DA SOBREVIVÊNCIA DO SONETO
Da Costa e Silva e Francisco Miguel de Moura)
Rosidelma Pereira Fraga*
Da Costa e Silva e Francisco Miguel de Moura)
Rosidelma Pereira Fraga*
Nesta conferência, realço como objetivo fulcral examinar a literatura
piauiense, em geral e, em particular, a respeito de dois grandes poetas:
Antônio Francisco da Costa e Silva e Francisco Miguel de Moura. Nomeio como
palavras-chave a literariedade, a
história e a recepção do leitor, de modo que a minha reflexão se fundamente na
seguinte assertiva de Ezra Pound, em
seu ABC da literatura: o mau crítico identifica-se quando em
vez de debater a obra, discute-se o autor. Nessa perspectiva, interesso-me
falar acerca da literatura supracitada como arte, expressão de identidade,
memória e sistema literário, pautando-me no ponto de vista adotado por Antonio
Candido em sua Formação
da Literatura Brasileira (1987) e não como uma literatura documentária sobre o
Piauí, nem muito menos como vida e obra desarticuladas de uma estética
literária.
A literatura piauiense acabou
recebendo tal adjetivo, assim como a literatura mato-grossense e outras menos
divulgadas, por conta do “esquecimento”, mas elas são literatura brasileira
unicamente pela qualidade estética das obras literárias e de autores que
deveriam estar no destaque merecido em maior parte da história da literatura
brasileira, ao lado de Gonçalves Dias, Cruz e Souza, Manuel Bandeira, Carlos
Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, José de Alencar, Graciliano
Ramos, José Lins do Rego, Guimarães Rosa e tantos nomes relevantes da
literatura de todos os tempos, pois basta ler Poemas e canções, de Vicente de
Carvalho (1866-1924) e constatar que Da Costa e Silva possui o mesmo quilate
desse poeta no âmbito de uma literatura universal.
Da Costa e Silva e H. Dobal são
os grandes poetas do Piauí. Torquato Neto foi um dos fortes representantes do
“Movimento Tropicália” e tem o poema “Cogito” na seleção dos Cem melhores
poemas brasileiros do século, organizada por Ítalo Moriconi como igualmente
participa Mário Faustino com sua “Balada”, na terceira parte, curiosamente
intitulada “O cânone brasileiro”. Isso não é suficiente ao escritor de
qualidade literária. Respectivamente, Hardi Filho e Paulo Machado são grandes
vozes da poesia brasileira e se me estendesse na lista cairia no lugar onde não
planejei e nem pretendo chegar. Para um pequeno começo e arcabouço de nomes e
obras, recomendo que o leitor deguste a incansável pesquisa de Adrião Neto
(1995), no Dicionário Biográfico de escritores piauienses de todos os tempos,
Literatura do Piauí (1859-1999), de Francisco Miguel de Moura, editada pela
Academia Piauiense de Letras (2001), A poesia piauiense no século XX, de Assis
Brasil (1995), ou mesmo a Literatura piauiense – escorço histórico, de João
Pinheiro e, paulatinamente ler, conhecer, enamorar e julgar as obras,
independente do lugar onde esse leitor habite.
Peço licença poética aos poetas
da terra e aos leitores assíduos dessa literatura, sobretudo ao especialista da
obra de Da Costa e Silva, o Professor Doutor Cunha e Silva Filho com sua
pesquisa Da Costa e Silva: uma leitura da saudade. Pois bem, eu sou
genuinamente uma leitora ou a soma de outros leitores de mãos dadas, os quais
se tornam os responsáveis para que a obra literária permaneça viva e imortal,
uma vez que o escritor nunca tem a sua última palavra, ensinou-me o crítico
Maurice Blanchot, em O espaço literário (1987).
Abro um parêntese para realçar
o que a literatura piauiense tem de relevante em termos de especificidade do
texto literário e das qualidades estéticas tão imprescindíveis quanto aquela
literatura consagrada e destacada pela crítica hegemônica, mas que por razões
quiçá irrelevantes não entraram para o compêndio da literatura nacional. Isto
porque, para muitos, “literatura boa é a literatura lida”, ou “literatura de
qualidade é aquela confirmada pela crítica” ou “aquela literatura produzida nos
grandes centros ou nas regiões não periféricas”.
É bem verdade que muitos
autores em regiões periféricas não conquistaram uma cadeira de prestígio na
história da literatura brasileira para hoje entrar na discussão dos lugares ou
entre - lugares da poesia e prosa contemporâneas. Ou tal literatura não recebeu
honra ao mérito ou não fizeram jus a ela porque era produzida no Piauí e
arrabaldes. Aqui neste instante de escritura, eu exerço, em forma de memória, a
minha identidade perdida de uma pequena ex-leitora da graduação, hoje no
doutorado em estudos literários, mas curiosa pelas descobertas como sempre fui.
Recordo-me, com nitidez, que os meus professores de literatura brasileira nunca
levaram a literatura piauiense para sala de aula, pois a crítica selecionada
para leitura obrigatória também não falava dela, contudo um desses professores
entregou-me a chave do poético apresentando-me A Formação da Literatura
Brasileira para que, no futuro que agora se faz presente, eu estivesse aqui, de
corpo e alma, a falar de literatura em sua especificidade.
Pergunto então e quem for
leitor responda: como uma literatura pode ser lida se não é divulgada? Como um
estado que possui um conjunto de obras com qualidade estética e autores
significativos, inúmeras associações/centros culturais, academias literárias,
com uma forte recepção e público, não pode constituir um sistema literário e
entrar para a história da literatura dita nacional? É legítima a defesa de que
isso não se aplica no século XXI porque a literatura produzida nas cidades de
maior tradição literária: Amarante, Floriano, Luís Correia, Parnaíba, Campo
Maior, Oeiras e noutras cidades do estado do Piauí como na capital Teresina, a
terra do Torquato Neto, já não reside nas sombras do anonimato e nem nas ondas
das manifestações literárias ou conjunto de obras isoladas e sim uma literatura
que faz história em sua coletividade como escreveu o poeta Chico Moura, ao
discutir as origens da literatura piauinense: “literatura em sentido histórico
é literatura coletiva” (MOURA, 2008, p.1).
Atualmente, as obras literárias
piauienses são lidas e apreciadas por leitores do Brasil e fora do país, com
uma recepção calorosa. E não foi indispensável levantar “as bandeirinhas” para
comprovar se essa literatura é canônica ou não. Eu sou mato-grossense, nunca
fui literalmente ao Piauí, apenas literariamente. Porém, apreciei a poesia de
lá e reservei um espaço nas páginas da minha vida para escrever a propósito
dela, assim como investiguei a obra de Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto,
Manoel de Barros, Corsino Fortes (Cabo Verde), Mia Couto (Moçambique), José
Saramago e outros escritores de literatura em Língua Portuguesa.
Examino a obra como literatura e linguagem e não meramente
como lugares do Brasil ou especificamente do eixo Rio/São Paulo porque é a
literatura recomendada pela crítica hegemônica. Não estou fazendo política para
não lermos os clássicos, porquanto concordo com Italo Calvino quanto à
importância de Por que ler os clássicos, mas creio que a leitura deles é
crucial para posteriormente examinarmos que autores do Piauí, de Mato Grosso,
de Goiás e outros estados também leram os clássicos, escreveram e continuam a
criar obras de qualidade literária e nada deixam a desejar ao lado da
literatura nacional.
Sob esse prisma, abro mais um
parêntese para discordar daqueles que colocaram os adjetivos “literatura
piauiense”, “literatura goiana”, “literatura mato-grossense”, dos quais não sou
simpatizante e nem quero tomar partido, embora entenda que tais designações
nasceram com intuito de “acordar” os de fora e dizer: “aqui também nós temos
boa literatura”. Ainda assim, prefiro ler os poetas do Piauí como autores da
literatura nacional da mesma forma que leio Gonçalves Dias, Castro Alves,
Drummond, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Jorge de Lima,
Cecília Meireles, Manoel de Barros, Adélia Prado e outros nomes. Falar de um
poeta nacional é reconhecer em sua obra as qualidades de sua linguagem e
estilo, da forma como o crítico Wilson Martins glorificou H. Dobal,
comparando-o ao nível tão elevado na poesia brasileira como é João Cabral de
Melo Neto e enfatizando que ambos não têm nada a ver com a geração de 45.
Por assim defender, elegi dois
nomes, por critério de gosto peculiar, pela temática e pela composição poética,
dentre os quais apontarei sonetos marcantes, não querendo dizer que outros
autores e obras não mereçam destaques, mas como o meu espaço é exíguo faço a
minha indicação das vozes da literatura brasileira, em especial, do estado do
Piauí, libertando-me doravante do adjetivo. Escolho Zodíaco (1917) e Pandora
(1919), de Da Costa e Silva, Areias (1966) e Sonetos escolhidos (2003), de
Francisco Miguel de Moura, na ordem dos nomes e na pauta do meu dia e, é óbvio,
cometendo inúmeras injustiças com Torquato Neto, H. Dobal, Mário Faustino, O.
G. Rego de Carvalho, Hardi Filho, Luiz Filho de Oliveira e outros poetas e
romancistas que formam um sistema literário brasileiro.
Vamos ao poeta Antônio Francisco da Costa e Silva, o aclamado príncipe dos
poetas piauienses. Ao olhar a obra de Da Costa e Silva, considero-o como um
artista de todos os tempos e, mormente o poeta telúrico, cuja alma é
solidificada no tema da saudade, solidão e melancolia que ora é instaurada na
evocação da terra-mãe, ora nas reminiscências da infância.
Onde situar o poeta na literatura brasileira? Fausto Cunha assevera que o valor
de Da Costa e Silva é evidente. Ele pode circular nas estéticas simbolista,
parnasiana e modernista, ou melhor, “talvez ele seja o poeta angular das três
correntes, porque assimilou o Modernismo em sua primeira fase” (CUNHA, 1995,
p.56). Similarmente a Cunha, Assis Brasil certifica que Da Costa e Silva tem
suas obras filiadas nessas três escolas, ao apontá-lo também como herdeiro da
tradição romântica, simbolista e parnasiana e por seu convívio na fase
pré-modernista:
Era natural que Da Costa e
Silva fosse influenciado por nomes de quilate de Verlaine, Baudelaire, Nobre,
Cesário Verde, Antero de Quental, Cruz e Souza. Embora muitos críticos o situem
mais como parnasiano que como simbolista, por exemplo, alguns estudiosos de sua
poesia flagram também Da Costa e Silva interessando a sua musa na linguagem do
Modernismo (BRASIL, 1995, p.55-56).
Na minha leitura, Da Costa Silva é intensamente simbolista e sua linguagem
banha-se na fusão entre a sonoridade e o sentido. A linguagem poética sugere
por meio das repetições, da veia sinestésica e o poema passa a ser um véu
bordado de palavras. Da obra Zodíaco (1917), apresento o soneto “Saudade”:
SAUDADE
Saudade! Olhar de minha mãe rezando
e o pranto lento deslizando a fio...
Saudade! Amor de minha terra... O rio...
Cantigas de águas claras, soluçando.
Noites de junho. O caburé com frio,
ao luar, sobre o arvoredo... piando... piando...
e, ao vento, as folhas lívidas cantado
a saudade infeliz de um sol de estio.
Saudade! Asa de dor do pensamento!
Gemidos vãos de canaviais ao vento...
As mortalhas de névoa sobre a serra.
Saudade! O Parnaíba – velho monge –
as barbas brancas alongando... E, ao longe,
o mugido dos bois de minha terra...
(DA COSTA E SILVA).
A leitura do soneto de Da
Costa e Silva permite-me apontar a riqueza da universalidade temática que
aflora nos signos da lembrança da terra, dos espaços que marcam a identidade do
sujeito lírico-poeta (a casa da mãe, a terra, as festas juninas, a fazenda, o
Paranaíba - rio e cidade). A terra é liricamente banhada pela voz do poeta, sob
os símbolos alvos que lembram muito o poeta simbolista brasileiro Cruz e Souza,
na escolha de vocábulos sinestésicos e sugestivos: “águas claras, soluçando/gemidos
vãos de canaviais/barbas brancas”. Entretanto, percebo um traço ímpar que só um
poeta que sente o cheiro e vê a cor de suas raízes é capaz de imprimir. O poema
da nostalgia e da alegria leva o leitor para um ambiente que se abre para o
espaço da literariedade: as águas de/do Parnaíba. Esse espaço está na linguagem
que metaforiza e traduz a identidade marcada na escrita do outro (a terra) em
de si mesmo.
Da obra Pandora (1919), o
soneto “Sob outros céus” segue o mesmo arquétipo das reminiscências telúricas:
SOB OUTROS CÉUS
Eu sou tal qual o Parnaíba: existe
Dentro em meu ser uma tristeza inata,
Igual, talvez, à que no rio assiste
Ao refletir as árvores, na mata...
O seu destino em retratar consiste,
Porém o rio tudo o que retrata,
De alegre que era, vai tornando triste,
No fluido espelho móvel de ouro e prata...
Parece até que o rio tem saudade
Como eu, que também sou desta maneira,
Saudoso e triste em plena mocidade.
Dá-se em mim o fenômeno sombrio
Da refração das árvores da beira
Na superfície trêmula do rio...
(DA COSTA E SILVA, 1919).
No título do soneto perpassa a ótica de uma atmosfera germinada pelo
distanciamento. “Sob outros céus” revela a fusão melancólica do eu-lírico e do
rio Parnaíba, por meio dos elementos de similaridades (tal qual, igual). O
poeta assiste ao rio e às águas rasas que se esvaindo nas matas, vão se
emaranhando nesta contemplação da terra celebrada no âmbito da ausência,
saudade, dor, júbilo e nostalgia.
Tal exegese pode ser mais
plausível na terceira estrofe do soneto em que o sujeito lírico e a terra
passam a ser indissociáveis: “Parece até que o rio tem saudade/Como eu, que
também sou desta maneira, / Saudoso e triste em plena mocidade” (Versos 9-11).
O espaço poético descortina-se pelo encontro recíproco da alma sombria e da
superfície das águas.
Em efeito, o espaço da literariedade descortina-se
na dimensão dos opostos: terra e céu, finito e infinito, triste e alegre, os
quais formam imagens justapostas no ser da linguagem. E o canto da saudade
germina por meio do poder da imagem poética que equivale às figuras autênticas
e vivenciadas pelo poeta. Ademais, a saudade é uma temática dominante na obra
de Da Costa e Silva, de acordo com a defesa do professor e crítico Francisco
Cunha e Silva Filho. A lembrança é cantada sob a égide de imagens reais em
vários sonetos do poeta. A autenticidade das imagens em Da Costa e Silva casa-se
perfeitamente com Os signos em rotação, de Octavio Paz:
[...] as imagens do poeta
possuem autenticidade: o poeta as viu ou ouviu. São a expressão genuína de sua
visão e experiência do mundo. Trata-se de uma verdade objetiva, essa verdade
estética da imagem que só vale dentro de seu próprio universo (PAZ, 1986, p.
37).
Paz (1986) garante que as imagens
jamais se interpretam com palavras, uma vez que as imagens vão além do
signo-objeto. Cabe, ao leitor, um repensar e reviver dessa veia imagística.
Isso porque, numa perspectiva valéryana,
o poeta e o leitor devem jogar o mesmo jogo, pensando por imagens. E a obra de
Da Costa e Silva é um convite ao leitor na revisitação telúrica e no
enaltecimento da infância liricamente sugestiva, simbólica e real.
Todo o construto imagético de
Da Costa e Silva vale-se do universal, pois o poeta canta a sua aldeia,
lembrando Léon Tolstoi: “se queres ser grande, cante primeiro a sua aldeia”. O
poeta é universal nos temas da saudade e da infância nos rios do Piauí. Tais
escolhas fazem o texto ultrapassar os anos, sendo sempre atual, porquanto, na
visão do formalista russo Tomachevski, em sua obra Temática, o bom escritor
deve perseguir a temática universal, aquela que em todas as épocas será lida e
relida e capaz de reflexões. E não há nada mais de universal do que a terra, o
lugar de habitação, especialmente a mais alta expressão de identidade e memória
de um povo.
Na mesma estirpe de memória
sinestésica, histórias, saudades e homenagem ao príncipe dos poetas piauiense,
é o soneto “Visão do Rio Parnaíba”, da obra Areias, de Francisco Miguel de
Moura que, para mim, apesar de ser a obra inaugural do poeta, é um dos grandes
livros, ao lado de Universo das águas (1979), Sonetos escolhidos (2003) e
outras obras.
O poeta Francisco Miguel de Moura, membro da Academia Piauiense de Letras,
começou a produzir na década de 1960 e está em constante atividade poética e de
crítica literária. Uma de suas formas de composição é o soneto, intensamente
carregado de imagens, metáforas e símbolos que também aproximam o leitor do
mundo telúrico. Por excelência, um sonetista de mesma qualidade literária que
Da Costa e Silva e Raimundo Correia. A propósito, leia-se da obra Areias, o
soneto “Visão do rio Parnaíba”:
VISÃO DO RIO PARNAÍBA
(Com o perdão de Da Costa e Silva, o
maior dos poetas piauienses).
Parnaíba, te vejo intensamente,
na dor de “velho monge” resignado,
a dar vida, prendido na corrente,
a derramar-te longe, e fatigado.
No rijo dorso levas, noite e dia,
lendas, canoas, barcos, pescadores.
E em cada braço, a verde ramaria
enfeitada de rendas e de cores.
Sem bordão, sem rosário, sem vaidade,
desafias o sol, a areia ardente,
abraçando cidade e mais cidade.
Nessa faina, ora calma, ora inquieta,
humildemente, carismaticamente,
cantas do canto que cantou o poeta.
(MIGUEL DE MOURA, 1966).
A sugestão e o encadeamento de
imagens poéticas são pontos fulcrais em Miguel de Moura. Para o escritor
paraibano Paulo Nunes Batista (2002), no prefácio de Sonetos escolhidos: “[...]
um dos fortes da poesia de Miguel de Moura é a criação de imagens poéticas de
grande sugestividade. É um descrente, como João Cabral de Melo Neto e Bernardo
Élis, que de vez em quando fala em Deus”, como irei mostrar posteriormente ao
soneto acima.
Em “visão do Rio Paranaíba”, o
poeta reconhece a presença precursora do poeta príncipe dos piauienses em seu
pedido de “licença poética” quase em forma de homenagem a Da Costa e Silva,
sobretudo ao finalizar o soneto. Assim como no texto de Da Costa e Silva, neste
de Miguel de Moura sobrepuja o efeito sugestivo-visual em que as imagens da
terra, da cidade, as cores, as lendas e as histórias se fundem em real grandeza
e descrição pictórica.
Em um único verso, o eu-lírico
anuncia a sua visão do rio: “Parnaíba, te
vejo intensamente”. Os outros versos que seguem são encadeamentos de
imagens próximas de uma tela que vai sendo, aos poucos, iluminada pelo lirismo
da nostalgia fatigada do “velho monge”.
Ainda que o poeta não selecione substantivos que se oponham às palavras “dor e prisão” da primeira estrofe, o
leitor há de concordar que a sugestão dos signos na segunda estrofe traduz o
significado da alegria e da liberdade:
No rijo dorso levas, noite e dia,
lendas, canoas, barcos, pescadores.
E em cada braço, a verde ramaria
enfeitada de rendas e de cores.
Nos versos acima, a poetização
é levada ao plano de um quadro artístico que muito lembra a comparação de
Simónides de Céos quando apontou a pintura como uma “poesia muda e a poesia uma
pintura falante” (Muta poesis, eloquens pictura). Em Miguel de Moura, a poesia
parece comunicar-se com a plasticidade das cores da pintura, com os bordados,
nos dois últimos versos da segunda estrofe, mas ela não é uma poesia decorativa
por si só, é antes de tudo expressão autêntica de uma terra amada pelo poeta.
Juntamente a tal imagem, o
leitor tem o canto das lendas, impressões culturais, cantadas e contadas pelos
pescadores às margens verdes desse universo mítico que vai se transformando o
Rio de todos os poetas piauienses que me faz recordar intensamente dos versos de
Alberto Caeiro: “o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia [...] Porque ninguém
nunca pensou no que há para além do rio de minha aldeia”.
Para além dessa aldeia
piauiense, o rio Parnaíba, sem vaidade, sugere o símbolo da seca e opostamente
o transbordar e o abraço de outras águas. A imagem que permanece no soneto é a
de que o Rio Parnaíba será sempre o espaço inexaurível dos poetas que se
misturam ao som das águas e das palavras, nomeadamente na evocação intertextual
de Da Costa e Silva, revisitado na voz lírica de Francisco Miguel de Moura.
A respeito dessa marca
intertextual, mas noutra perspectiva de rememoração, cito o soneto “Delírio”.
Nele, a figura humana instaura-se no limiar das incertezas e da descrença que
se assemelha ao desejo de Criador do Verbo, todavia um criador de imagens
delirantes, com recortes na tessitura poética de memórias discursivas:
DELÍRIO
Peguei da minha Bíblia Sagrada
pensando nela achar todo o Universo.
Lida e relida, não encontrei nada,
tão contrafeito, em dúvidas imerso.
Não tendo a fé no coração gravada,
a virgem fé de remover montanha,
a palavra de Deus, viva, inspirada,
trouxe-me a dor em dúvida tamanha.
Assim, crendo e descrendo, já deliro.
Assim, dias e noites se consomem,
e eu filosofo as dores que transpiro.
Se, enfim, elevo os pensamentos meus,
tenho a angústia infinita de ser homem,
tenho o imortal desejo de ser Deus.
(MIGUEL DE MOURA).
O soneto é caracterizado pela recorrência da memória lida e o leitor é
provocado em dois instantes antagônicos: o momento que se configura na imagem
de um sujeito lírico ateu (descrente) e o outro momento poético de um eu
confesso na infinitude do Criador Divino e das Escrituras Sagradas. Não estou
afirmando nada sobre o sujeito autobiográfico porque não conheço a vida de
Francisco Miguel de Moura e, orientada por Ezra Pound, citado alhures, não
pretendi falar do autor. É a obra que me proporciona a duplicidade de sentido
na exploração da literariedade.
Através dela, o poeta revela e desvela os anseios humanos por uma força
mística, agnóstica, existencial e transcendental, ao mergulhar-se no desejo de
compreensão do próprio universo, chegando a confundir-se nele e transversalmente
pelo verbo que se faz carne-palavra. Concernente a similar interpretação, Nely
Novaes Coelho escreveu: “Francisco Miguel
de Moura aponta para a contradição existente entre o mundo à sua volta,
mergulhado no escuro e o súbito vislumbre da força criadora, latente em seu próprio eu”.
O texto permite a leitura dos
signos opostos por intermédio dos verbos “crer” e “descrer”, “encontrar” e
“desencontrar” (no sentido de não achar). Dessa cadeia entre o significante e o
significado, o leitor tem outros percursos da escritura de negação e afirmação:
“não tendo a fé de remover montanhas”, “crendo e descrendo” e “sendo eu
filósofo”. Em consequência, o ser existencial entra no conflito que move todos
os seres: vida e morte, Deus e Demônio, céu e inferno. É justamente tal
antagonismo que leva o eu-lírico à confissão de suas angústias humanas,
revelando, por meio da imagem poética, o anseio dilacerado de converter-se na
imagem de Deus como o criador do Universo, ainda que no plano enigmático e
liricamente alucinado.
O soneto de Chico Miguel
marca-se por um projeto de poiesis que
começa e termina em si mesmo: a busca pela completude e compreensão humana
frente à delirante ansiedade da origem da vida. Cumpre-me ainda dizer que a
poesia cantada por Chico Miguel neste e noutros sonetos se aproximam dos
pressupostos básicos da imagem poética discutida pelo poeta e crítico Paul
Valéry (1991) quando escreveu, em Poesia e pensamento abstrato, que a poesia é
uma dança cíclica que começa e fecha em si mesma.
Finalizando a minha homenagem concisa,
sinto-me segura em dizer que a leitura dos sonetos de Da Costa e Silva e
Francisco Miguel de Moura remete o leitor aos aspectos da revisitação do
passado e dos momentos sui generis de poetas que não dissimulam na criação das
imagens telúricas, pois ambos sentem e apalpam cada detalhe presenciado nos
dias mais venturosos da vida: a infância. Esta é aflorada pela imaginação, num
espaço utópico e mítico arquitetado pela memória: o rio Parnaíba. Tal exegese
me fez pensar no fragmento do poema que abre “Areias”:
Não deixes que a areia
branca da infância
enferruge e coma
tua coragem.
Como a aranha tece,
tece a tua teia.
(MIGUEL DE MOURA, 1966).
E nas contexturas de memórias e
na celebração poética da saudade, em momentos de produção cronologicamente
díspares, dois grandes poetas brasileiros convergem-se nas imagens da
terra-sacramento: o Piauí. Da Costa e Silva e Chico Miguel descortinam o espaço
poético num cenário paradisíaco ou numa canção de Pasárgada piauiense que,
pensando em Paul Ricouer
(1978), seria a nova aurora da palavra, uma vez que, com o desabrochar da
metáfora, a imagem poética “torna-se um novo ser da nossa linguagem,
exprime-nos ao tornar-nos naquilo que ela exprime” (RICOUER, 1978, p. 321).
_______________________
Referências Bibliográficas:
BLANCHOT, M. O espaço literário.Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:
Rocco, 1987.
BRASIL, Assis. A poesia piauiense no século XX. (Antologia). Rio de
Janeiro: Teresina: Fundação cultural Monsenhor Chave. Imago Editora: 1995, 328
p.
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. 7. ed. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1987.
DA COSTA E SILVA, Antônio Francisco. Poesias completas (Org) Alberto
Vasconcellos da Costa e Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, 400p.
SILVA FILHO, Cunha Francisco. Da Costa e Silva: uma leitura da saudade.
Dissertação de Mestrado. Teresina. Editora da Universidade Federal do
Piauí/Academia Piauiense de Letras, 1996.
MOURA, Francisco Miguel de. A literatura piauiense por Francisco Miguel de
Moura. In: Entretextos (org) Dilson Lages. Disponível em: Poeta mato-grossense.
Professora Mestre e doutoranda na área de Estudos Literários – Universidade
Federal de Goiás – Goiânia – GO.
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