SELEÇÃO DE SONETOS
E
ORGANIZAÇÃO DA BIOGRAFIA
Francisco Miguel de Moura
Poeta brasileiro
I
EU
Eu sou a que no mundo anda perdida
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida.
Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...
Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...
Sou talvez a visão que alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou.
II
AMIGA
Deixa-me ser a tua amiga, Amor;
A tua amiga só, já que não queres
Que pelo teu amor seja a melhor
A mais triste de todas as mulheres.
Que só, de ti, me venha mágoa e dor
O que me importa a mim?! O que quiseres
É sempre um sonho bom! Seja o que for
Bendito sejas tu por m’o dizeres!
Beija-me as mãos, Amor, devagarinho...
Como se os dois nascêssemos irmãos,
Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho...
Beija-mas bem!... Que fantasia louca
Guardar assim, fechados, nestas mãos,
Os beijos que sonhei pra minha boca...!
III
SILÊNCIO...!
No fadário que é meu, neste penar,
Noite alta, noite escura, noite morta,
Sou o vento que geme e quer entrar,
Sou o vento que vai bater-te à porta...
Vivo longe de ti, mas que me importa?
Se eu já não vivo em mim! Ando a vaguear
Em roda à tua casa, a procurar
Beber-te a voz, apaixonada, absorta!
Estou junto de ti e não me vês...
Quantas vezes no livro que tu lês
Meu olhar se poisou e se perdeu!
Trago-te como um filho nos meus braços!
E na tua casa... Escuta!... Uns leves passos...
Silêncio, meu Amor!... Abre! Sou eu!...
IV
O MAIOR BEM
Este querer-te bem sem me quereres,
Este sofrer por ti constantemente
Andar atrás de ti sem tu me veres
Faria piedade a toda a gente.
Mesmo a beijar-me a tua boca mente...
Quantos sangrentos beijos de mulheres
Poisa na minha a tua boca ardente,
E quanto engano nos seus vãos dizeres!...
Mas que me importa a mim que me não queiras.
Se esta pena, esta dor, estas canseiras,
Este mísero pungir, árduo e profundo
Do teu frio desamor, dos teus desdéns,
E, na vida, o mais alto dos meus bens?
É tudo quanto eu tenho neste mundo?
V
OS MEUS VERSOS
Rasga esses versos que eu te fiz, Amor!
Deita-os ao nada, ao pó ao esquecimento,
Que a cinza os cubra, que os arraste o vento,
Que a tempestade os leve aonde for!
Rasga-os na mente, se os souberes de cor,
Que volte ao nada o nada dum momento.
Julguei-me grande pelo sentimento,
E pelo orgulho ainda sou maior...!
Tanto verso já disse o que eu sonhei!
Tantos penaram já o que eu penei!
Asas que passam, todo o mundo as sente...
Rasga os meus versos... Pobre endoidecida!
Como se um grande amor cá nesta vida
Não fosse o mesmo amor de toda a gente...!
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*FLORBELA ESPANCA nasceu aos 8-12-1894, em Vila Viçosa. Fez o Liceu em Évora e a Faculdade de Direito em Lisboa. Em 1919, publica “Livro de Mágoas”. Em 1923, “Livro de Sóror Saudade”. Em dezembro de 1930, morre e é enterrada em Matozinhos. Em 1931, saem dois de seus livros: em janeiro, “Charneca em Flor”; em dezembro, “Máscaras do Destino”, contos. “Sonetos Completos” inclui um livro póstumo, “Reliquiae”, organizado por Guido Battelli. Sai em 1934 pela Livraria Gonçalves. Essa reunião é que, afinal, consagrou Florbela, tornou-a conhecida. A partir da quarta edição, em 1936, com um estudo de José Régio, extremamente importante para o conhecimento e a consagração da poetisa. Em 1954, seus restos mortais são transladados para Vila Viçosa, terra-berço. Aparentemente é uma poesia de difícil classificação. Modernista pela época em que produziu seus poemas e romântica, pois é toda uma forte expressão do eu, não necessariamente um eu histórico. E é clássica pelo primor na execução do soneto, chegando à altura dos maiores da língua. Singularidade: Explora os mais inusitados recursos sonoros. A poesia de Florbela Espanca inscreve-se mais precisamente na tradição lírica portuguesa do amor inatingível em sua plenitude. Ocorre com a Autora algo semelhante ao que acontece com o magno Camões, onde prepondera o ideal do amor fadado à insatisfação. Florbela Espanca é “... da linhagem dos grandes torturados da época do Simbolismo (Antônio Nobre, Camilo Pessanha, Sá Carneiro). Aparece tardiamente, pois na altura de 1920, chegava ao fim a geração a que se filiaria. Só depois de sua morte começou a crítica mais autorizada (Jorge de Sena, José Régio) a valorizá-la como um das maiores figuras da poesia portuguesa.”.
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