sábado, 20 de dezembro de 2008

UM ALEMÃO 'CAPTURADO' POR MACHADO DE ASSIS


Roberta Pennafort*


O professor alemão Berthold Zilly é destemido. Depois de traduzir para seu idioma o épico “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, o clássico de Lima Barreto, e o cultuado “Lavoura Arcaica”, de Raduan Nassar, além de obras da literatura portuguesa e argentina, ele se debruça sobre “Memorial de Aires”, o último livro de Machado de Assis, lançado dois meses antes de sua morte - e que acaba de completar 100 anos.

Brasilianista, Zilly, que tem formação em literatura alemã, latino-americana e francesa e foi docente convidado da Universidade Federal do Ceará, entre 1978 e 1980, não é tradutor profissional. Ele é movido pelo desejo de possibilitar a seus compatriotas conhecer obras que tem como fundamentais. “Livro é experiência de vida condensada. Você se torna mais inteligente depois de ler um livro esteticamente e humanamente bem-feito”, acredita o acadêmico, que é pesquisador do Instituto Latino-Americano da Universidade Livre de Berlim.

Zilly esteve recentemente no Rio, por ocasião de um congresso de professores de alemão. Aproveitou para visitar, na Academia Brasileira de Letras, a exposição “Machado Vive”, que revela ao visitante não só lances da biografia do fundador da casa, mas também parte de seu mobiliário (a bela mesa de jantar, a cama em que dormia com sua Carolina) e biblioteca, recheada de obras de Victor Hugo e Gonçalves Dias.

Para alguém que está trabalhando o texto de “Memorial de Aires”, considerado autobiográfico, foi bem enriquecedor. Zilly, que começou a aprender português nos anos 60, quando teve uma namorada brasileira, está na fase final da tradução, e quebra a cabeça para encontrar no vernáculo de Goethe palavras que dêem conta das escolhas feitas por Machado um século atrás. Termos como “graça” e “discrição”, cita como exemplos, aparecem na narrativa do conselheiro Aires com vários significados: o primeiro pode conter idéias tão díspares como elegância, dádiva e brincadeira; o segundo, boa educação, honestidade e reserva.

Mas e o que falar da dificuldade de descrever, em alemão, as batalhas de Canudos, que Euclides transformou numa das obras-primas da literatura brasileira? “O desafio de ‘Os Sertões’ são as palavras raras, técnicas e regionais, além da sintaxe extremamente intrincada. Machado é mais acessível, usa praticamente somente palavras corriqueiras, mas o problema é mesmo o uso das palavras com duplo ou triplo sentido”, disse Zilly, que precisou de dez anos para dar cabo da empreitada (tendo de lecionar e pesquisar, não pôde dedicar-se exclusivamente a “Os Sertões”).

Neste período, lembra, dicionários tradicionais, como o de Caldas Aulete e Cândido de Figueiredo, além do “Dicionário de Termos e Expressões Populares”, de Tomé Cabral, e outros especializados em botânica e geologia foram seus melhores amigos

O professor publicou “Krieg im Sertão” em 1994 (a seus conterrâneos, explica sertão como “savana seca”, mantendo a palavra em português). Com 783 páginas - cem só de notas -, o livro saiu pela Suhrkamp, de Frankfurt, a principal editora de autores latinos na Alemanha. Zilly penou cinco anos para conseguir ter a idéia aprovada. Segundo ele, autores de séculos passados e cuja obra não se relaciona com questões caras ao mundo europeu não costumam despertar grande interesse por lá.

Já a ele, o sertão brasileiro, que lhe fora apresentado por Nelson Pereira dos Santos em Vidas Secas, filme ao qual assistiu em 66, sempre pareceu atraente. “Fui várias vezes ao sertão do Ceará e fiquei marcado por aquela paisagem inóspita e agreste. Você fica só e reflete sobre coisas fundamentais da vida. E eu confesso que tem a questão do exotismo também; não tenho vergonha de falar.”

“Memorial de Aires” sai pela Friedenauer Presse, pequena editora de Katharina Wagenbach-Wolff, uma alemã que se encantou pela tradução francesa. Dessa vez, Zilly não precisou convencer ninguém: foi ela quem o procurou, no último Natal, e lhe deu o abacaxi por descascar de presente.

O professor não foi capturado de cara pela história do casal Aguiar, suas dores e amores, descritas no diário de Aires. “Com Euclides minha relação foi de fascínio imediato; com Lima Barreto, simpatizei logo; com ‘Lavoura Arcaica’ também. Mas meu envolvimento com Machado só veio aos poucos. A gente precisa de algum tempo para saborear as sutilezas do estilo e da psicologia”. Ele já visitara o universo do Bruxo com a leitura de “Dom Casmurro”, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Quincas Borba” e daí por diante.

“‘Memorial de Aires’ é sua prosa menos dramática. Machado trata de tudo indiretamente, sem descrever longamente sentimentos e objetos. Ele esboça com pinceladas certeiras a repercussão de eventos e idéias na mente de alguém. É o livro mais machadiano que existe”, considera. Ele traduziu o título como “Tagebuch des Abschieds - Diário da Despedida”. “É a despedida do Brasil monárquico e escravagista e do Rio Antigo, que viria a passar pela Reforma Passos anos depois”, justifica. “E é a despedida do conselheiro Aires e do próprio Machado.”

________________
*Transcrito do Diário de Cuiabá, edição de 20 de dezembro de 2008, artigo d a jornalista Roberta Pennafort, da Agência "Estado".

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...