quarta-feira, 23 de maio de 2018

DA SOBREVIVÊNCIA DO SONETO - Francisco Miguel de Moura e Da Costa e Silva


 DA SOBREVIVÊNCIA DO SONETO            

Da Costa e Silva e Francisco Miguel de Moura)

                                         Rosidelma Pereira Fraga*

        Nesta conferência, realço como objetivo fulcral examinar a literatura piauiense, em geral e, em particular, a respeito de dois grandes poetas: Antônio Francisco da Costa e Silva e Francisco Miguel de Moura. Nomeio como palavras-chave a literariedade, a história e a recepção do leitor, de modo que a minha reflexão se fundamente na seguinte assertiva de Ezra Pound, em seu ABC da literatura: o mau crítico identifica-se quando em vez de debater a obra, discute-se o autor. Nessa perspectiva, interesso-me falar acerca da literatura supracitada como arte, expressão de identidade, memória e sistema literário, pautando-me no ponto de vista adotado por Antonio Candido em sua Formação da Literatura Brasileira (1987) e não como uma literatura documentária sobre o Piauí, nem muito menos como vida e obra desarticuladas de uma estética literária.

          A literatura piauiense acabou recebendo tal adjetivo, assim como a literatura mato-grossense e outras menos divulgadas, por conta do “esquecimento”, mas elas são literatura brasileira unicamente pela qualidade estética das obras literárias e de autores que deveriam estar no destaque merecido em maior parte da história da literatura brasileira, ao lado de Gonçalves Dias, Cruz e Souza, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, José de Alencar, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Guimarães Rosa e tantos nomes relevantes da literatura de todos os tempos, pois basta ler Poemas e canções, de Vicente de Carvalho (1866-1924) e constatar que Da Costa e Silva possui o mesmo quilate desse poeta no âmbito de uma literatura universal.
          Da Costa e Silva e H. Dobal são os grandes poetas do Piauí. Torquato Neto foi um dos fortes representantes do “Movimento Tropicália” e tem o poema “Cogito” na seleção dos Cem melhores poemas brasileiros do século, organizada por Ítalo Moriconi como igualmente participa Mário Faustino com sua “Balada”, na terceira parte, curiosamente intitulada “O cânone brasileiro”. Isso não é suficiente ao escritor de qualidade literária. Respectivamente, Hardi Filho e Paulo Machado são grandes vozes da poesia brasileira e se me estendesse na lista cairia no lugar onde não planejei e nem pretendo chegar. Para um pequeno começo e arcabouço de nomes e obras, recomendo que o leitor deguste a incansável pesquisa de Adrião Neto (1995), no Dicionário Biográfico de escritores piauienses de todos os tempos, Literatura do Piauí (1859-1999), de Francisco Miguel de Moura, editada pela Academia Piauiense de Letras (2001), A poesia piauiense no século XX, de Assis Brasil (1995), ou mesmo a Literatura piauiense – escorço histórico, de João Pinheiro e, paulatinamente ler, conhecer, enamorar e julgar as obras, independente do lugar onde esse leitor habite.
          Peço licença poética aos poetas da terra e aos leitores assíduos dessa literatura, sobretudo ao especialista da obra de Da Costa e Silva, o Professor Doutor Cunha e Silva Filho com sua pesquisa Da Costa e Silva: uma leitura da saudade. Pois bem, eu sou genuinamente uma leitora ou a soma de outros leitores de mãos dadas, os quais se tornam os responsáveis para que a obra literária permaneça viva e imortal, uma vez que o escritor nunca tem a sua última palavra, ensinou-me o crítico Maurice Blanchot, em O espaço literário (1987).
          Abro um parêntese para realçar o que a literatura piauiense tem de relevante em termos de especificidade do texto literário e das qualidades estéticas tão imprescindíveis quanto aquela literatura consagrada e destacada pela crítica hegemônica, mas que por razões quiçá irrelevantes não entraram para o compêndio da literatura nacional. Isto porque, para muitos, “literatura boa é a literatura lida”, ou “literatura de qualidade é aquela confirmada pela crítica” ou “aquela literatura produzida nos grandes centros ou nas regiões não periféricas”.
           É bem verdade que muitos autores em regiões periféricas não conquistaram uma cadeira de prestígio na história da literatura brasileira para hoje entrar na discussão dos lugares ou entre - lugares da poesia e prosa contemporâneas. Ou tal literatura não recebeu honra ao mérito ou não fizeram jus a ela porque era produzida no Piauí e arrabaldes. Aqui neste instante de escritura, eu exerço, em forma de memória, a minha identidade perdida de uma pequena ex-leitora da graduação, hoje no doutorado em estudos literários, mas curiosa pelas descobertas como sempre fui. Recordo-me, com nitidez, que os meus professores de literatura brasileira nunca levaram a literatura piauiense para sala de aula, pois a crítica selecionada para leitura obrigatória também não falava dela, contudo um desses professores entregou-me a chave do poético apresentando-me A Formação da Literatura Brasileira para que, no futuro que agora se faz presente, eu estivesse aqui, de corpo e alma, a falar de literatura em sua especificidade.
          Pergunto então e quem for leitor responda: como uma literatura pode ser lida se não é divulgada? Como um estado que possui um conjunto de obras com qualidade estética e autores significativos, inúmeras associações/centros culturais, academias literárias, com uma forte recepção e público, não pode constituir um sistema literário e entrar para a história da literatura dita nacional? É legítima a defesa de que isso não se aplica no século XXI porque a literatura produzida nas cidades de maior tradição literária: Amarante, Floriano, Luís Correia, Parnaíba, Campo Maior, Oeiras e noutras cidades do estado do Piauí como na capital Teresina, a terra do Torquato Neto, já não reside nas sombras do anonimato e nem nas ondas das manifestações literárias ou conjunto de obras isoladas e sim uma literatura que faz história em sua coletividade como escreveu o poeta Chico Moura, ao discutir as origens da literatura piauinense: “literatura em sentido histórico é literatura coletiva” (MOURA, 2008, p.1).
          Atualmente, as obras literárias piauienses são lidas e apreciadas por leitores do Brasil e fora do país, com uma recepção calorosa. E não foi indispensável levantar “as bandeirinhas” para comprovar se essa literatura é canônica ou não. Eu sou mato-grossense, nunca fui literalmente ao Piauí, apenas literariamente. Porém, apreciei a poesia de lá e reservei um espaço nas páginas da minha vida para escrever a propósito dela, assim como investiguei a obra de Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto, Manoel de Barros, Corsino Fortes (Cabo Verde), Mia Couto (Moçambique), José Saramago e outros escritores de literatura em Língua Portuguesa. Examino a obra como literatura e linguagem e não meramente como lugares do Brasil ou especificamente do eixo Rio/São Paulo porque é a literatura recomendada pela crítica hegemônica. Não estou fazendo política para não lermos os clássicos, porquanto concordo com Italo Calvino quanto à importância de Por que ler os clássicos, mas creio que a leitura deles é crucial para posteriormente examinarmos que autores do Piauí, de Mato Grosso, de Goiás e outros estados também leram os clássicos, escreveram e continuam a criar obras de qualidade literária e nada deixam a desejar ao lado da literatura nacional.
          Sob esse prisma, abro mais um parêntese para discordar daqueles que colocaram os adjetivos “literatura piauiense”, “literatura goiana”, “literatura mato-grossense”, dos quais não sou simpatizante e nem quero tomar partido, embora entenda que tais designações nasceram com intuito de “acordar” os de fora e dizer: “aqui também nós temos boa literatura”. Ainda assim, prefiro ler os poetas do Piauí como autores da literatura nacional da mesma forma que leio Gonçalves Dias, Castro Alves, Drummond, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Jorge de Lima, Cecília Meireles, Manoel de Barros, Adélia Prado e outros nomes. Falar de um poeta nacional é reconhecer em sua obra as qualidades de sua linguagem e estilo, da forma como o crítico Wilson Martins glorificou H. Dobal, comparando-o ao nível tão elevado na poesia brasileira como é João Cabral de Melo Neto e enfatizando que ambos não têm nada a ver com a geração de 45.
          Por assim defender, elegi dois nomes, por critério de gosto peculiar, pela temática e pela composição poética, dentre os quais apontarei sonetos marcantes, não querendo dizer que outros autores e obras não mereçam destaques, mas como o meu espaço é exíguo faço a minha indicação das vozes da literatura brasileira, em especial, do estado do Piauí, libertando-me doravante do adjetivo. Escolho Zodíaco (1917) e Pandora (1919), de Da Costa e Silva, Areias (1966) e Sonetos escolhidos (2003), de Francisco Miguel de Moura, na ordem dos nomes e na pauta do meu dia e, é óbvio, cometendo inúmeras injustiças com Torquato Neto, H. Dobal, Mário Faustino, O. G. Rego de Carvalho, Hardi Filho, Luiz Filho de Oliveira e outros poetas e romancistas que formam um sistema literário brasileiro.
Vamos ao poeta Antônio Francisco da Costa e Silva, o aclamado príncipe dos poetas piauienses. Ao olhar a obra de Da Costa e Silva, considero-o como um artista de todos os tempos e, mormente o poeta telúrico, cuja alma é solidificada no tema da saudade, solidão e melancolia que ora é instaurada na evocação da terra-mãe, ora nas reminiscências da infância.
Onde situar o poeta na literatura brasileira? Fausto Cunha assevera que o valor de Da Costa e Silva é evidente. Ele pode circular nas estéticas simbolista, parnasiana e modernista, ou melhor, “talvez ele seja o poeta angular das três correntes, porque assimilou o Modernismo em sua primeira fase” (CUNHA, 1995, p.56). Similarmente a Cunha, Assis Brasil certifica que Da Costa e Silva tem suas obras filiadas nessas três escolas, ao apontá-lo também como herdeiro da tradição romântica, simbolista e parnasiana e por seu convívio na fase pré-modernista:
          Era natural que Da Costa e Silva fosse influenciado por nomes de quilate de Verlaine, Baudelaire, Nobre, Cesário Verde, Antero de Quental, Cruz e Souza. Embora muitos críticos o situem mais como parnasiano que como simbolista, por exemplo, alguns estudiosos de sua poesia flagram também Da Costa e Silva interessando a sua musa na linguagem do Modernismo (BRASIL, 1995, p.55-56).
Na minha leitura, Da Costa Silva é intensamente simbolista e sua linguagem banha-se na fusão entre a sonoridade e o sentido. A linguagem poética sugere por meio das repetições, da veia sinestésica e o poema passa a ser um véu bordado de palavras. Da obra Zodíaco (1917), apresento o soneto “Saudade”: 

SAUDADE

Saudade! Olhar de minha mãe rezando
e o pranto lento deslizando a fio...
Saudade! Amor de minha terra... O rio...
Cantigas de águas claras, soluçando.

Noites de junho. O caburé com frio,
ao luar, sobre o arvoredo... piando... piando...
e, ao vento, as folhas lívidas cantado
a saudade infeliz de um sol de estio.

Saudade! Asa de dor do pensamento!
Gemidos vãos de canaviais ao vento...
As mortalhas de névoa sobre a serra.

Saudade! O Parnaíba – velho monge – 
as barbas brancas alongando... E, ao longe,
o mugido dos bois de minha terra...
                       (DA COSTA E SILVA).

          A leitura do soneto de Da Costa e Silva permite-me apontar a riqueza da universalidade temática que aflora nos signos da lembrança da terra, dos espaços que marcam a identidade do sujeito lírico-poeta (a casa da mãe, a terra, as festas juninas, a fazenda, o Paranaíba - rio e cidade). A terra é liricamente banhada pela voz do poeta, sob os símbolos alvos que lembram muito o poeta simbolista brasileiro Cruz e Souza, na escolha de vocábulos sinestésicos e sugestivos: “águas claras, soluçando/gemidos vãos de canaviais/barbas brancas”. Entretanto, percebo um traço ímpar que só um poeta que sente o cheiro e vê a cor de suas raízes é capaz de imprimir. O poema da nostalgia e da alegria leva o leitor para um ambiente que se abre para o espaço da literariedade: as águas de/do Parnaíba. Esse espaço está na linguagem que metaforiza e traduz a identidade marcada na escrita do outro (a terra) em de si mesmo.
          Da obra Pandora (1919), o soneto “Sob outros céus” segue o mesmo arquétipo das reminiscências telúricas:


SOB OUTROS CÉUS 

Eu sou tal qual o Parnaíba: existe
Dentro em meu ser uma tristeza inata,
Igual, talvez, à que no rio assiste
Ao refletir as árvores, na mata...

O seu destino em retratar consiste,
Porém o rio tudo o que retrata,
De alegre que era, vai tornando triste,
No fluido espelho móvel de ouro e prata...

Parece até que o rio tem saudade
Como eu, que também sou desta maneira,
Saudoso e triste em plena mocidade.

Dá-se em mim o fenômeno sombrio
Da refração das árvores da beira
Na superfície trêmula do rio...

        (DA COSTA E SILVA, 1919).


No título do soneto perpassa a ótica de uma atmosfera germinada pelo distanciamento. “Sob outros céus” revela a fusão melancólica do eu-lírico e do rio Parnaíba, por meio dos elementos de similaridades (tal qual, igual). O poeta assiste ao rio e às águas rasas que se esvaindo nas matas, vão se emaranhando nesta contemplação da terra celebrada no âmbito da ausência, saudade, dor, júbilo e nostalgia.

          Tal exegese pode ser mais plausível na terceira estrofe do soneto em que o sujeito lírico e a terra passam a ser indissociáveis: “Parece até que o rio tem saudade/Como eu, que também sou desta maneira, / Saudoso e triste em plena mocidade” (Versos 9-11). O espaço poético descortina-se pelo encontro recíproco da alma sombria e da superfície das águas.

Em efeito, o espaço da literariedade descortina-se na dimensão dos opostos: terra e céu, finito e infinito, triste e alegre, os quais formam imagens justapostas no ser da linguagem. E o canto da saudade germina por meio do poder da imagem poética que equivale às figuras autênticas e vivenciadas pelo poeta. Ademais, a saudade é uma temática dominante na obra de Da Costa e Silva, de acordo com a defesa do professor e crítico Francisco Cunha e Silva Filho. A lembrança é cantada sob a égide de imagens reais em vários sonetos do poeta. A autenticidade das imagens em Da Costa e Silva casa-se perfeitamente com Os signos em rotação, de Octavio Paz:

          [...] as imagens do poeta possuem autenticidade: o poeta as viu ou ouviu. São a expressão genuína de sua visão e experiência do mundo. Trata-se de uma verdade objetiva, essa verdade estética da imagem que só vale dentro de seu próprio universo (PAZ, 1986, p. 37).

          Paz (1986) garante que as imagens jamais se interpretam com palavras, uma vez que as imagens vão além do signo-objeto. Cabe, ao leitor, um repensar e reviver dessa veia imagística. Isso porque, numa perspectiva valéryana, o poeta e o leitor devem jogar o mesmo jogo, pensando por imagens. E a obra de Da Costa e Silva é um convite ao leitor na revisitação telúrica e no enaltecimento da infância liricamente sugestiva, simbólica e real.

          Todo o construto imagético de Da Costa e Silva vale-se do universal, pois o poeta canta a sua aldeia, lembrando Léon Tolstoi: “se queres ser grande, cante primeiro a sua aldeia”. O poeta é universal nos temas da saudade e da infância nos rios do Piauí. Tais escolhas fazem o texto ultrapassar os anos, sendo sempre atual, porquanto, na visão do formalista russo Tomachevski, em sua obra Temática, o bom escritor deve perseguir a temática universal, aquela que em todas as épocas será lida e relida e capaz de reflexões. E não há nada mais de universal do que a terra, o lugar de habitação, especialmente a mais alta expressão de identidade e memória de um povo.

           Na mesma estirpe de memória sinestésica, histórias, saudades e homenagem ao príncipe dos poetas piauiense, é o soneto “Visão do Rio Parnaíba”, da obra Areias, de Francisco Miguel de Moura que, para mim, apesar de ser a obra inaugural do poeta, é um dos grandes livros, ao lado de Universo das águas (1979), Sonetos escolhidos (2003) e outras obras.
O poeta Francisco Miguel de Moura, membro da Academia Piauiense de Letras, começou a produzir na década de 1960 e está em constante atividade poética e de crítica literária. Uma de suas formas de composição é o soneto, intensamente carregado de imagens, metáforas e símbolos que também aproximam o leitor do mundo telúrico. Por excelência, um sonetista de mesma qualidade literária que Da Costa e Silva e Raimundo Correia. A propósito, leia-se da obra Areias, o soneto “Visão do rio Parnaíba”: 

VISÃO DO RIO PARNAÍBA

(Com o perdão de Da Costa e Silva, o maior dos poetas piauienses).


Parnaíba, te vejo intensamente,
na dor de “velho monge” resignado,
a dar vida, prendido na corrente,
a derramar-te  longe, e fatigado.

No rijo dorso levas, noite e dia, 
lendas, canoas, barcos, pescadores.
E em cada braço, a verde ramaria
enfeitada de rendas e de cores.

Sem bordão, sem rosário, sem vaidade,
desafias o sol, a areia ardente,
abraçando cidade e mais cidade.

Nessa faina, ora calma, ora inquieta,
humildemente, carismaticamente,
cantas do canto que cantou o poeta.

          (MIGUEL DE MOURA, 1966).



          A sugestão e o encadeamento de imagens poéticas são pontos fulcrais em Miguel de Moura. Para o escritor paraibano Paulo Nunes Batista (2002), no prefácio de Sonetos escolhidos: “[...] um dos fortes da poesia de Miguel de Moura é a criação de imagens poéticas de grande sugestividade. É um descrente, como João Cabral de Melo Neto e Bernardo Élis, que de vez em quando fala em Deus”, como irei mostrar posteriormente ao soneto acima.

          Em “visão do Rio Paranaíba”, o poeta reconhece a presença precursora do poeta príncipe dos piauienses em seu pedido de “licença poética” quase em forma de homenagem a Da Costa e Silva, sobretudo ao finalizar o soneto. Assim como no texto de Da Costa e Silva, neste de Miguel de Moura sobrepuja o efeito sugestivo-visual em que as imagens da terra, da cidade, as cores, as lendas e as histórias se fundem em real grandeza e descrição pictórica.

           Em um único verso, o eu-lírico anuncia a sua visão do rio: “Parnaíba, te vejo intensamente”. Os outros versos que seguem são encadeamentos de imagens próximas de uma tela que vai sendo, aos poucos, iluminada pelo lirismo da nostalgia fatigada do “velho monge”. Ainda que o poeta não selecione substantivos que se oponham às palavras “dor e prisão” da primeira estrofe, o leitor há de concordar que a sugestão dos signos na segunda estrofe traduz o significado da alegria e da liberdade:


No rijo dorso levas, noite e dia, 
lendas, canoas, barcos, pescadores.
E em cada braço, a verde ramaria
enfeitada de rendas e de cores.


          Nos versos acima, a poetização é levada ao plano de um quadro artístico que muito lembra a comparação de Simónides de Céos quando apontou a pintura como uma “poesia muda e a poesia uma pintura falante” (Muta poesis, eloquens pictura). Em Miguel de Moura, a poesia parece comunicar-se com a plasticidade das cores da pintura, com os bordados, nos dois últimos versos da segunda estrofe, mas ela não é uma poesia decorativa por si só, é antes de tudo expressão autêntica de uma terra amada pelo poeta.

           Juntamente a tal imagem, o leitor tem o canto das lendas, impressões culturais, cantadas e contadas pelos pescadores às margens verdes desse universo mítico que vai se transformando o Rio de todos os poetas piauienses que me faz recordar intensamente dos versos de Alberto Caeiro: “o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia [...] Porque ninguém nunca pensou no que há para além do rio de minha aldeia”.

          Para além dessa aldeia piauiense, o rio Parnaíba, sem vaidade, sugere o símbolo da seca e opostamente o transbordar e o abraço de outras águas. A imagem que permanece no soneto é a de que o Rio Parnaíba será sempre o espaço inexaurível dos poetas que se misturam ao som das águas e das palavras, nomeadamente na evocação intertextual de Da Costa e Silva, revisitado na voz lírica de Francisco Miguel de Moura.

          A respeito dessa marca intertextual, mas noutra perspectiva de rememoração, cito o soneto “Delírio”. Nele, a figura humana instaura-se no limiar das incertezas e da descrença que se assemelha ao desejo de Criador do Verbo, todavia um criador de imagens delirantes, com recortes na tessitura poética de memórias discursivas:

DELÍRIO 

Peguei da minha Bíblia Sagrada
pensando nela achar todo o Universo.
Lida e relida, não encontrei nada,
tão contrafeito, em dúvidas imerso.

Não tendo a fé no coração gravada,
a virgem fé de remover montanha,
a palavra de Deus, viva, inspirada,
trouxe-me a dor em dúvida tamanha.

Assim, crendo e descrendo, já deliro.
Assim, dias e noites se consomem,
e eu filosofo as dores que transpiro.

Se, enfim, elevo os pensamentos meus,
tenho a angústia infinita de ser homem,
tenho o imortal desejo de ser Deus.

           (MIGUEL DE MOURA).


O soneto é caracterizado pela recorrência da memória lida e o leitor é provocado em dois instantes antagônicos: o momento que se configura na imagem de um sujeito lírico ateu (descrente) e o outro momento poético de um eu confesso na infinitude do Criador Divino e das Escrituras Sagradas. Não estou afirmando nada sobre o sujeito autobiográfico porque não conheço a vida de Francisco Miguel de Moura e, orientada por Ezra Pound, citado alhures, não pretendi falar do autor. É a obra que me proporciona a duplicidade de sentido na exploração da literariedade. Através dela, o poeta revela e desvela os anseios humanos por uma força mística, agnóstica, existencial e transcendental, ao mergulhar-se no desejo de compreensão do próprio universo, chegando a confundir-se nele e transversalmente pelo verbo que se faz carne-palavra. Concernente a similar interpretação, Nely Novaes Coelho escreveu: “Francisco Miguel de Moura aponta para a contradição existente entre o mundo à sua volta, mergulhado no escuro e o súbito vislumbre da força criadora, latente em seu próprio eu”.

          O texto permite a leitura dos signos opostos por intermédio dos verbos “crer” e “descrer”, “encontrar” e “desencontrar” (no sentido de não achar). Dessa cadeia entre o significante e o significado, o leitor tem outros percursos da escritura de negação e afirmação: “não tendo a fé de remover montanhas”, “crendo e descrendo” e “sendo eu filósofo”. Em consequência, o ser existencial entra no conflito que move todos os seres: vida e morte, Deus e Demônio, céu e inferno. É justamente tal antagonismo que leva o eu-lírico à confissão de suas angústias humanas, revelando, por meio da imagem poética, o anseio dilacerado de converter-se na imagem de Deus como o criador do Universo, ainda que no plano enigmático e liricamente alucinado.

          O soneto de Chico Miguel marca-se por um projeto de poiesis que começa e termina em si mesmo: a busca pela completude e compreensão humana frente à delirante ansiedade da origem da vida. Cumpre-me ainda dizer que a poesia cantada por Chico Miguel neste e noutros sonetos se aproximam dos pressupostos básicos da imagem poética discutida pelo poeta e crítico Paul Valéry (1991) quando escreveu, em Poesia e pensamento abstrato, que a poesia é uma dança cíclica que começa e fecha em si mesma.

           Finalizando a minha homenagem concisa, sinto-me segura em dizer que a leitura dos sonetos de Da Costa e Silva e Francisco Miguel de Moura remete o leitor aos aspectos da revisitação do passado e dos momentos sui generis de poetas que não dissimulam na criação das imagens telúricas, pois ambos sentem e apalpam cada detalhe presenciado nos dias mais venturosos da vida: a infância. Esta é aflorada pela imaginação, num espaço utópico e mítico arquitetado pela memória: o rio Parnaíba. Tal exegese me fez pensar no fragmento do poema que abre “Areias”:


Não deixes que a areia
branca da infância
enferruge e coma
tua coragem.

Como a aranha tece,
tece a tua teia.

         (MIGUEL DE MOURA, 1966).



          E nas contexturas de memórias e na celebração poética da saudade, em momentos de produção cronologicamente díspares, dois grandes poetas brasileiros convergem-se nas imagens da terra-sacramento: o Piauí. Da Costa e Silva e Chico Miguel descortinam o espaço poético num cenário paradisíaco ou numa canção de Pasárgada piauiense que, pensando em Paul Ricouer (1978), seria a nova aurora da palavra, uma vez que, com o desabrochar da metáfora, a imagem poética “torna-se um novo ser da nossa linguagem, exprime-nos ao tornar-nos naquilo que ela exprime” (RICOUER, 1978, p. 321).


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 Referências Bibliográficas:


BLANCHOT, M. O espaço literário.Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

BRASIL, Assis. A poesia piauiense no século XX.  (Antologia). Rio de Janeiro: Teresina: Fundação cultural Monsenhor Chave. Imago Editora: 1995, 328 p.
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. 7. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.
DA COSTA E SILVA, Antônio Francisco. Poesias completas (Org) Alberto Vasconcellos da Costa e Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, 400p.
SILVA FILHO, Cunha Francisco. Da Costa e Silva: uma leitura da saudade. Dissertação de Mestrado. Teresina. Editora da Universidade Federal do Piauí/Academia Piauiense de Letras, 1996.
MOURA, Francisco Miguel de. A literatura piauiense por Francisco Miguel de Moura. In: Entretextos (org) Dilson Lages. Disponível em: Poeta mato-grossense. Professora Mestre e doutoranda na área de Estudos Literários – Universidade Federal de Goiás – Goiânia – GO.




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