sábado, 26 de junho de 2021

                          
 
                                                        RASTROS

                                                             Romanilta Rocha*

A retomada dos dias da minha infância para melhor situar minha história de leitura proporcionou-me a evocação  de momentos que se traduziam em perfeitos encontros com o que costumamos denominar “leitura de mundo”. Contudo, à luz da minha “ignorância infantil” não podia vislumbrar quão importantes  far-se-iam, posteriormente, aqueles instantes para minha formação intelectual , também, humana.

E quais foram esses referenciais? Quem ou o que ancorou minhas indagações ante à compreensão do universo ao meu redor?

Tenho como respostas a estes questionamentos tênues lembranças ou fragmentos de algumas afetivas memórias que ainda teimam em brincar nos meus pensamentos.

No entanto, queria antes registrar que,   quando passei a entender, de fato,  a minha família, percebi que já não dispunha de avós, restava-me apenas o avô paterno e as escassas lembranças do pouco tempo entre a minha chegada  e a partida dele, portanto não tive o privilégio de ir à casa dos meus avós.  Todavia, como sempre tive predileção por estar entre pessoas com maior experiência de vida, sempre que podia estava visitando os tios, tias, parentes ou mesmo pessoas com as quais tivesse afinidade, tanto na minha São Julião, quanto nas suas adjacências.

Desta forma, a  primeira destas memórias me ocorre  na revisitação de humildes e diversas casas encravadas num destes lugarejos quaisquer da minha terra natal.  Por ocasião de uma farinhada ou “de um dia de ano”, mesmo “de um fim de semana num interior’.

 Embora nestas casas não se dispusesse de preciosos livros, dispunham , ao meu prisma, da sapiência materializada nas pessoas que nelas habitavam,  que numa rica tradição oral contavam e recontavam “causos”, “estórias de trancoso”, numa linguagem quase mágica, para mim, uma vez que se traduzia num falar fácil, cadente e gostoso de se apreciar, capaz de, ainda hoje, ecoar no íntimo do meu ser , trazendo à tona as gratificantes sensações da meninice. E vale dizer que as estórias de “Mouras Tortas, “Caiporas” ou de “Casas mal-assombradas” não estavam contidas em belas coleções  de “Era uma vez”, elas nasciam ou eram extraídas das memórias daqueles entes tão caros, por isso se faziam revestidas de tanto significado e encantamento.

Estas narrativass tinham, para mim, um valor ímpar: acalmavam os meus temores diante da miopia que tomava os meus olhos em relação ao mundo que me cercava, pois brotavam da vontade daquelas pessoas de apaziguarem os próprios temores ou das suas tentativas de  compreenderem o mundo também. Com estas histórias, eu aprendia que mesmo sem a mágica da palavra escrita, a gente assimila e repassa conhecimento, por gerações e gerações.

Um segundo momento que sedimentou minha história de leitura foi quando lá pela 4ª série do Fundamental tive a dádiva de ter como Mestra uma senhora de nome pomposo, D. Francisca Isaura, mas que todos conhecíamos como “D. Pilaia”. 

E que sorte tê-la como professora!  Ainda que à primeira vista ela parecesse encarnar o estereótipo de professora tradicional, não era o que ocorria, longe disto, dentro de todas as limitações, às vezes quase intransponíveis, a querida D.Pilaia, que ainda hoje me enche de alegria e de júbilo sempre que a encontro,  disseminou em mim o gosto pela leitura.  As pecinhas teatrais (ainda tenho amigos que me chamam de Angélica, uma personagem da Lygia Bojunga que corajosamente representei à época) os jograis, as poesias do Vinicius, da Cecilia (a inesquecível Canção da tarde no campo) ou do Bandeira (...”café com pão, café com pão, café com pão, Virge Maria que foi isto maquinista?”) ou ainda o respeito para conosco, seus alunos, são fatores que até hoje consigo rememorar.

O terceiro instante que muito contribuiu para dar forma à concepção de leitura que disponho, deu-se a partir de duas figuras masculinas relevantes para minha vida: o meu amado pai, João Aderson,  de quem  ganhei um tesouro em forma de livro,  uma singela edição bíblica, que a despeito de qualquer fé  professada , sempre foi  e continua sendo capaz de me direcionar ao Criador, em todas as circunstâncias.  A  outra pessoa,  Edilson Rocha, um  primo querido, (que me chamava e ainda me chama de “Miram”),   um dos seres de alma mais nobre que conheço, foi dele que,  no início da adolescência,  ganhei um exemplar do clássico “Pequeno Príncipe, de Exupéry, cuja significação contribuiu para o meu ingresso no fantástico mundo das palavras. Também , por intermédio deste primo querido, ainda na adolescência sorvia com sofreguidão clássicos e mais clássicos da literatura nacional e internacional: Jorge Amado, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Gabriel Garcia Marquez, Pablo Neruda dentre outros  muitos grandes escritores chegaram até mim pelas mãos deste estimado primo. Outras leituras provenientes desta mesma fonte, (a biblioteca do Edilson) , mas em tempos diferentes: Os Irmãos Karazamov, Dom Quixote, As brumas de Avalon,  Olga,

Brasil Nunca Mais, A Ilha, O diário de Anne Frank,só para citar apenas alguns, foram outros tesouros literários que muito contribuíram para minha formação, em todos os aspectos.

Logo, a afinidade pela leitura fez nascer em mim a paixão pelo escrever, acho que, talvez, pela inabilidade em demonstrar o que sentia através fala, acreditei, assim, que podia tecer, mediante o meu pobre dicionário, as minhas impressões sobre o mundo que me cerca, ainda que de maneira modesta.

                                        ****

*Romanilta Rocha, cronista, é confrade da Academia de Letras, da Ribeira do Riachão (ALVAR).              

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...