sábado, 24 de setembro de 2022

 


                       A ALMA (DES)ENCANTADORA DAS RUAS

 

     Francisco Miguel de Moura, escritor, membro da Academia Piauiense de Letras

 

           Outrora as cidades tinham uma alma de encanto e beleza. As ruas, também. O escritor carioca, João do Rio, pseudônimo de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto (1881-1921), autor de “A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS”, editado em 1908, abre sua primeira crônica assim:

“Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo o sentimento imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas.”.

   Na “belle époque”, a obra causou “frisson”. Se fosse reeditada por alguém de juízo (e como as cidades estão necessitadas!), a repercussão seria enorme pelo contraste do passado com o presente. Ou seja, a modernidade matou a alma das cidades, avenidas, passeios, ruas, praças, serestas, cafés e clubes. E ainda há quem se arrisque a sair à rua de pé, para sofrer os encontrões, as pisadelas, os atropelamentos. Por quê? Em busca de ar... O de hoje é um inferno, poluidíssimo, sim, adoece, cega e mata.

Não se trata apenas pelo barulho de carros, motos, bicicletas e até animais, poluidores dos olhos, dos ouvidos, do pulmão. As calçadas (no sul chamam de “passeios”), travessas e ruas estão ficando mais atopetadas de camelôs e suas pobres mercadorias – coitados! Precisam ganhar o pão de cada da dia.  Repletas de carros estacionados por cima, sem polícia, nem guardas de trânsito; ladrões andando à solta, até com roupas de policiais, desde assaltantes de velhinhas e aposentados do INPS até moças, mulheres, carros e distribuidores de droga. É o feitiço caindo contra o feiticeiro. São mais do que perigosos, com a arma em punho, que entram nas casas de residência, de comércio, nos bancos e causam os maiores perigos ao cidadão.

           Aos desordeiros, os direitos humanos; aos demais cidadão, o governo (impostos) e as leis. Aos desordeiros dão-lhes advogados de graça, bolsa-família para suas famílias, filhos e mulher (ou mulheres), pelas quais uma parte dessa gratidão do voto do governo populistas é passada ao presidiário, para matar outros presidiários, fazerem rebeliões e criarem forma de fugir. E de novo vão pra rua. Mas os justos, os éticos e moralmente irrepreensíveis, os que apenas trabalham e pagam imposto são desprezados, maltratados, roubados, mortos.

           Ao lado da destruição do patrimônio histórico e paisagístico, empresários gananciosos derrubam tudo, da noite para o dia, para o soerguimento de prédios enormes de pequenos apartamentos onde cada vizinho é capaz, e assim age, de fazer tanta zoeira que, não sei não...

Muita gente está mudando das grandes cidades paras as menores. É a fuga desses males do que se teima em chamar de modernidade. Isto é destruição, descaracterização, desonra, desmemória, desumanidade. Quem dera ainda se pudesse sentar nas calçadas, formando a rodinha de vizinhos e amigos para o jogo inocente ou a conversa e o cafezinho, à luz da lua ou mesmo da eletricidade, e desfrutar a noite como deve ser desfrutada: – na calma, para um sono tranqüilo! E não nos inferninhos, com luzes piscando por todas as frestas dos olhos e do cérebro com a ajuda de drogas legais e ilegais, com o demoníaco barulho do que dizem ser música. Quem pode amar tanto desmantelo? E ainda a amamos. Por que a rua é sinal de liberdade, onde todos são iguais, solidários. Nela nasce a força da palavra contra os poderosos.  Estão sepultando “a encantadora alma das ruas” da bela imagem de João do Rio. Morreram os seresteiros, a moças das janelas, não se ouvem mais os simples servidores e pregoeiros do pão e do leite. Que faremos, meu Deus, para re-humanizar as cidades e, por conseqüência, os homens? Se o cronista fosse escrever agora sobre as ruas e avenidas, jardins, passeios e praças, teria que escolher outro nome para seu livro. Creio que não seria mais nem menos que “A ALMA DESENCANTADORA DAS RUAS”, numa paráfrase ou paródia do livro do grande cronista João do Rio.

Alguém seria capaz de dizer mesmo como é alma das ruas, das cidades, dos bairros de nossa incivilizada civilização?

 

           

Um comentário:

Anônimo disse...

Realmente bateu a saudade da minha terra Natal dos anos 50 60 e 70 da Velha Picos de outrora

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