quarta-feira, 25 de agosto de 2010

REFÚGIO

CONTO INÉDITO

Vera Vanessa*
   

Lygia encostou a bicicleta na parede e correu pelo terraço trajando um vestido azul já gasto pelo tempo. Nos braços, as mangas traziam babados de filó que davam um ar infantil à menina. E no peito esquerdo, uma flor vermelha mudava de proporção, à medida em que ela respirava.
            Parou na entrada da casa e limpou a boca com as costas das mãos e bateu com os pés no assoalho. Era o sinal.
    - Chegou cedo hoje – disse a idosa.
    A menina hesitou e atropelando a possível pergunta da avó, foi tratando de dizer que a aula terminou mais cedo. Sabia que levaria um sermão se dissesse que pediu para ir para casa antes do sinal bater.
    - O Neco fugiu?
    - Neco? A velhinha perguntou espantada.
    - É. O gatinho.
    - Não. Deve estar dormindo. Já procurou embaixo da cama?
    - Vou ver. Disse a menina e saiu.
    Esquecera o nome do gato. Mais essa! E Neco, que nome engraçado! Onde ele estaria? Um pavor a invadiu, de súbito. Os ratos voltariam. Há uma semana que ela não encontrava um sequer, e isso a acalmava. A respiração ficou descompassada ao lembrar-se daqueles animais de pelos curtos e acinzentados a percorrerem sua casa.
    - Ele não está lá. Disse Lygia enxugando a testa.
    - Será que fugiu? Que não gosta de mim?
    - Os gatos gostam de todo mundo, vovó.
    Aquilo atingiu sua vaidade. Depois que envelhece a pessoa perde a individualidade? Todo aquele charminho que o bichano fazia era farsa? Traiçoeiros. Mereciam a fama.
    - Olhe!
    O corpinho magro da mulher virou-se rapidamente e um sorriso exibindo os dentes brancos e bem cuidados escapou de seu rosto. Uma lágrima tímida escorreu-lhe pela face esgueirando-se e indo se fixar no cabelo da menina que a esta hora a abraçava acariciando-lhe e olhando o gatinho que lentamente se desviava dos vasos de plantas e caminhava em sua direção.
    - Ele não vai mais sair de casa.
    - Vovó!
    - Ora! Ele some, eu fico preocupada. Vai que um dia ele não volta? A fisionomia envelhecida contraiu-se e a menina não pôde perceber que a doçura ainda permanecia ali, na lacuna do silêncio.
            - E os muros são altos. E se ele errar o caminho de casa, se alguém maltratá-lo? – Ela não conseguia esconder o temor de ficar sozinha.
            - Os gatos não se perdem, e sempre caem em pé. A frase saiu atropelada pela vontade de acalmar a avó, que levantando-se da cadeira seguiu para o quarto. Logo à entrada percebia-se o capricho na organização e disposição dos poucos móveis que compunham o singelo visual do cômodo.
            Inclinando-se, a inveterada desfez as dobras da colcha da cama e sentou-se encarando o guarda-roupa.
            - Herdei este móvel da minha mãe. A menina, que alisava os cabelos da companheira como que desejando saber que pensamentos a dominavam, não ouviu.
            - Você vai esquecer-se de mim.
    - O que é isso, vovó? Quis encará-la e os olhos cansados permaneceram fechados por alguns segundos. A neta tocou-lhe as têmporas e deixou-se cair no leito. Procurou a causa deste medo repentino que atingia aquela que desde suas primeiras lembranças era só carinho e dedicação a quem tão pouco conhecia da vida.
    Ficaram abraçadas enquanto na rua os carros cortavam o asfalto e seguiam sua rotina. O barulho que atravessava as paredes e chegava ao aposento lhes era indiferente. Estavam protegidas, seguras e envolvidas pelo carinho que as unia.


    - Verei se encontro uma roupa.
    E a anciã levantou-se, abriu as duas portas do meio e com pressa, ia passando de um lado para o outro os vestidos de cores suaves. Era tudo tão cuidadosamente organizado. Ao encostar a mão no vestido que ela mais gostava, parou e disse algo que certamente era para ter ficado no pensamento e que a neta não entendeu.
    - A senhora irá para onde?
    - Trabalhar.
    Lygia foi até ela e mentiu dizendo-lhe que era feriado.
    A senhora deteve o olhar na porta entreaberta e segurando a mão da neta, levou-a consigo para o quintal. Não era a primeira vez que a menina era surpreendida pela perda de lucidez da avó. Andaram olhando as mangas verdes que pendiam dos galhos e o céu azul que desenhava aquela manhã de setembro.
    Gostava destes momentos. Era a melhor parte da sua vida de menina de dezessete anos. Sentia-se só, no meio das amigas do colégio. As palavras, as conversas de sempre eram insuficientes. Não queria ficar com eles porque tinha que ficar com eles. Precisava de um motivo maior. E a avó era esse motivo.
    Beijou-a no rosto e despediu-se dizendo que voltaria no dia seguinte. Abriu a porta da sala sem olhar para trás e pulou na bicicleta pedalando com a rapidez típica de quem quer fugir mais de si que dos outros.
    Não parou nas esquinas, não viu sinais, não desviou dos buracos na rua, não descansou as pernas. O bairro parecia gigantesco e desabitado. Um latido ao longe atraiu o seu olhar úmido e como não viu o cachorro, retomou o seu rumo. As casas eram desenhos mal-feitos. As árvores, corpos desajeitados em desequilíbrio, com seus balanços de folhas. Uma ave pousou a alguns metros dali, e a menina puxou o freio da bicicleta.
    O cansaço veio e junto com ele, a noção de que ela estava longe de casa. Precisava voltar. Era seu aniversário.

__________________
*Vera Vanessa, a autora, ainda é muito jovem, cursa História,  na UESPI, 8º bloco, Campus de Teresina. Tem talento para as letras, aqui nasce uma contista.

Um comentário:

CHIICO MIGUEL disse...

Vera,
minha inteligente amiga:

A matéria que você mandou é ótima. Você pode, das próximas vez, ir encurtando. O espaço do jornal server para divulgar mas também é um exercício do "escrever, apenas o necessário, sem castigar o leitor com algumas palavras e perorações que, talvez em livro, se possa condiderar mas no jornal não. O leitor de jornal é um leitor de pocus minutos para ler muito.Aguarde, vou levar ao jornal.
Abraços
Chico Miguel

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