terça-feira, 21 de outubro de 2014

DOUTORES DA ALMA


 Por Paulo Briguet

  Paulo  Briguet - o 1º à esquerda







Ao longo da história, uma fascinante galeria de escritores e personagens mantém viva a relação entre medicina e literatura.

Diz a lenda que Balzac, no leito de morte, pediu a presença de um médico: “Só Bianchon poderia me salvar!” Mas o Dr. Bianchon não existia na vida real; era um personagem de “A Comédia Humana”.

A relação entre medicina e literatura tem raízes profundas no tempo. Não por acaso, o conjunto de relatos sobre a ciência da cura leva o nome de “literatura médica”. Talvez se pudesse falar não de uma simples relação, mas de uma autêntica irmandade entre os médicos e os escritores – até porque ambos, nos momentos decisivos de seu trabalho, percorrem os extremos da vida e morte.

A medicina nasceu do curandeirismo religioso, mais tarde foi considerada uma arte e, nos tempos modernos, vinculou-se à ciência. Mas nunca se afastou de sua irmã, a literatura. Se a palavra “médico” tem origem na mediação entre o humano e o divino, o mesmo se poderia dizer da poesia, da ficção, do ensaio, da escrita literária. Continuamos a consultar um bom livro assim como procuramos um bom médico na hora da doença.
Como esquecer Yuri Jivago, o médico poeta que passa pelas tormentas da Revolução Russa em busca de seu amor? “Doutor Jivago”, de Boris Pasternak, é o clássico de uma civilização doente da alma. Doença que teve seus primeiros sintomas no radicalismo político de Yevgeny Bazárov, o jovem doutor que tenta curar o mundo e acaba se autodestruindo em “Pais e Filhos”, romance de Ivan Turguêniev. É curioso que os russos Pasternak e Turguêniev, mesmo não sendo médicos, tenham escolhido a mesma profissão para os personagens centrais de seus mais famosos romances.

“O estranho caso de dr. Jekyll e mr. Hyde”, do escocês Robert Louis Stevenson, publicado em 1886, mostra a dicotomia do bem e mal presentes no espírito humano. A novela, mais conhecida pelo título “O Médico e o Monstro”, pode ser definida como a descrição de um caso patológico em que um homem utiliza irrefletidamente os recursos da ciência e acaba despertando incontroláveis impulsos de morte. O mesmo acontece com o Dr. Simão Bacamarte, psiquiatra da novela “O Alienista”. Em sua busca pela sanidade mental coletiva, o personagem de Machado de Assis transforma a cidade de Itaguaí em um hospício e acaba por descobrir que é o verdadeiro louco da história.

Mas falemos dos médicos diplomados, que existiram na vida real. Dr. João Guimarães Rosa percorreu as fazendas e povoados do Sertão brasileiro conversando com as pessoas e observando de perto os dramas da vida. Numa dessas andanças, deve ter encontrado alguém parecido com Miguilim, o menino da novela “Campo Geral” que passa a enxergar o mundo de outra maneira depois de colocar os óculos do doutor. Dr. Pedro Nava foi o maior memorialista brasileiro. Com seu olho clínico, deixou-nos obras-primas como “Baú de Ossos”, “Balão Cativo” e “O Círio Perfeito”.
Dr. São Lucas, padroeiro da medicina, reflete uma nova visão do universo em sua narrativa segura e poética no Evangelho que leva seu nome e no Livro dos Atos. Sua grande fonte inspiradora foi Maria, a Mãe de Jesus, aquela que o poeta T. S. Eliot (não médico) define em certa altura dos “Quatro Quartetos” como a cirurgiã da humanidade.

O francês Céline, codinome do Dr. Louis-Ferdinand Destouches, padeceu de uma das piores doenças morais de nosso tempo: o antissemitismo. Era, no entanto, considerado por seus pacientes um médico sereno e consciencioso. Felizmente, o fantasma da sua hediondez ideológica não compromete a genialidade de suas duas obras-primas, os romances “Viagem ao fim da noite” e “Morte a crédito”.
Dr. William Somerset Maugham legou-nos um grande romance: “Servidão Humana”. O autor inglês formou-se em medicina, mas trocou a carreira médica pela literatura. Em “Servidão Humana”, descreve a paixão de um jovem doutor por uma mulher de caráter perverso, e sua guerra para obter a libertação com o trabalho e a humildade. A obra tem fortes elementos autobiográficos.
Quando se pensou em dar um Nobel ao Dr. Sigmund Freud, a Academia Sueca ficou na dúvida entre os prêmios de Literatura e Medicina. O médico austríaco, criador da psicanálise, acabou não ganhando nenhum Nobel, mas deixou uma obra de grande valor literário. “Psicopatologia da vida cotidiana” é um delicioso e bem-humorado livro sobre as falhas e enganos que cometemos em nosso dia a dia. “O mal-estar da civilização” descreve a patologia social do totalitarismo. E “A Interpretação dos Sonhos” é um livro escrito com uma argúcia digna de José, personagem do Antigo Testamento. Freud considerava-se um homem de ciência, mas acima de tudo foi um grande escritor. Como também foi um grande escritor o Dr. Viktor Frankl, sobrevivente do nazismo que desenvolveu a escola psicanalítica da logoterapia a partir de suas experiências no campo de concentração. Dr. Oliver Sacks é exemplo de autor contemporâneo que transforma suas experiências clínicas em boa literatura.
Naturalmente, a experiência pessoal é um divisor de águas entre a medicina e a literatura. Nos anos 40, o americano Walker Percy estava para se formar em medicina quando teve diagnosticada uma tuberculose. No período de internação, leu obras de Dostoiévski (filho de médico), Jaspers (médico), Heidegger, Camus e Kierkegaard. Converteu-se ao catolicismo e deixou belos romances como “A Segunda Vinda”.

No Brasil, terra do romancista José Geraldo Vieira e do contista Moacyr Scliar, devemos um agradecimento especial a um médico que jamais exerceu a profissão: Manuel Antônio de Almeida. E o agradecimento se deve a dois motivos. Além de escrever o romance “Memórias de um Sargento de Milícias”, magnífica descrição do Rio de Janeiro antigo, Almeida ajudou bastante, no início da carreira, o jovem e talentoso Joaquim Maria Machado de Assis, dando-lhe um emprego na Tipografia Nacional.

Não poderia encerrar este artigo sem mencionar o meu médico-escritor preferido: o russo Anton Tchekhov, genial contista e dramaturgo que viveu apenas 44 anos. Sempre converso sobre Tchekhov com meu amigo e cardiologista Marco Antonio Fabiani, fiel tchekhoviano que escreve contos sobre o velho Norte do Paraná. Fechemos o texto com uma bela frase Dr. Tchekhov: “Não me diga que a Lua está brilhando; mostre-me o seu reflexo em um caco de vidro”.

“A única coisa que um homem pode fazer à sua vida é medi-la. Se o pudermos medir, torna-se uma verdade. Assim na ciência. Assim na poesia. Assim na vida.” (William Carlos Williams, poeta e médico americano)
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*Enviado por e-mail, pelo médico e poeta Dr. Gisleno Feitosa

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