“O orvalho vem caindo, vai molhar o meu chapéu,
e também vão sumindo, as estrelas lá do céu,
Tenho passado tão mal,
A minha cama é uma folha de jornal”.
Neste ano, 2010, o mundo celebra o nascimento de muitos vultos que, com suas obras e criações transformaram a música, as artes e a literatura em benefício da humanidade. Nós, brasileiros, tivemos o privilégio de comemorarmos o centenário de nascimento de grandes personalidades. Lembraria os escritores Aurélio Buarque de Hollanda e Rachel de Queiroz. Na música popular brasileira o ano de 1910 foi prodígio com o nascimento de Custódio Mesquita, Luiz Barbosa, Vadico, Renê Bittencourt, Adoniram Barbosa e Noel Rosa. Este último, agora, ilustre homenageado neste ensaio literário.
Nosso compositor, Chico Buarque de Hollanda, considerado por muitos como o maior da Música Popular Brasileira, não se cansa de dizer que deve muito da sua inspiração e estilo musical a admiração que sempre nutriu pela obra do Poeta da Vila. Considera-se um discípulo do maior compositor da década de 1930. Não são poucos os compositores e cantores brasileiros que veneram a obra e o talento de Noel Rosa. Com suas composições que cantam o cotidiano, o linguajar do povo, o amor, a paixão, a fome, a falta de dinheiro, os conflitos amorosos e sociais e os maus governos, ele permanece atualíssimo neste século.
Noel de Medeiros Rosa nasceu em 11.12.1910, em Vila Isabel, no Rio de Janeiro, morando sempre na mesma casa, bairro que se tornou célebre através de suas músicas. Era filho de Manuel Garcia de Medeiros Rosa e Martha de Medeiros Rosa. Sua mãe teve um parto forçado e o médico precisou usar fórceps, o que teria causado seu problema no queixo, pouco proeminente. Carregou pelo resto de sua vida as marcas que lhe causara fratura e afundamento do maxilar inferior, além de ligeira paralisia facial no lado direito do rosto, o qual acentuava nas suas autocaricaturas. Porém, mais profunda que a deformação física, seria a de formação no espírito do garoto. Noel carregaria um grande complexo. A linha reta que une seu pescoço ao lábio inferior, quase sem a presença do queixo, seria responsável por várias amarguras que o acompanhara por todos os caminhos da vida. Noel cresceu franzino, doentio e feio, sendoum pouco desprezado por seus colegas da época, por não apresentar uma razoável beleza física. Apesar dessas dificuldades de acessibilidade perante a turma, chegando aos treze anos a ser apelidado de “Queixinho”, desde a adolescência interessou-se pela música e posteriormente pela vida boêmia. Já frequentava ambientes musicais e as famosas rodas de samba. De família de classe média estudou no tradicional Colégio São Bento. Já na adolescência aprendeu a tocar bandolim de ouvido, com a mãe, e violão com o pai, fato marcante em sua vida, pois a partir daí, percebera que a sua grande habilidade instrumental tornava-o importante diante de outras pessoas, compensando a sua timidez e seu preconceito.
Aos dezessete anos de idade criou juntamente com os compositores Almirante (Henrique Foréis Domingues – Rio de Janeiro-RJ - 19.02.1908 – 22.12.1980) e Braguinha (Carlos Alberto Ferreira Braga, pseudônimo João de Barro – Rio de Janeiro-RJ - 29.03.1907 – 24.12.2006), o Bando dos Tangarás, com relativo sucesso.
Não desprezando os estudos entrou para a Faculdade Nacional de Medicina em 1930, que abandonou dois anos depois, sem, no entanto, abandonar o violão e a boemia. No ano seguinte, conheceu seu primeiro grande sucesso musical intitulado Com que roupa? Foi apresentado em espetáculos do Cinema Eldorado. Com esta gravação já se podia notar seu lado humorístico e irônico, além da crônica da vida e do povo carioca, marcante em toda a sua vasta e diversificada obra.
Como sabiamente disse o estudioso e crítico musical, José Ramos Tinhorão, Noel Rosa: “Exaltou na temática da música popular brasileira, a angústia da metafísica amorosa (Último desejo), a exploração do aspecto social (O orvalho vem caindo) e a mais viva caracterização de tipos populares (Conversa de botequim)”.
A partir deste sucesso, Noel Rosa tornou-se um compositor extraordinariamente criativo e desenvolveu uma carreira vertiginosa, com aproximadamente 259 composições gravadas, das trezentas produzidas, entre sambas-canções, sambas e marchinhas. É claro que compôs com dezenas de grandes parceiros que deixaram, para a posteridade, um sem-número de obras-primas na Música Popular Brasileira.
O seu parceiro mais constante, com quem dividiu seus maiores êxitos foi Vadico (Oswaldo Gogliano – Rio de Janeiro – 24.06.1910 – 11.06.1962). Também compôs com João de Barro (Braguinha), Heitor dos Prazeres, Ismael Silva, Lamartine Babo, Orestes Barbosa, entre outros.
Na década de 1930 quando foram compostos os grandes sucessos Feitiço da Vila, Filosofia, Fita amarela, Gago apaixonado, O x do problema, Palpite infeliz e Pra que mentir, era normal se vender composições musicais, dividindo-se o prestígio e o sucesso com os cantores que as interpretariam, gravando-as em seus discos fonográficos de vinil plástico. Noel Rosa vendera algumas de suas músicas para outros intérpretes, tornando-se conhecido no rádio, pelas vozes de cantores como Mário Reis, Francisco Alves, Marília Batista e Aracy de Almeida.
Noel Rosa foi sempre frágil e constantemente apresentava alguma doença. Apesar de fortes problemas pulmonares, não largava a bebida, o cigarro e a boemia, com bom humor e ironia, formulou uma teoria a respeito do consumo de cerveja gelada.
A partir de 1933 travou a famosa polêmica musical com o compositor Wilson Batista, em torno da qual seriam produzidos diversos sambas famosos: Lenço no pescoço (Wilson Batista) fazia a apologia do sambista malandro, imagem que Noel contestou com Rapaz folgado. Wilson Batista retrucou com Mocinho da Vila, encerrando a primeira fase da polêmica, que continuou depois de algum tempo com novos sambas de parte a parte. Depois, foi lançada a música Conversa fiada respondendo ao seu Feitiço da Vila (com Vadico), de 1934. Noel contra-atacou com Palpite infeliz (1935), mas não respondeu a dois outros sambas de Wilson, Frankenstein da Vila e Terra de cego. No final, os dois se tornaram amigos e a música popular brasileira só teve a ganhar com essa discussão musical.
Na música, as décadas de 1930/1950 tiveram seu auge e foram consideradas como a famosa “Época de Ouro” da música popular brasileira. Um período fértil neste campo com o surgimento de grandes expoentes, do quilate de um Pixinguinha, Luiz Peixoto, Freire Júnior, Ary Barroso, Lamartine Babo, Ataulfo Alves, Ismael Silva, Almirante, Assis Valente, Custódio Mesquita, Mário Reis, Joubert de Carvalho, Francisco Alves, Haroldo Barbosa, Nássara, Lupicínio Rodrigues, Herivelto Martins, Silvio Caldas, David Nasser, João de Barro, entre outros. Mais tarde, deram continuidade a esta safra de grandes sucessos: Dorival Caymmi, Adelino Moreira, Antônio Carlos Jobim, Vinicius de Moraes, Evaldo Gouveia e Jair Amorim, Chico Buarque de Holanda, Geraldo Vandré, Roberto e Erasmo Carlos etc.
Em 1934, Noel excursionou com Benedito Lacerda, Russo do Pandeiro, Canhoto e outros componentes do grupo Gente do Morro. De volta ao Rio de Janeiro, em junho conheceu num cabaré da Lapa a dançarina Ceci (Juraci Correia de Araújo), com 16 anos, a grande paixão de sua vida e a inspiradora de muitos sambas como: Pra que mentir, O maior castigo, só pode ser você, Quantos beijos e Cem mil réis (todas com Vadico) e Quem ri melhor, Dama do cabaré e Último desejo. No mesmo ano a marcha Linda pequena (com João de Barro) foi gravada por João Petra de Barros. Curiosamente, a mesma música, com a letra ligeiramente alterada por João de Barro, foi gravada depois por Sílvio Caldas com o nome de Pastorinhas, vencendo o concurso carnavalesco de 1938, promovido pela Prefeitura do então Distrito Federal.
Apesar da notória paixão por esta moça de nome Ceci, dançarina nos cabarés da Lapa, Noel casou-se com outra jovem chamada Lindaura Pereira da Mota, em 1º de dezembro de 1934. Essa união não alterou em nada sua vida boêmia e as noitadas na Lapa, que acabaram por comprometer sua saúde. No final deste ano, a sua esposa Lindaura teve uma gestação interrompida, ao cair de uma árvore no quintal de sua casa, perdendo a criança prematuramente.
No ano seguinte, doente de tuberculose, com a colaboração dos amigos viajou com a esposa, passando uma temporada em Belo Horizonte, em busca de tratamento, por sugestão do seu médico, Dr. Graça Melo. Mesmo após o tratamento de saúde, continuou levando uma vida desregrada, tocando nos bares, bebendo e fumando, pois Belo Horizonte também tinha emissoras de rádio, cafés, botequins, cervejas e gente querendo ouvir Noel tocar e cantar suas lindas canções.
Então, porque não retomar a vida antiga? Retornou ao Rio de Janeiro, sabendo da gravidade da sua saúde e do pouco tempo que lhe restava, conforme havia previsto Doutor Graça Melo. Para Noel era o suficiente, preferia dois anos bem vividos a sobreviver sem cigarros, bebidas, mulheres e samba. Em novembro de 1936 surgiu-lhe um doloroso abscesso na face esquerda, tendo sido operado pelo dentista, Bruno de Morais, seu vizinho.
Necessitava novamente dos ares e da tranquilidade da serra. E precisava novamente da ajuda dos amigos para poder viajar. Em janeiro de 1937 foi para Nova Friburgo-RJ, mas voltou vinte dias depois, por causa do frio. Teve que retornar ao Rio, desta vez, já muito doente, fraco e sem ânimo para a boêmia, estando alheio mesmo ao carnaval, sua festa preferida. Em abril, mais uma viagem, agora, para Barra do Piraí. A 1º de maio, visitando a represa do Ribeirão das Lajes, Noel sentiu violentos arrepios de frio, sobreveio a febre e a hemoptise. Estava chegando ao fim. Dia 04 de maio, antes de morrer disse: “Estou me sentido mal. Quero virar para o outro lado”. Em seguida, seu coração parou.
Noel Rosa criou boa parte de suas músicas em parceria com grandes compositores nacionais. Seus principais sucessos são eternos, gravados e regravados até hoje por vários cantores brasileiros. Podemos relembrar as seguintes músicas, seus parceiros e respectivos anos que foram gravadas: Com que roupa?, Noel Rosa, 1929; Minha viola, Noel Rosa, 1929; Gago apaixonado, Noel Rosa, 1930; Quem dá mais?, Noel Rosa, 1930; Adeus, com Ismael Silva e Francisco Alves, 1931; A.E.I.O.U., com Lamartine Babo, 1931; Coração, Noel Rosa, 1932; Fita amarela, Noel Rosa, 1932; Onde está a honestidade?, com Kid Pepe,1932; Para me livrar do mal, com Ismael Silva, 1932; Até amanhã, Noel Rosa, 1932; Três apitos, Noel Rosa, 1933; Feitio de oração, com Vadico, 1933; Positivismo, com Orestes Barbosa, 1933; Não tem tradução, Noel Rosa, 1933; Cor de cinza, Noel Rosa, 1933; Filosofia, com André Filho, 1933; Quando o samba acabou, Noel Rosa, 1933; O orvalho vem caindo, com Kid Pepe, 1933; Você só...mente, com Hélio Rosa, 1933; Dama do cabaré, Noel Rosa, 1934; Pastorinhas, com João de Barro, 1934; Conversa de botequim, com Vadico, 1935; Palpite infeliz, Noel Rosa, 1935; Linda pequena, com João de Barro, 1935; Pierrô apaixonado, com Heitor dos Prazeres, 1935; Pela décima vez, Noel Rosa, 1935; João Ninguém, Noel Rosa, 1935; De babado, com João Mina, 1936; É bom parar, com Rubens Soares, 1936; Feitiço da Vila, com Vadico, 1936; Provei, com Vadico, 1936; O x do problema, Noel Rosa, 1936; Quem ri melhor, Noel Rosa, 1936; São coisas nossas, Noel Rosa, 1936; Tarzan, o filho do alfaiate, Noel Rosa, 1936; Pra que mentir, com Vadico, 1937; Último desejo, Noel Rosa, 1937.
A trajetória de Noel teve um duplo caminho. O lado doentio e trágico, de sua vida pessoal e o sucesso, a alegria e importância de sua música. Até hoje é eternizado com suas criações musicais, considerado o maior poeta cosmopolita e de maior produção musical no curto prazo de existência. É um mito consagrado no imaginário popular e suas músicas fazem coro na memória das pessoas, principalmente na história da MPB.
A vida boêmia do poeta comprova que ele deixava versos e bilhetes de amor presos às cordas do violão, para que as namoradas os encontrassem pela manhã, quando ele ainda não havia chegado em casa, vindo da noite de boemia.
Gostava tanto das noitadas e da boemia que, misturadas ao álcool e ao fumo, foram alguns dos responsáveis por seus pulmões perfurados pela tuberculose, que acabaria levando-o à morte. Sua criação não requeria uma condição especial. À noite, a bebida e a poesia iam se misturando e se transformando em canções. Sua música não pedia estados de torpor, adormecimento ou euforia. Seus elementos eram outros. E, talvez, tivessem como únicos requisitos o lugar: era na rua que eles surgiam e era nos botequins que eles cresciam e ganhavam a cidade.
A vida irresponsável que Noel levava naquele tempo estimulava a sua criação, pois a música, o lirismo e a poesia brotavam espontaneamente. Suas letras, com humor e ironia eram criadas de improviso. Considerava isso uma atividade tão corriqueira quanto conversar com os amigos. Suas criações iniciavam-se cantarolando numa mesa de bar, as palavras iam se misturando aos sons e pronto! Mais um samba estava terminado. E que samba!
Na verdade, Noel Rosa ditou os rumos da Música Popular Brasileira. Cantou o cotidiano, o povo, a cidade e seus costumes, colocando na medida exata, o peso da poesia nas suas composições. Tudo o que aconteceria em nossa música nas décadas seguintes teria, de alguma forma, sua marca ou sua influência.
Quebrou tabus e paradigmas, divulgando o samba urbano, até então restrito ao morro, introduzindo-o em todas as classes sociais. Sua poesia musicada encantou o Brasil.
Em fevereiro de 1937, encontrava-se em Nova Friburgo-RJ, em busca de melhores climas para curar sua tuberculose. Apesar da doença, apresentou-se no cinema local e frequentava os bares da cidade. De volta ao Rio de Janeiro, em março, compôs Último desejo e logo em seguida o samba Eu sei sofrer sua última composição, gravada por Aracy de Almeida e Benedito Lacerda, exatamente no dia de sua morte.
No ano seguinte, foi lançada a gravação do samba Último desejo, feita por Aracy de Almeida no ano anterior, sem que o compositor chegasse a ouvir a gravação de uma de suas obras mais célebres, cuja partitura foi ditada no leito de morte para o seu amigo e parceiro Vadico.
Noel Rosa foi homenageado com dois filmes: O Mandarim, onde Chico Buarque de Hollanda faz o papel principal, e Noel - O poeta da Vila. Na literatura tem dois livros que contam a sua história: Noel Rosa – Uma biografia, escrito por João Máximo e Carlos Didier e No tempo de Noel Rosa, da autoria de Almirante. No teatro foi apresentada a peça O Poeta da Vila e seus amores. Não resta a menor dúvida (com Hervê Cordovil) e Pierrô apaixonado (com Heitor dos Prazeres) foram incluídas na trilha sonora do filme Alô, alô, Carnaval, de Ademar Gonzaga. O Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos de Vila Isabel dedicou o samba-enredo do Carnaval de 2010, “Noel: a presença do Poeta da Vila”, de autoria do sambista Martinho da Vila, ao mais famoso compositor nascido naquele bairro. Ruas, praças e monumentos dão nome ao grande artista em todo o País.
O Poeta da Vila teve sua obra resgatada com gravações de grandes sucessos na voz de Nelson Gonçalves, Chico Buarque e Cristina Buarque, João Nogueira, Beth Carvalho, Maria Bethânia, Ivan Lins, Zé Renato e dezenas de outros intérpretes.
Noel tinha apenas 26 anos, quatro meses e vinte e três dias quando faleceu em sua casa, no bairro de Vila Isabel, Rio de Janeiro, em 04.05.1937. Deixou 259 composições gravadas, sem contabilizar as músicas que vendeu. Na história da Música Popular Brasileira nenhum compositor produziu igual número de sucessos em tão curto espaço de tempo, aproximadamente seis anos de atividade musical. Dificilmente será igualado. Apenas no ano de 1933 teve mais de trinta composições gravadas. Um verdadeiro recorde.
Certamente, lá no Céu, Noel continua fazendo a festa, com suas pitadas de humor e gozações, juntamente com seus maiores amigos, compositores ilustres da sua geração, grandes expoentes da saudosa Época de Ouro da Música Popular Brasileira.
___________________
*João Erismá de Moura é Advogado, Pedagogo, Auditor Federal de Controle Externo do TCU, aposentado, Acadêmico e Escritor, pioneiro residindo em Brasília desde 13.07.1962. Escreve crônicas e publicou três livros do gênero.
Nenhum comentário:
Postar um comentário