quarta-feira, 6 de agosto de 2008

DOIS TROVADORES: HARDI FILHO/CHICO MIGUEL


CRÍTICA LITÁRIA

Rejane Machado*

Dois amigos a realizar um jogo floral. Cerimônia das mais significativas nos albores de um século marcado por todos os tipos de experiências intelectuais. Originalíssima tertúlia. É significativo que este “desafio” tenha por formato o soneto, que tem pelo menos 500 anos de existência!

Estamos lendo Tempo e Contra Tempo, gracioso livro escrito por dois gigantes da poesia piauiense, uma pequena amostra, melhor diríamos, uma síntese da sensibilidade de dois amigos, tão bom um como o outro, numa realização tão bonita, tão nobre, tão alta, que nos comove o coração. Ousamos dizer que há muito não se edita algo tão especial na sua delicadeza de conteúdo.Hardi Filho e Francisco Miguel de Moura se mostram, nesse exercício, dois mestres do antigo ofício de porta-vozes do Olimpo. A partir de um retrato numa parede, questionado em sua fidelidade ao modelo: /“cujo semblante causa-me estranheza”/

um poeta, (Hardi) reflete com amargura: já não é a mesma pessoa. Aquele ser aprisionado na moldura é um estranho. E qual a razão da mudança? O tempo, ele conclui, Chico Miguel, o outro bardo, completa e enigmatiza: “tempo passante é sol, passado é lua./e o futuro ? Nem Deus sabe de nada”/

O homem é apenas um ser sujeito à temporalidade, e como tal mutável em sua forma. Mas o espírito! Este não é afetado por aquele fator. Apenas pelo seu aspecto metafísico concreto x abstrato. Em sua natureza o ser é uno, indivisível, sujeito porém a variações do seu psiquismo, este por sua vez dependente de fatores imponderáveis, que afetam tremendamente sua vida humana y compris suas disposições para o viver: a temporalidade é marca da condição humana.

Impressiona-nos a qualidade deste jogo entre dois excelentes poetas. Eles manuseiam com grande naturalidade essa forma difícil que é o soneto, observando todas as regras do gênero, cultivando rimas , métrica, musicalidade nos versos, chaves de ouro e demais procedimentos indispensáveis ao bom desempenho da antiga e encantadora forma poética.Ressuma um ar de repentistas em sua dialética, e na técnica da execução, original forma de glosar um mote, tendo-se em vista o histórico da peleja bem esclarecida no excelente prefácio de Altevir Alencar, que nos apresenta as motivações dos dois poetas. Nada haveria mais a acrescentar, senão ressaltar a qualidade intelectual desses dois amigos que tão originalmente se digladiam em altíssimo nível ao redor deste tema: o tempo que passa e que a tudo consome, levando consigo todos os valores da juventude, mas deixando em contrapartida o valioso legado da experiência; reflexionando belamente sobre a categoria mais importante da vida humana a que todos estamos sujeitos, fazendo-nos títeres das injunções do Sein und Zeit.

Poesia que a partir da visão de uma imagem alterada pelo tempo fará todo um questionamento sobre a vida humana, seus valores, sua duração, seu destino. E o resultado é um belíssimo estojo onde guardam as mais belas jóias: a poesia deste Tempo contra Tempo.

Numa parede o retrato de um jovem. O que leva o poeta Hardi a sentimentos amargos, após compará-lo com o seu reflexo no espelho ao barbear-se.Sente-se ele, um anacrônico simulacro do que foi no passado. Constata a estranheza: não é ele, aquele jovem foi empolgado pelo tempo! E queixa-se disso ao amigo (FM) que o ouve e consola: talvez o poeta não tenha mudado tanto como pensa. À semelhança de algo que não foi bem olhado e pior visto, tal como uma moça malsentada (FM) de quem um olhar bem-educado evita a exposição direta – a moça mal vestida é entretanto, olhada ligeiramente, disfarçadamente, (como a reparou o solerte poeta FM) que acrescenta: “o tempo é assim, nem novo nem tão velho” e ela logo será esquecida, como visão fugidia que não marcou. Importante é o dado concreto que condiciona a vida humana e o poeta, insiste, não mudou, apenas se olhou mal, enfatiza: como se olha para uma moça “malsentada.”

O primeiro retorna, compromete-se com a explicação do outro: /“É bem de ver que a “moça malsentada”, / referida em teu ótimo soneto,/ é uma visão que deve ser lembrada/ (...) / e com ela também me comprometo.”/

Mas continua firme na observação que constata os estragos temporais. FM insiste, não houve, em essência, mudança. E aqui se inscreve a dialética que subjuga o homem: o ser / o parecer – o espaço é que mudou, é outro agora, conseqüência do olhar apressado, enviesado, como se olha rapidamente, olhando sem querer olhar, para aquela moça descuidada, “malsentada”, a tentar proteger-se de olhares invasivos, curiosos, que pretendem ver mais do que o que em realidade aparece. E o olhar ali não se demora, porque não é de bom tom, é praticado de viés, ou melhor, de retroviés (FM) “como quem olha sem estar olhando” (ainda na pag. 8, HF). Alegoria da mocidade que se foi, FM analisa o belo quadro: / “ Tempo não morre e suicídio ignora. / Mas se acaso morrer renasce e enflora / na imagem da moça malvestida.”

Estivesse ela, a moça malsentada, bem-vestida, ou seja, com decoro e modéstia, não haveria perturbação.Mas o olhar passando sobre ela virá causar desordens, inaugurando um novo tempo, melhor, uma nova dimensão. Enquanto o olhar a percorre, se estende, se amplia, se transforma, ganhando um novo significado: / “Pois viva a moça, o renascer da vida!”/ (FM ,pg.11)

É um original duelo, do qual não há vencedor nem vencido. Ambos excelentes poetas, de altíssimo nível, elevando a poesia moderna a píncaros inusitados, nunca desprezando suas origens nobilíssimas, mas aproveitando-se de todo o contributo dos séculos, da tradição clássica. E muito mais significativo, quando se reflete no que a poesia foi modernamente transformada, nesta tão perversa atualidade medíocre, após tantas experiências infelizes, que alargaram desmesuradamente as suas fronteiras, fazendo em seu espaço sagrado penetrar quem dela não tem noção mínima; sacramentando o equívoco, pois o Modernismo não soube defini-la, permitindo que qualquer sandice escrita linha por linha receba o nome de Poesia, e de poetas os seus praticantes. Como resultado, imprimindo-se tanta nulidade sob a vetusta denominação.

Há momentos em que a fina expressão de HF se restringe mais à norma culta, ao sentido nobre, ao tema elegante, enquanto F. Miguel prefere a palavra mais coloquial, o estilo mais descontraído, mais” moleque,” menos formal, como quem brinca para diminuir a tensão. O que não é, de nenhum modo, demérito, ao contrário, senhor da palavra, ele pode se dar o luxo lexical. Até mesmo como quem se ri da desgraça para, nobremente, aliviar a angústia existencial do amigo, minimizá-la numa superioridade de propósitos, como se espera da verdadeira amizade – parecendo não dar tanta importância ao fato que amargura o outro, desvalorizando o inexorável, insustentável peso da realidade, antes a zombar dela, experiente, sabendo que é necessário um olhar mais profundo para alcançar, sob a forma externa, a autêntica verdade, o fundo verdadeiro, a essência, o ôntico.

FM volta à carga: /“Quero insistir que a moça malsentada/ é o mais lindo dos quadros que conheço,/ e aquele vestir pouco não tem preço,/ faz a curva da idade abençoada/.

Enquanto que Hardi duvida que se possa ver o tempo da mesma maneira que à moça na calçada, entretanto se reanima, reconhece o papel do amor (pág. 12) em cuja mão é bem conduzida “a escrita do presente e do futuro”.

O pragmático F. Miguel refuta a completude dos espelhos que “nesse particular tem meu respeito/ pois a mão que os produz, produz sonetos”. Nihil obstat – decreta: Viver o tempo, não considerar o trabalho, “como um deus?” /Viver em vez do dia, a noite e seu orvalho/ em vez da terra as luzes lá dos céus”/ – receita do poeta para o que não tem remédio. HF não acha possível definir o tempo em nível poético: se ele salva-nos da mesmice, tudo consome, entretanto, na sua caminhada inexorável. Mas FM contradiz: se nós passamos, ele também vai se consumir, vai passar, “há de chegar ao fim”. A pergunta de Hardi, agora, é: o tempo existe? O peso dele é desumano e o poeta se acaba em dúvidas, concluindo: “tempo ganho é também tempo perdido”. A resposta vem, em forma de obra prima, com todas as antíteses possíveis de significado, em nuances várias, cheias de contradições, características do pensamento filosófico: “tempo é o que bate em nosso coração” ( Chico Miguel). (...) “um tempo amado e um tempo de canção” (...) “um tempo acumulado em tempo-sim” “e um tempo esvaziado em tempo-não”– magnífico fecho de magnífico trovador.

Procedimentos poéticos vários, dentro da estrita forma fixa, como movimento dialético, ocorrendo antíteses,veja-se Acerto dos contrários, pág. 40 (de Hardi), com sua magistral conclusão: o silêncio de luz do pensamento.- construções circulares, leixa-pren (procedimento da poética medieval, no retomar de um verso ao final e elaborar a partir dele uma nova seqüência) ritmo regular e métrica rigorosa, a boa e ortodoxa técnica do alexandrino à pág. 53 a demonstrar a versatilidade de Chico Miguel, com bastante liberdade de expressão no uso das figuras de pensamento e de palavra e na escolha das camadas mórficas e sintáticas. Noto o bom uso das convenções literárias, o amor cortês, a delicadeza com que se aproximam do ideal, o carpe diem, ubi sunt, enfim, esses dois poetas brincam com as expressões, revirando-as pelo avesso, extraindo-lhes todas as possibilidades expressivas. Na pag. 51 note-se uma construção bilaqueana, a ocorrência de metalinguagem. E nas 54/55 voltam a brincar com o mote: do último FM para o primeiro de HF.

Dissemos: mote glosado , em que um deles apresenta a idéia e o outro se apropria dela, numa ocorrência sutil dos verbos dicendi, quase à semelhança de um diálogo em que os dois terçam suas armaduras poéticas- e dissemos construção circular. Demos um exemplo à página 47, na qual F. Miguel termina sentenciando: “o tempo somos nós e o mundo inteiro”, que Hardi retoma e inicia à pág. 48 : “O tempo somos nós e o mundo inteiro”.

Voltemos também, à graciosa imagem recorrente da moça malsentada em justa e curta saia que faz o versejador Hardi, em estado de sonetear, se sentir igual a ela, desconfortável, tentando proteger-se de olhares cúpidos, safados, mas “revejo a cena e nela me aconteço”, utilizando-se da expressão maravilha de visão- salvando-se do esperado naufrágio ao contrário, e gloriosamente atingindo aquela nobre praia” com louvor. A distância enorme entre o retrato e o retratado provocando a angústia da constatação da corrosão a que tudo está sujeito, fá-los concluir que “o tempo é um contratempo” e masoquísticamente chorando pitangas: “Que saudade de nós daquele tempo!” FM retoma este sentimento e HF aceita o irremediável, as escoriações que o tempo causou ao corpo afetando uma alma diamantina”.

Concluem que o mais importante é a permanência da poesia e o maior valor a amizade que o tempo consolidou. Chico Miguel liga o carro da poesia. Sua visão pragmática conclui que não há despedida, que a gente volta sempre ao mesmo tempo, o que quer dizer: permanece a chama acesa da poesia, que consola, honra e preserva.

Obra-prima de lavor e invenção, de inspiração superior, esse belíssimo livro, que mereceria figurar em todas as bancas e livrarias, fossem mais sensíveis ou inteligentes os responsáveis pela divulgação da boa literatura brasileira. De parabéns esse pequeno grande Estado (Piauí) que tão grandes poetas produz. De parabéns nós todos, brasileiros, por podermos contar com uma obra que honra nosso passado de excelentes escritores, de grandes artistas do verso, e que nos permite ter esperanças ao ler obras desse quilate, em meio à enxurrada de equívocos editados modernamente. .

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*Rejane Machado, doutora em Letras, contista várias vezes premiada, seu inédito, “O outro lado das coisas” está prometido para outubro/2008. Romancista: “Informação a um desconhecido” foi editado no Rio, em 2000. É crítica literária premiadíssima.

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