

            7

Hoje em dia falam muito
De injustiça e racismo
De apartaimt e Mandela
Que inté parece modismo
Mas isso sempre existiu
No sertão como um abismo
          
            8

Matutando minha lembrança
Hoje vejo com clareza
Que o recado em tudo há
E vem lá da realeza:
Gente de gibão curtido
Não se mistura a nobreza
           
            9

Assim foi que d’uma feita
Em festa de apartação
Quis este velho entender
O motivo da desunião
Ao ver o patrão convidar
Cem doutor em mutirão

             10

Entrei no bando enxerido
Fui olhado atravessado
Só fartou eu ser cuspido
Não importa, fui mandado
Fiz o serviço de todos, e pago?
Nem com muito obrigado!
              
              11

Lacei boi, arriei vaca
Mostrando minha serventia
Achava inté ingraçado
Quando eu vinha, doutor ia
Juntei tudo no aboio
Gado e doutor num comboio
E o rebanho se fazia

                 12

Vi varão esboforido
Cuma bezerro escaldado
Parecia ter sofrido
Na aventura um bocado
Goela seca e sol apino
Matam cabra sufocado

              13

Chapada exige bravura
Conhecimento de causa
Traquejo com a criatura
E vez em quando uma pausa
Tinha doutor que espumava
Sem falar nas assaduras
Chega menino berrava

              14

Então descia do cavalo
Debaixo dum umbuzeiro
Cortava raiz e num estalo
Matava a cede do herdeiro
Chupa, doutor, que é bom!
Sai água, é imbu verdadeiro!
Sirva primeiro o senhor
E eu bebo por derradeiro

             15

Pensava com meus botão
Mas me mantinha calado
Deproma: o véio num tem não
Porque o ofício é suado
A vareda é meu plantel
E nela eu sou bacharel
Muito embora seu criado!

             16


Cheguemo na casa grande
Tava a maior festança
Tinha forró e cantoria
Sem falar na comilança
Achei uma mesa farta
Alegria e muita dança


            17

Um atoalhado branco
Que arrastava no chão
Nunca vi tanta orgia
Por detrás de um gibão
Fina loiça e iguaria
Estranhava minha visão

            18

Nisso os cem foram entrando
Pra fazer aceiamento
Lavam as mãos conversando
E eu naquele acanhamento
Escutando as fantasias
Tanta mentira ao vento!

                            
             19

Cuma num fui convidado
Fui tomando a atitude
Num tirei nem as espora
E meu gibão meio cheirudo
Fez a gente incomodada
Mas em gesto, (tudo mudo)!

           20

Puxei assim um pratão
Sem reparar etiqueta
Pensei no meu coração
Hoje é sem malagueta
Vou conhecer como é vida!
De quem vive pela têta!

         




          21

Tudo parecia bem
Mas na medida do possível
Atrás do pobre um bicho tem
A cada dia mais horrível
Dessa vez foi a espora
Que me traiu insensível

        
             22

Vosmecê me acredita
A espora prendeu a tuaia
Quando eu sortei a passada
Eta peste, que navaia!
Foi-se a loiça portuguesa
Num estampido de calha

             23

Todo mundo se assustou
Meu santo foi incremente
Um silêncio arrebatou
E o patrão nada contente:
Pega o cabra! Mata o bicho!
Mas eu já tava era arzente

           
         24

Pulei por um janelão
Que dava lá pro currar
Repleto de barbatão
Me arremeçando ao quintar
Eu fugi sem deixar rastro
Cuma boi foge do pasto
E fogo em canaviar

             25

Com um patrão enfurecido
Deixei a sorte pra trás
Vi um mundo dividido
Entre quem manda e quem faz
Contradição estampida
Na mão de quem pode mais

            

        26

Hoje a nossa vaquejada
Parece virou esporte
Mas pegar boi nas quebrada
Ainda exige outro norte
Peguei e atraquei à risca
Pra mode o fio do patrão
Mostrar a raça na pista

          27

No espinho da caatinga
Eu faço o balanceado
Nem preciso de mandiga
Bem conheço esse traçado
Pois sou o 101 da tropa
Desse relato apocado.
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Picos - PI, Novembro de 2011
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*Francelina Macedo, poetisa, professora, está bacharelando-se em Direito, membro da Academia de Letras das Região de Picos - ALERP, de cuja entidade foi Presidente. Mora em Picos - PI.

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