Cunha e Silva Filho*
Da última vez em que estive em Teresina levei comigo alguns livros de autores piauienses. Entre esses livros, havia um, Tempo contra tempo, (Edições Cirandinha, Teresina, 2007 57 p., prefácio de Altevir Alencar), reunião de sonetos, 50 ao todo, escritos por Hardi Filho e Francisco Miguel de Moura. Desnecessário afirmar que a obra, pequena em número de páginas, é trabalho de dois competentes e calejados poetas, cada qual com uma considerável produção no gênero.De caso pensado, os dois poetas quiseram, pela amizade e pelo amor ao verso, testar até que ponto a poesia podia se realizar da seguinte forma: um escreveria um soneto sobre o mesmo tema, que, no caso, é a complexa categoria do tempo, e o outro daria continuidade através de uma gancho deixado pelo parceiro poético. O resultado foi esse conjunto de sonetos bem urdidos gravitando em torno daquele tema.
O fato me faz lembrar o caso de dois dramaturgos ingleses da Renascença, Francis Beaumont (1584-1616) e John Fletcher ( 1579-1625). Eram ambos tão amigos que, por escreverem juntos, o público ledor terminou por confundi-los, não sabendo, ao final, quem escrevia o quê. No caso de Hardi Filho e Francisco Miguel de Moura, não há essa confusão porque cada soneto leva o nome do respectivo poeta. A única coisa que os une são o tema e o recurso intertextual que, de soneto a soneto, vão sempre ligando um poeta ao outro. Não poderíamos defini-los com poemas feitos a quatro mãos justamente por essa diferença.
Na contracapa, há esta afirmação: “Com esta obra os poetas dizem adeus ao século XX e saúdam o novo milênio”. Não há, no entanto, indicação do autor dessa assertiva, mas tudo me leva a supor que também seja da autoria dos dois poetas.
Os autores nada dizem acerca da escolha dessa forma de poema, o soneto, forma fixa tradicional que, ao que me parece, não faz parte considerável dos modos de poetar nos dois autores. Hardi Filho e Miguel de Moura são poetas que não ficaram amarrados ao passado. A poesia em ambos enveredou-se para os caminhos do verso com potencial moderno. Não são, pois, poetas passadistas. Antes, são artistas do verso com o olhar no presente e no futuro. Sã poetas, em síntese, sintonizados com o presente, sobretudo Miguel de Moura. Mas, estabelecer em forma de soneto, um diálogo aberto e, muitas vezes, até irônico ou bem-humorado, com o tempo, não deixa de ser um salutar exercício de experimentação poética e de vigor diante do desafio a que se propuseram. Não vou aqui adentrar considerações em torno dos vários tipos de conceituação filosófica que o tempo tem propiciado aos estudos literários no tratamento da prosa de ficção e no domínio da poético. Tempo da durée réelle bergsoniana, tempo cronológico, tempo psicológico, ucronia, tempo triádico gilbertofreiriano (um presente combinando presente, passado e futuro) etc. O tratamento do tema propiciado pelos dois poetas piauienses (aliás, Miguel de Moura é piauiense, mas Hardi Filho o é por opção, já que escolheu viver no o Piauí embora sendo cearense de nascença) é de natureza mais simples e descomplicada., pois os poemas, em forma de soneto, não pretendem transformar-se em peças poéticas filosóficas. Nada disso. Tampouco suponho que os dois poetas tivessem em mira apenas aprofundar a questão do tempo em versos teórico-filosóficos O livro vale é pelo seu lado dominantemente literário, pela mera experiência lúdica de demonstrar que, à semelhança de outros poeta brasileiros, à frente Manuel Bandeira, o próprio Da Costa e Silva, um poeta contemporâneo, com domínio da técnica do verso tradicional, pode muito bem criar pelo talento as várias formas do verso clássico. Basta querer. Foi o que ambos fizeram nesse livro de leitura agradável e ao mesmo tempo feito com dignidade artesanal. Sairam-se bem da empreitada. Tanto num quanto noutro poeta a elaboração do soneto lembra até o modo dos desafios do repentista. Ou seja, de um aspecto do tema comum e constante de um soneto, mediante o gancho a que me referi atrás, passa a palavra poética para o outro, como no primeiro soneto “Retrato”(p.6). E é esse lexema-título que serve como deixa para o soneto seguinte de Miguel de Moura, “Que é de?”(p.7).
O tema, sempre voltado para a auto-referência de cada poeta, se manterá inalterável até o fim do livro. Aí então é que ambos os poetas se aproveitam do tema para circunscrevê-lo à sua individualidade de ser. Ao longo dos sonetos, os poetas, revezando-se, vão decantar uma espécie de desnudamento pessoal de cada um, com a sua visão particular de olhar para a passagem do tempo, em que a tônica são todos os sinais deixados pelo fluir do tempo em cada ser humano. Nesse sentido, os sonetos assumem uma dimensão universal e visões particulares extrapolam a subjetividade de cada poeta.
É inegável que ambos os poetas se utilizam do soneto para, além da discussão do tempo pessoal (ou universal), o tematizarem metapoeticamente, com neste exemplo de Francisco Miguel de Moura: “Antes que o tempo vença esta batalha/pela paz, pelo amor de cada dia, /vejo que a forma já não me atrapalha/para expressar o ser da poesia” Soneto “Como fazer”, p. 37). Ou est’outro de Hardi Filho: ‘Pois é. Embora a escrita às vezes trema,/ é prazeroso versejar em cima/de tão profundo e interessante tema”. (soneto “Sonetear”,p.34).
Confesso que, ora lendo, no revezamento da sequência, os dois poetas, embora sinta as diferenças de estilos e de perspectivas da visão do tema comum aos dois, sinto uma inequívoca unidade nas duas vozes poéticas que, nessa espécie de “contrato’ de criação literária, terminam por unificar diversidade de temperamentos de poeta numa unidade de harmonia de ritmos, de métrica e de rimas, dando a sensação lúdica de que estamos lendo um livro bem acabado e sobretudo realizado com seriedade e amor à Poesia.
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*Cunha e Silva Filho, piauiense, escritor tradutor e crítico literário, professor do ensino universitário, no Rio de Janeiro, onde mora.
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Copiado do blog http://as idéias no tempo
O fato me faz lembrar o caso de dois dramaturgos ingleses da Renascença, Francis Beaumont (1584-1616) e John Fletcher ( 1579-1625). Eram ambos tão amigos que, por escreverem juntos, o público ledor terminou por confundi-los, não sabendo, ao final, quem escrevia o quê. No caso de Hardi Filho e Francisco Miguel de Moura, não há essa confusão porque cada soneto leva o nome do respectivo poeta. A única coisa que os une são o tema e o recurso intertextual que, de soneto a soneto, vão sempre ligando um poeta ao outro. Não poderíamos defini-los com poemas feitos a quatro mãos justamente por essa diferença.
Na contracapa, há esta afirmação: “Com esta obra os poetas dizem adeus ao século XX e saúdam o novo milênio”. Não há, no entanto, indicação do autor dessa assertiva, mas tudo me leva a supor que também seja da autoria dos dois poetas.
Os autores nada dizem acerca da escolha dessa forma de poema, o soneto, forma fixa tradicional que, ao que me parece, não faz parte considerável dos modos de poetar nos dois autores. Hardi Filho e Miguel de Moura são poetas que não ficaram amarrados ao passado. A poesia em ambos enveredou-se para os caminhos do verso com potencial moderno. Não são, pois, poetas passadistas. Antes, são artistas do verso com o olhar no presente e no futuro. Sã poetas, em síntese, sintonizados com o presente, sobretudo Miguel de Moura. Mas, estabelecer em forma de soneto, um diálogo aberto e, muitas vezes, até irônico ou bem-humorado, com o tempo, não deixa de ser um salutar exercício de experimentação poética e de vigor diante do desafio a que se propuseram. Não vou aqui adentrar considerações em torno dos vários tipos de conceituação filosófica que o tempo tem propiciado aos estudos literários no tratamento da prosa de ficção e no domínio da poético. Tempo da durée réelle bergsoniana, tempo cronológico, tempo psicológico, ucronia, tempo triádico gilbertofreiriano (um presente combinando presente, passado e futuro) etc. O tratamento do tema propiciado pelos dois poetas piauienses (aliás, Miguel de Moura é piauiense, mas Hardi Filho o é por opção, já que escolheu viver no o Piauí embora sendo cearense de nascença) é de natureza mais simples e descomplicada., pois os poemas, em forma de soneto, não pretendem transformar-se em peças poéticas filosóficas. Nada disso. Tampouco suponho que os dois poetas tivessem em mira apenas aprofundar a questão do tempo em versos teórico-filosóficos O livro vale é pelo seu lado dominantemente literário, pela mera experiência lúdica de demonstrar que, à semelhança de outros poeta brasileiros, à frente Manuel Bandeira, o próprio Da Costa e Silva, um poeta contemporâneo, com domínio da técnica do verso tradicional, pode muito bem criar pelo talento as várias formas do verso clássico. Basta querer. Foi o que ambos fizeram nesse livro de leitura agradável e ao mesmo tempo feito com dignidade artesanal. Sairam-se bem da empreitada. Tanto num quanto noutro poeta a elaboração do soneto lembra até o modo dos desafios do repentista. Ou seja, de um aspecto do tema comum e constante de um soneto, mediante o gancho a que me referi atrás, passa a palavra poética para o outro, como no primeiro soneto “Retrato”(p.6). E é esse lexema-título que serve como deixa para o soneto seguinte de Miguel de Moura, “Que é de?”(p.7).
O tema, sempre voltado para a auto-referência de cada poeta, se manterá inalterável até o fim do livro. Aí então é que ambos os poetas se aproveitam do tema para circunscrevê-lo à sua individualidade de ser. Ao longo dos sonetos, os poetas, revezando-se, vão decantar uma espécie de desnudamento pessoal de cada um, com a sua visão particular de olhar para a passagem do tempo, em que a tônica são todos os sinais deixados pelo fluir do tempo em cada ser humano. Nesse sentido, os sonetos assumem uma dimensão universal e visões particulares extrapolam a subjetividade de cada poeta.
É inegável que ambos os poetas se utilizam do soneto para, além da discussão do tempo pessoal (ou universal), o tematizarem metapoeticamente, com neste exemplo de Francisco Miguel de Moura: “Antes que o tempo vença esta batalha/pela paz, pelo amor de cada dia, /vejo que a forma já não me atrapalha/para expressar o ser da poesia” Soneto “Como fazer”, p. 37). Ou est’outro de Hardi Filho: ‘Pois é. Embora a escrita às vezes trema,/ é prazeroso versejar em cima/de tão profundo e interessante tema”. (soneto “Sonetear”,p.34).
Confesso que, ora lendo, no revezamento da sequência, os dois poetas, embora sinta as diferenças de estilos e de perspectivas da visão do tema comum aos dois, sinto uma inequívoca unidade nas duas vozes poéticas que, nessa espécie de “contrato’ de criação literária, terminam por unificar diversidade de temperamentos de poeta numa unidade de harmonia de ritmos, de métrica e de rimas, dando a sensação lúdica de que estamos lendo um livro bem acabado e sobretudo realizado com seriedade e amor à Poesia.
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*Cunha e Silva Filho, piauiense, escritor tradutor e crítico literário, professor do ensino universitário, no Rio de Janeiro, onde mora.
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