quarta-feira, 12 de novembro de 2008

MARIO DE ANDRADE - 4 POEMAS


1.

NOTURNO DE BELO HORIZONTE
(Fragmento)

A Serra do Rola-Moça
não tinha esse nome não.

Eles eram do outro lado,
vieram na vila casar.
E atravessaram a Serra,
o noivo com sua noiva,

cada qual no seu cavalo.

Antes que chegasse a noite,
se lembraram de voltar.
Disseram adeus pra todos
e puseram-se de novo
pelos atalhos da Serra,
cada qual no seu cavalo.

Os dois estavam felizes,
na altura tudo era paz,
pelos caminhos estreitos

ele na frente, ela atrás.
E riam. Como eles riam!
Riam até sem razão.

A Serra do Rola-Moça
não tinha esse nome não.

As tribos rubras da tarde

rapidamente fugiam
e apressadas se escondiam
lá embaixo nos socavões,
temendo a noite que vinha.

Porém os dois continuavam
cada qual no seu cavalo,

e riam. Como eles riam!
E os risos também casavam
com as risadas dos cascalhos
que soltos e chocarreiros
do caminho se soltavam
buscando o despenhadeiro.

Ah! Fortuna inviolável!
O casco pisara em falso.
Dão noiva e cavalo um salto
precipitados no abismo.
Nem o baque se escutou.
Faz um silêncio de morte.
Na altura tudo era paz...
Chicoteando o seu cavalo,
no vão do despenhadeiro
o noivo de despenhou.


E a Serra do Rola-Moça
Rola-Moça se chamou.



2.

RECONHECIMENTO DE NÊMESIS
(Março de 1926) Fragmento

Ah! Malvadeza brutaça
ds indivíduos humanos,
ds humanos desta praça!
Ah! homens filhos-da-puta,
gente bem ruim, bem odiando,
homens bem homens, grandiosos
na sua inveja acovardada!
Grandiosos na força bruta.
na estupidez desvelada!
Que heroísmo sem inocência,
o do sujeito esquecendo
do remorso e da conciência!
Oh! força reta, bem homem,
de ser talqualmente os mares,
e os movimentos do mundo!
Perversidades solares
Da magrém! ser mata-pau!
Sucuri, raio, minuano!
Forçura destes humanos,
iguais na perversidade,
iguais na imbecilidade,
na calúnia, iguais no ciúme...!
conscientemente implacáveis!
Imperiais no riso mau...!
Ota, cabra demográfico,
jornaleiro do azedume,
secreção de baço podre,
alma em que a sífilis deu!
Burrice gorda, indiscreta,
veneranda... Homo imbecilis,
invejado pelo poeta...
Viva piolho de galinha!
Eh! homem, bosta de Deus!

3.
EU SOU TREZENTOS

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinqüenta ,
as sensações renascem de si mesmas sem repouso.
Oh espelhos, oh Pirineus! oh caiçaras!
Se um deus morrer, irei ao Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as milhores palavras,
e os suspiros que dou são violinos alheios;
eu piso a terra como quem descobre a furto
nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinqüenta,
mas um dia afinal me encontrarei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
só o esquecimento é que condensa,
e então minha alma servirá de abrigo.

4.

POEMAS DA AMIGA / III


Agora é abril, ôh! minha doce amiga,
te reclinaste sobre mim como a verdade,
fui virar, fundeei o rosto no teu corpo.

Nos dominamos pondo tudo no lugar.
O céu voltou a ser por sobre a terra,
as laranjeiras ergueram-se todas de-pé
e nelas fizemos cantar um primeiro sabiá.

Mas a paisagem logo foi-se embora,
batendo a porta, escandalisadíssima.
_________________________
MÁRIO (Raul de Morais) DE ANDRADE (9-10-1893/25-2-1945, SP, Rua Lopes Chaves, onde residia) é considerado um dos principais poetas surgidos na Semana de Arte Moderna, 1922, e também estudioso de realidades culturais brasileiras. Assim, a sua obra permanece sendo apreciada e estudada, a do poeta, ficcionista, lingüista, ensaísta, historiador... e mais que “trezentos e cinqüenta”, como se expressa.
De sua bibliografia, alguns títulos, além das aqui referidas: Lira Paulistana, Clã do Jaboti, O Losango Cáqui, de poemas; Amar, Verbo Intransitivo, romance; Os Filhos da Candinha, crônicas, Macunaíma, rapsódia; Ensaio Sobre a Música Brasileira, Aspectos das Artes Plásticas no Brasil, O Folclore no Brasil, ensaios; O Empalhador de Passarinho, crítica literária, além de sua vasta correspondência com artistas e intelectuais ao longo da existência.
Melhor rastrear algumas considerações do Poeta Dantas Motta, que do Poeta paulista publicou livro sobre sua vida, obra poética e seu tempo. *
“... (Mário de Andrade) nasce num período de transição dos mais agitados da história brasileira...”
Em 1922, acontece a famosa Semana de Arte Moderna em São Paulo com participação efetive de significativos nomes da Literatura, Música, Pintura e outras manifestações artísticas. Dantas vê Mário nesse contexto: “... com ela (Semana) ou sem ela, porém, a vida intelectual de Mário de Andrade teria sido o que foi: uma constante busca de afirmação para termos o direito a esta espécie de casa própria. (...) “E daquela data em diante, até a sua morte, reforma,a renova, inquire, reinquire, esquematiza, organiza, passa a limpo, e, sobretudo, cria. De sua obra literária, artística e científica, séria e grave, surge, visível, delineada e delimitada até mesmo nos seus contornos geográficos com fisionomia de continente, uma cultura nacional que ele codificou em linguagem, estilo e pensamento.”
Afinal, como Manuel Bandeira: “Mário foi o brasileiro que mais se esforçou na tarefa de patrializar a nossa terra.”
(Paschoal Motta)

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