Francisco Miguel de Moura*
“Se queres ser
universal, começa por pintar a tua própria aldeia.
LEON TOLSTÓI
Ana Karênina é um dos maiores e melhores romances do autor,
li e gosteik, razão por que fiz este ensaio, já publicado na revista da Academia Piauiense de Letras.
Ana Karênina é um dos maiores e melhores romances do autor,
li e gosteik, razão por que fiz este ensaio, já publicado na revista da Academia Piauiense de Letras.
FMM
Em 1886, quando Leon Tolstói
escreveu o conto A Morte de Ivan Ilítch, considerado por Otto
Maria Carpeaux como a obra prima de Tolstoi, segundo informação da
Profa. Vera Lúcia Albuquerque, que escreveu um excelente ensaio
sobre o dito livro do autor russo, na revista Literatura
Universal, da Academia Cearense de Letras, Fortaleza, 2005,
pg. 166), o autor passava por uma grande transição na sua vida e na
sua arte, nesta sobretudo reformulando conceitos como moral, clareza,
beleza e sinceridade. Autores, editores e críticos chamaram a obra
de conto ou novela, em virtude do seu tamanho de cerca de cem
páginas. Era moda na época escrever-se romances monumentais, e
neste sentido o autor de Ana Karenina é um exemplo bem
significativo. Talvez essa a razão da classificação de conto,
novela ou romance pelo tamanho, pelo volume, páginas.
Escrever sobre qualquer assunto e
em qualquer circunstância é sempre uma temeridade, digo
inicialmente, pois a língua escrita é uma linguagem segunda e
requer um longo aprendizado que nem todos podem adquirir, sem contar
a tendência para a escrita e para o estudo, que não é tão comum
nos dias correntes. Por que é difícil apenas sobre Tolstoi e seus
romances e contos, como referiu, no início do seu trabalho acadêmico
mencionado, a Profa. Vera Lúcia Albuquerque? De toda forma,
escrever é arcar com a responsabilidade de poder formar opinião e,
por esse caminho mudar o rumo das ações humanas. Escrever sobre A
Morte de Ivan Ilítch e Ana Karenina, de
León Tolstói, dobra esse temor; primeiro, porque foram muitas
as pessoas categorizadas que os leram, comentaram, criticaram e o
exaltaram, apresentando os mais diversos argumentos, os mais
diferentes pontos de vista; depois, em virtude da profundidade e
sinceridade do fazer artístico do autor, sua inteligência e
doloroso sentimento de humanidade, apesar das crises existenciais que
viveu.
Que dizer de novo, então, sobre
esse autor e sua obra?
Nunca
me atrevi a escrever nada sobre a literatura universal, salvo sobre
alguns autores portugueses, sobre o francês Albert Camus (porque li
toda sua ficção), ou ainda sobre o latino-americano Mário Vargas
Llosa. Dostoiévski é meu autor preferido, mas não tive o
cometimento de escrever nada sobre o que li do autor de Crime e
Castigo. Nem, por exemplo, sobre Balzac, Flaubert, Tchecov,
Thomas Hardi, Jorge Luís Borges, Gabriel García Márquez, etc. Por
que escrever agora sobre León Tolstói? A leitura de Ana
Karenina mexeu com meu silêncio, minha inércia. Algum motivo
secreto me diz que posso trazer alguma contribuição. Não
sei se é compulsão ou porque me identifiquei com o seu personagem
Liêvin.
Já
minha única leitura de A Morte de Ivan Ilítch é muito
antiga, por isto não farei muitas alusões a ela e a ele, o romance.
Prendo-me, como é do meu costume, quase que a Ana Kerenina
– uma floresta onde me encontrei e me perdi. Mesmo quem não é
leitor de Tolstói, já ouviu dizer ou leu em algum lugar a frase
inicial de Ana Karênina: “Todas as famílias felizes se
parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua
maneira.” Pois não é somente essa diretiva que acredito ter
sido formulada pelo Autor ao encerrar minha leitura.
Inconscientemente, me parece, seus elevados esforços para construir
uma obra imorredoura, guiaram-no para caminhos mais difíceis do que
os leitores a princípio podem imaginar, a acreditar-se na sua
própria informação, em outra parte, a propósito: “Em tudo,
em quase tudo que escrevi, fui dirigido pela necessidade de reunir
pensamentos encadeados entre si, para sua própria expressão, mas
cada pensamento, expresso por meio de palavras isoladamente, perde o
seu sentido, rebaixa-se tremendamente, quando tomado sozinho naquele
encadeamento em que se encontra. E o próprio encadear não é
formado pelo pensamento (creio eu), mas por algo diferente, e não se
pode de modo algum expressar a base desse encadeamento diretamente
por meio de palavras que descrevem imagens, ações, situações,
etc.” Uma teoria de como escrever ficção para ser filósofo
ou vice-versa?
Ninguém,
depois da leitura de Ana Karenina, pode duvidar da sinceridade
e do esforço realizado em torno da literatura. Sua escrita foi
longe, para expressar o homem e o espírito inseridos na sociedade de
então. Seus romances, este especialmente, e também Guerra e Paz,
formam, além de desenvolverem personagens fortíssimos, o grande
painel da sociedade russa do século XIX, e nesse sentido todos são
históricos, épicos. Sobre o “epicismo”, vale citar aqui,
artigo do Frei Beto, no “Jornal da UBE-SP”, junho de 2005: “As
grandes narrativas favorecem a nossa visão histórica e criam o
caldo de cultura no qual brotam as utopias. Pois sem utopia não há
ideal e sem ideal não há valores nem projetos. A vida reduz-se a um
joguete nas oscilações de mercado. A literatura é a arte da
palavra. E como toda arte, recria a realidade, subvertendo-a,
transfigurando-a, revelando o seu avesso. Por isso, todo artista é
um clone de Deus, pois imprime ao real um caráter ético, superando
a linguagem usual e refletindo, de modo surpreendente, a imaginação
criadora”. Parece até que Frei Beto estava analisando Ana
Karenina, de Tolstói.
É
conhecida de todos os romancistas a dificuldade de começar uma obra
romanesca, assim como o seu término, pois tudo quer bom começo e
bom fim, ainda mais se se tem a consciência bem clara de que os
meios não justificam os fins. Assim, toda boa obra deve compor-se
com unidade, coerência, elegância e bondade, embora quase sempre
mostrar a bondade não seja a finalidade da ficção. Não, custa,
entretanto, uma purgação. Ou mesmo que custe, vale a pena. A frase
inicial de Tolstói, em Ana Karenina é de chamamento ou de
repulsa, um chamamento aos leitores. E Tolstói tem muitos bons
leitores, sabe conduzi-los até o fim com unidade e variedade, sem
cansar. Singular seu estilo – dom aperfeiçoado durante toda sua
vida – dá para senti-lo, mesmo tão longe de nós como fica a
língua russa, prova de que a arte é universal.
Em
Ivan Ilítch, comovente e assustador, considerada por outros
críticos e não somente por Otto Maria Carpeaux sua obra prima,
Tolstói nos apresenta o personagem em sua situação-limite e as
reações desconcertantes das pessoas conhecidas, colegas, amigos,
subalternos ou não, em redor. Aqui, em Ana Karenina,
trata da vida familiar da Rússia naqueles tempos, do que ainda
subsiste como resquício em meio a tantas transformações modernas.
No fundo, a vida a dois, como casal, continua a mesma forma
quotidiana de “conviver separado”. A alma das pessoas não muda
tanto, “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”... A
alma muda em face de suas circunstâncias, porém muda sem mudar
completa nem abruptamente. Essas mudanças superficiais que acontecem
no tempo e no espaço e o núcleo que permanece como identidade do
ser e do indivíduo são a matéria prima deste grande romance de
Tolstói.
Para
uniformização deste rascunho de leitura, colocarei os nomes dos
personagens com a acentuação brasileira, ou seja, sem aqueles
acentos diacríticos nas sílabas anteriores à antepenúltima, para
nós impronunciáveis. É bom que se diga que uma das dificuldades da
leitura dos russos é esta: dos nomes estranhos; a outra é o costume
dos autores de chamar seus personagens ora pelo próprio nome, ora
por um sobrenome ou por outro, ora por um apelido. Portanto,
primeiramente tentemos enumerar um elenco dos personagens principais
do romance Ana Karenina, de León Tolstói (1828-1910), um dos
maiores escritores russos e da literatura universal no século XIX:
Com o casal Stiepan Arcadievicht (Stiva, Oblonski) e Dária
Alieksandrovna (Dolly) Tolstói abre o seu (nosso) romance, visto que
tão atual. Depois vem Ana Karenina, irmã de Oblonski, apaixonada
pelo conde Vronski e casada com Alieksei Alexandrovitch (este e Ana
formavam a família Karenin). Um terceiro casal também tem grande
participação na vida do romance: é o formado por Liêvin e Kitty
(apelido familiar de Catarina), irmã de Dolly. E comparecem
suficientemente bem, isto é, com ação prolongada, os irmãos
Liêvin, Sérgio e Nicolau, tal como outros parentes das mencionadas
famílias: as princesas Varvara (tia de Obslonski) e Betsy (prima de
Vronski), a condessa Lívia e o conde Vronski (este por sua ligação
posterior, embora ilegal, com Ana Karenina), pois que desde o começo
tem presença marcante no romance, logo nos primeiros capítulos como
rival de Liêvin na conquista de Catarina (Kitty). Considero
secundários os demais, porém não desimportantes, e podem ou não
serem citados nesta leitura, conforme a necessidade.
Na
verdade, o casal Ana x Vronski é a espinha dorsal da trama maior, do
interesse a que qualquer leitor não se furtará, sob pena de
perder-se no imenso volume de 749, páginas corpo 10, da Editora
Abril, com licença da Editora José Aguilar Ltda., Rio, 1971, e
tradução de João Gaspar Simões. Mas diga-se a quem ainda não o
conhece e deseja lê-lo: Ana Karenina é uma saga e não deixa
de ser uma epopéia, como é a maioria dos romances do Autor. Feita
romance, é de agradabilíssima leitura, capítulos curtos,
entrelaçando as histórias dos referidos casais e seus componentes
com os movimentos sociais do século e filtrando-os pelos olhos do
filósofo Tolstói. Alguns críticos já se referiram à sabedoria e
propriedade do Autor na construção de metonímias que logo, no
logos, se transformam em metáforas eloqüentes
como aquela bolsa que é jogada ou cai nos trilos do trem, muito mais
visível, mais significativa do que mesmo os lances outros da morte
trágica de Ana. É a metonímia que se transforma em metáfora,
desviando a atenção do crítico para uma análise muito mais
hermenêutica do que formalista, eis que, “colocando-se
em oposição a uma postura epistemológica”, segundo Luzia
Lobo, em “Estética da Repetição” (Manual de Teoria
Literária, obra coletiva org. por Rogel Samuel, Editora Vozes, Rio,
2001, 14ª edição), a nova corrente moderna originada das doutrinas
de Dilthey, Heidegger e Gadamaer, entre outros, “substitui a
tarefa analítico-descritiva por um trabalho de interpretação que
parte do texto e se encaminha para uma reflexão sobre a essência
humana.” Assim já pensava, antes de iniciar este trabalho, e
não sei como se poderia melhor conhecer Tolstói nesse romance do
que por esta trilha, onde só o tempo tridimensional (passado,
presente e futuro) dará compreensão e sentido.
Ana
Karenina, bonita, simpática, vivaz, instável, passional,
convenhamos que do ponto de vista dela própria sofre um
relacionamento infeliz e sem amor – já que é a personagem central
– casada com Alieksiei Alexandrovitch, pessoa da alta burocracia do
governo, com influência na sociedade, graças às benesses da
família e ao seu trabalho sempre em favor, nunca contestando, sempre
aprovando os grandes e os chefes imediatos. Exemplo de forma de poder
daquele tempo e de homem autoritário por força das convenções
embora não o fosse de alma, não admitia ver arranhada sua honra
perante a sociedade. Por isto e só por isto não concede o divórcio
à mulher, pois para tanto, na Rússia daquele tempo, Ana teria que
confessar publicamente sua infidelidade. Alieksiei Alexandrovicth
então aparece como um homem frio e calculista, mas aparentemente
liberal, a suportar a traição de Ana com o conde Vronski em seu
nariz. Não aceita o divórcio proposto pela mulher para não ficar
mal entre seus amigos, colegas e chefes e, talvez, prevendo o fato
vir a rebaixá-lo profissionalmente. A vida de Ana se torna um
inferno. Personalidade forte, diferente do comum das mulheres do seu
tempo, dir-se-ia que iniciou na Rússia o pensamento e a prática que
levariam, no futuro, à emancipação da mulher. Ao mesmo tempo, tudo
leva a crer que a sua paixão desvairada pelo conde Vronski, no
início, teria sido também uma concorrência com Kitty pela posse
dele e não por amor de verdade. Convivência recolhida a sua casa,
sem mostrar-se, ela resolve deixar marido e filho para viver com
Vronski. Mas a vida a dois resvalou para ciumagens e exigências
descabidas, por viverem excluídos da boa/alta sociedade, apenas
visitados pelos mais íntimos e sem freqüentar sítios que os casais
normais freqüentavam.
O
casal Oblonski x Dária também vive mal; estão juntos na mesma casa
durante algum tempo, mas separados no amor, em virtude da não
aceitação da infidelidade dele. São também da alta roda, mas por
essa razão, se fecham, ele vivendo das suas amizades e amores; ela,
para os filhos e para o governo da família. Nos primeiros dias dessa
“separação de corpos”, em vista do flagrante de Dária à
primeira (?) infidelidade do marido, estourou a enorme crise da qual,
não obstante, a visita da irmã Ana, os cuidados e conselhos desta
sua cunhada de tão simpática companhia, crise que continuaria até
a final separação (sem divórcio).
Embora
a ação do romance comece com a crise entre Oblonski e Dária, logo
se passa para a de Ana e Alieksiei, enfocando especialmente a
traição/namoro com Vronski, os sofrimentos pela retirada do filho
de junto da mãe, imposta pelo marido enquanto Ana viveu dentro de
casa – uma mansão com criados, mordomos, acompanhantes e
governantas.
O
terceiro casal, Liêvin x Kitty, tem uma participação das mais
importantes no desenrolar da ação e na trama, aprofundada nos
movimentos intelectuais, morais, científicos, sociais e filosóficos
da época vivida, pois, de certa forma, Liêvin representa o alterego
de Tolstói como veículo de suas idéias e ideais tanto humanitários
quando de arte, sempre se indagando e contradizendo-se, mas mesmo
assim lutando na construção de um livro que conteria a resolução
dos problemas do campo na Rússia, contribuindo para que saísse do
seu atraso em relação ao resto da Europa. Ele morava na fazenda,
era agricultor, ao contrário dos demais mencionados, acompanhado de
Kitty depois do casamento, com quem se unira apaixonado, mas não
certamente convencido de ser correspondido no amor, talvez pela
lembrança da desilusão que teve no início justamente por perdê-la
durante algum tempo para Vronsk.
Liêvin
vive uma vida tranqüila mas não muito feliz. Amor fogoso parece
viver, por algum tempo, Ana – mulher cheia de encantos, feitiços,
dominadora, porém que depois não conseguiria vencer seus medos e
diferenças geradores de ódios, nem apascentar Vronski das suas
conquistas, das suas pequenas ou supostas infidelidades. A gota
d’água foi ele ter saído de casa sem aviso e ainda mandar-lhe um
bilhete dizendo que chegaria “às 10 horas”, quando em verdade
era esperado para antes, possivelmente por sua amada lhe ter pedido
que “não saísse de casa naquela noite”. É o contraste.
A felicidade nunca pode ser satisfatória na vida a dois, há
infelicidades pelas coisas exteriores (a sociedade) ou interiores (a
alma), como não seria de desejar, e pelo mínimo que se possa crer.
Mas a
esperança na humanidade, na sua melhora, no seu aperfeiçoamento
sobressai sempre do texto de Tolstói: simples, lírico às vezes,
dramático outras, como na comovente morte de Ana:
“De
repente lembrou-se do homem atropelado no dia do seu primeiro
encontro com Vronski e compreendeu o que tinha a fazer. Em passo
ligeiro e rápido desceu as escadas do depósito de água para a via
e deteve-se junto ao comboio que passava. Tinha os olhos fitos na
parte inferior dos vagões, nos pernes, nas correntes e nas altas
rodas de ferro fundido do primeiro vagão, que rodava lentamente,
como se procurasse determinar o centro ente as rodas dianteiras e as
traseiras e calculasse o momento em que esse ponto devesse estar na
sua frente. Ali! disse para si mesma,
olhando a sombra do vagão e a areia misturada ao pó de carvão que
se espalhava nas travessas. Ali mesmo no meio! Castigá-lo-ei e
livrar-me-ei de tudo e de mim mesma.
Quis
atirar-se para debaixo do vagão que nesse momento chegava junto
dela, mas a maleta vermelha, de que procurava desprender-se,
distraiu-a e não deu tempo: o centro do vagão já tinha passado.
Era preciso espera o imediato. Uma sensação parecida com a que
costumava experimentar ao entrar na água à hora do banho se
apoderou dela, e persignou-se. Esse gesto familiar despertou-lhe na
alma recordações da infância e da juventude. E, subitamente,
desvaneceu-se a névoa que tudo cobria, e a vida exibiu-se-lhe por
momentos em todas as suas radiosas alegrias passadas. Não apartava,
porém, os olhos do vagão que se aproximava. No momento preciso em
que o centro desse vagão lhe passava diante, jogou fora a maleta
vermelha, e afundando a cabeça entre os ombros atirou-se-lhe para
debaixo, caindo com o corpo em cima das mãos. Depois, com um
ligeiro movimento, como se quisesse ainda levantar-se, quedou
ajoelhada. Nesse instante sentiu horror do que fazia. ‘Onde
estou eu? Que faço eu? Para quê?’, quis retroceder,
atirar-se para trás, mas, entretanto, qualquer coisa enorme,
inflexível, a apanhou pela cabeça, arrastando-a de costas. ‘Senhor
meu Deus, perdoa-me tudo!’, pronunciou, sentindo que lhe
era impossível lutar. Um homenzinho resmoneava, martelando uns
ferros por cima dela. E a vela, à luz da qual Ana lera o livro da
Vida com todos os seus tormentos, todas as traições e todas as suas
dores, resplandeceu, de súbito, com uma claridade maior do que
nunca, alumiando as páginas que até então haviam estado na sombra.
Depois crepitou, estremeceu e apagou-se para sempre.” (Pg.704/5).
Aqui
poderia terminar o romance? Talvez. Mas Tolstói continuou. A
leitura é necessária. Então nosso ensaio continuará também.
Foram-me emocionantes também as duas passagens que passo a
ressaltar. A primeira, quando Liêvin, sozinho, solteiro, visita o
irmão Nicolau, vivendo longe da família, junto com uma “mulher
da vida”, que, de forma alguma seria boa para tornar-se sua esposa,
de nome Maria Nicolaievna. A revolta. A vergonha. A falta de
respeito ao irmão e ao “cunhado”. Tudo o que não podia desejar
encontrara ali. E nada podia fazer para modificar as coisas, já que
o mano teimava em viver bebendo e reclamando da sorte, e, mesmo
naquela situação, achava que Maria Niicolaievna era seu amor e, a
melhor mulher do mundo.
A
segunda foi a situação vivida por Liêvin e Kitty, na antevéspera
da morte de Nicolau (o irmão/cunhado pobre, beberrão, e agora
doente). Foram estes recebidos à porta por Maria Nicolaievna (“era
exatamente a mesma de Moscou: vestia o mesmo vestido, com os braços
e o colo desnudos, e tinha a mesma expressão, pouco inteligente e
bondosa, no rosto picado de bexigas, apenas um pouco mais cheio do
que então.” (p. 455) – pensara Liêvin. E logo quis
explicar a Kitty que aquela aparência, não era a de uma mulher
certa para o irmão. Não obstante, em respeito à dor de Liêvin,
Kitty surpreendeu: Demonstrou coração e alma sensíveis, cheia de
bondade, ternura, humanidade, sacrifício e comunhão com o
sofrimento alheio (que no caso era da família). Diante da
situação-limite, a já esperada morte de Nicolau (tuberculoso?),
Liêvin: “não podia olhar para o irmão com serenidade nem
mostrar-se natural e tranqüilo na sua presença”, enquanto
Kitty, ao entrar no quarto do semimorto, iluminava-o com o seu olhar
e seu discreto sorriso. Como lhe era possível, o doente algumas
vezes pode corresponder aquela gentileza da alma. Kitty, então,
lembra vagamente de ter estado com o irmão de Liêvin nalgum lugar,
querendo dizer-lhe que de fato não eram estranhos. E lhe pergunta se
naquele encontro antigo “não lhe passara pela cabeça que ainda
viria a ser sua irmã”. O doente, para surpresa dela, ainda
abriu-se num murcho sorriso e foi o último de sua vida.
Minha
tentação é transcrever algo mais de Tolstói, porém ele é tão
caudaloso, sem ser repetitivo, nem inútil, nem prolixo, que me
parece cansaria muito o leitor. Ademais, tudo o que estas notas de
leitura valem é apenas uma orientação modesta para os que se
aventurarem por aquelas plagas, nas quais se embevecerão como me
aconteceu.
Desta
forma, trato de encaminhar-me para o fim, pois cada sofrimento era
diferente e também o mesmo, cada problema era o de cada um e
daquelas famílias, todas entrelaçadas por sangue ou por afinidade.
Ana, creio, e Liêvin, por razões diferentes, são os personagens
que mais sobressaem na ação, e mais tempo se oferecem ao leitor, e
assim, as mais complexas, fascinantes. Ana, pela sua vida
descontrolada nos sentimentos, desconhecida por si e pelos outros
(inclusive Vronski, que termina indo pra guerra e lá morrendo), isto
depois que Ana se suicida nos trilhos do trem como foi evidenciado
acima em belíssimas páginas.
Fazem-nos
pensar, e às vezes até sofrer, os prazeres auferidos por Liêvin em
sua vida no campo, tão contraditórios e confusos o era seu agir, ou
sua inércia, diante dos citadinos quanto junto aos camponeses pobres
(mujiques) que trabalhavam sua terra, e também seu constante pensar
em como melhorar a situação deles, ao mesmo tempo em que, na
prática, pouco ou nada fazia nesse sentido. Pensava grande, numa
forma do alevantamento da Rússia, na modernização do campo, em
terminar de escrever um livro partindo de suas anotações e suas
teses sobre agricultura. E também suas indecisões, perguntas e
respostas espirituais: em torno de Deus, da alma, da vida, do amor,
de tudo. Um intelectual. “Uma idéia justa não pode ser
estéril. Por um objetivo tão grandioso valem a pena todos os
esforços. Ora, que o autor desta revolução seja este pateta do
Liêvin, habituado a ir ao baile de gravata preta e a quem a Princesa
Tchierbatskaia (leia-se Kitty, Catarina Tchierbatskaia) negou a mão,
isso não tem importância absolutamente nenhuma.” (pg. 729).
Isto é muito conforme com as idéias de Tolstói, que pregava
em tudo um humanismo cristão ateu, isento, portanto, dos dogmas
religiosos. Citei Liêvin como poderia ter transcrito idéias e
reflexões de outros, principalmente as de Kitty e, aqui e acolá, de
uma outra princesa, de um ou outro conde, do que está cheia a
história de Ana Karenina.
Ana e
Liêvin carregam por toda vida o estigma da rejeição, do não
reconhecimento. Enfim, convive-se com muitas lições de vida e de
sentimento, filosofia e beleza, na leitura de Tolstói, pelo que vale
a pena. Uma riqueza indiscutível.
Não
precisamos citar nada que não seja da filosofia de Tolstói,
acreditamos que ele, como romancista superou muitos e muitos
filósofos nas suas confusas interpretações do mundo e do homem.
Nossa crítica é expressionista. A expressão do que se leu e sentiu
e não a repetição de idéias alheias ou o mau enquadramento da
literatura dentro de outro conhecimento que não é o seu, fora do
seu caminho.
O
final de Ana Karenina é melancólico. Destinou-o Tolstói
aos heróis (ou anti-heróis) como Vronski. Este tenta suicídio,
vai pra guerra, como tantos outros moços da sua época: uma guerra
sem sentido e sem empolgação, na qual voltam sem saber o fim, ou
morrem. E à purgação lenta de Liêvin, que pode muito bem ser
sentida do começo ao fim, pretendendo conhecer sempre e melhor os
escaninhos da alma humana, sem nunca saber aonde chegaremos, ou se
não iremos a lugar nenhum.
A
última cena do romance mostra um Liêvin quase a encontrar-se com a
luz que o iluminaria para sempre. Pois é quando vai saindo do
quarto, aonde tinha ido ver o filho e prestar-lhe cuidados, a
mando de Kity, que lhe surgem estas lentas elucubrações:
“Continuarei,
sem dúvida, a impacientar-me com o meu cocheiro Ivan, a discutir
inutilmente, a exprimir mal as minhas próprias idéias. Sentirei
sempre uma barreira entre o santuário da minha alma e a alma dos
outros, mesmo a da minha própria mulher. Sempre tornarei Kitty
responsável dos meus terrores. Arrependendo-me logo em seguida.
Continuarei a rezar sem saber por que rezo. Que importa? A minha vida
não estará mais à mercê dos acontecimentos, cada minuto de minha
existência terá um sentido incontestável. Agora possuirá o
sentido indubitável do bem que eu lhe sou capaz de infundir.”
Por
que Liêvin vem a desentranhar tais elucubrações, justo quando vem
de volta do quarto, onde vê seu filho pequeno e dele cuidou a mando
de Kitty?
Leitor,
encontrei-me nas dúvidas, na insegurança do personagem centro, que
é o próprio Tolstoi, e no seu desejo de ser feliz, fazer o mundo
feliz, e quando não, pelo menos suportável. Muitos se encontrarão
ainda.
Isto é
que é ser clássico. Isto é que ser literatura Seu valor social?
Ela se constitui num instituto ao mesmo tempo fechado e aberto, pelo
qual mantém uma vigilância subliminar sobre a sociedade. Ninguém,
hoje, tem dúvida de que os escritores clássicos como Tolstói,
Dostoievski, Gorki, Tchecov e tantos outros, cada um a seu modo,
contribuíram enormemente para as transformações da Rússia
imperial (nobre), como fariam, depois, com muito maiores
dificuldades, os que viveram o regime socialista como Pasternack,
Maiakovski, Soljenitzin, para citar apenas os mais conhecidos...
*Francisco Miguel de Moura, escritor brasileiro, membro da Academia Piauiense de Letras, mora em Teresina, Piauí, e é um leitor dos clássicos. E-mail:franciscomigueldemoura@gmail.com
*Francisco Miguel de Moura, escritor brasileiro, membro da Academia Piauiense de Letras, mora em Teresina, Piauí, e é um leitor dos clássicos. E-mail:franciscomigueldemoura@gmail.com
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