quarta-feira, 28 de novembro de 2012

ROMANCE – O QUE É O ROMANCE COMO GÊNERO?

Profª RoseleneB Berbigeier Feil
Mestranda de Literatura e Práticas Culturais
Universidade Federal da Grande Durados (MS)
e-mail:feil@hotmail.com



“A única razão para a existência de um romance é a de que ele tente de fato representar a vida.”
Henry James


Se você diz que o romance está morto, não é o romance, é você que está morto", assim escreve  Gabriel Garcia Márquez, o grande romancista de "Cem anos de solidão".

O romance não é significativo porque descreve um destino alheio, mas porque esse destino pode representar uma metáfora do nosso próprio destino, ele é um dos constituintes essenciais da apreensão da realidade. A relação do romance com a realidade que nos cerca não se reduz ao fato de aquilo que ele descreve se apresenta como um fragmento ilusório dessa realidade, fragmento bem isolado, delimitado espacial e temporalmente, bem manejável, que se pode, portanto, estudar de perto. A diferença entre os acontecimentos do romance e os da vida não consiste somente no fato de que possamos verificar os últimos, enquanto os primeiros só podem ser atingidos através do texto que os suscita. Eles são também mais envolventes e instigantes do que os reais, devido ao trabalho estético aplicado sobre a referência que o produziu. A emergência e a sobrevivência dessas ficções corresponde a uma necessidade, desempenha uma função que vai além do prazer e de uma possível fuga da realidade. As personagens dos romances preenchem vazios da realidade e esclarecem-nos a seu respeito.
No romance o homem vê e se vê, o que seduz o leitor de um romance é a perspectiva de distanciar-se para encontrar-se. Henry James traz uma excelente definição que servirá como suporte basilar para a discussão neste trabalho. Segundo ele, um romance, em sua definição mais ampla, é uma impressão direta e pessoal da vida a partir da vida, ou seja, da ótica do escritor, isso, constitui seu valor, que é maior ou menor de acordo com essa impressão. Mas não haverá intensidade alguma, e, portanto, valor algum, se não houver liberdade para sentir e dizer. A execução pertence apenas ao autor; é o que há de mais pessoal no romance, a partir da execução, as impressões são potencializadas e multiplicam-se indefinidamente, através do tempo e das sucessivas leituras de “um mesmo” e de “muitos leitores”. A vantagem do artista, o que James chama de luxo, assim como seu tormento e sua responsabilidade, “é a de que não há limites para o que ele quiser tentar como executante - não há limites para seus possíveis experimentos, esforços, descobertas, conquistas.” (James, 1995, p. 26-27). É preciso evidenciar que não só a criação, mas também a leitura de um romance é uma espécie de “sonho acordado” no qual o leitor se liberta das amarras da realidade e vai de encontro à outra dimensão, mesmo que seja uma dimensão diretamente relacionada ao real.

Como gênero da literatura , o romance, é, para alguns, herança da tragédia, para outros, da epopeia, sendo, pois, tipicamente um gênero do modo narrativo Costuma-se dizer que no romance há um paralelo de várias ações acontecendo simultaneamente, o que nos permite associá-lo à vida em si, os destinos são traçados por atos praticados e por atos sofridos, de alguns há consciência, de outros um eterno desconhecimento. No romance, uma personagem pode surgir em meio à história e desaparecer depois de cumprir sua função, na vida acontece o mesmo em relação às amizades, aos colegas de trabalho, à família. No romance o final é um enfraquecimento de uma combinação e a ligação de elementos heterogêneos, não o clímax, o que dizer do final da vida: uma síntese, onde o heterogêneo se combina e resulta no nada. Inúmeras são as semelhanças entre as características da vida e do romance, talvez, e por isso mesmo, ninguém consiga viver sem romance: sem romance vivido e sem romance escrito. Há de notar que o romance tornou-se o gênero preferencial a partir do Romantismo , por isso ficando o termo romance associado a este período. 

O romance é a epopeia burguesa moderna, segundo Hegel . Chega à modernidade com Balzac e à plenitude com Proust , Joyce, Faulkner . A partir destes últimos a ordem cronológica é desfeita: passado, presente e futuro são fundidos. Benjamin trata da contribuição valorosa de Lukács, dizendo que para este o romance “é a forma do desenraizamento transcendental” (Lukács, apud Benjamin, 2008, p. 212), o que significaria a desestruturação dos elementos temporais encarregados da linearidade do romance até então. Ao mesmo tempo, segundo Lukács, é a única forma literária que inclui o tempo como um de seus principais elementos constitutivos, mesmo que este se apresente desconexo e fragmentado. Benjamin cita Lukács a esse respeito: - O tempo, diz a “Teoria do romance”, só poder ser constitutivo quando acessa a ligação com a pátria transcendental... Somente o romance... separa o sentido e a vida, e, portanto, o essencial e o temporal; podemos quase dizer que toda a ação interna do romance não é senão a luta contra o poder do tempo... Desse combate,... emergem as experiências temporais autenticamente épicas: a esperança e a reminiscência... Somente no romance... ocorre uma reminiscência criadora, que atinge seu objeto e o transforma... O sujeito só pode ultrapassar o dualismo da interioridade e da exterioridade quando percebe a unidade de toda a sua vida... na corrente vital do passado, resumida na reminiscência... A visão capaz de perceber essa unidade é a apreensão divinatória e intuitiva do sentido da vida e, portanto, inexprimível. (Lukács apud Benjamin, 2008, p. 212)

A partir de meados do século XX intensifica-se a discussão em torno de uma provável crise do romance e sua possível morte. Essa morte teria ocorrido por volta da metade do século XX. Na França, Alain Robbe-Grillet , Claude Simon , Robert Pinget , Nathalie Sarraute , Marguerite Duras e Michel Butor , entre outros, rejeitam o conceito de romance, cuja função é contar uma história e delinear personagens conforme as convenções realistas do século XIX ; transgridem também outros valores do romance tradicional: tempo, espaço, ação, além de repudiarem a noção de verossimilhança, etc. Sartre afirmou que, ao destruírem o modelo canônico de romance, esses escritores, na verdade, renovaram-no. Desde 1880 falava-se em crise do romance, naquele ano foi realizada na França uma pesquisa sobre o tema e muitos disseram acreditar que o romance havia morrido. Numa entrevista recente, Gabriel Garcia-Márquez reitera sua crença no gênero: "se você diz que o romance está morto, não é o romance, é você que está morto". Todorov nos diz que: “A narrativa é igual à vida; a ausência de narrativa, à morte. [...] O homem é apenas uma narrativa; desde que a narrativa não seja mais necessária, ele pode morrer.” (Todorov, 2006, p. 54)

Parece ser nítido que a palavra “romance” sofreu um desgaste através do tempo a ponto de se criarem preconceitos em torno dela. Há pessoas, por exemplo, que acreditam que o fato de não lerem romances é um sintoma de intelectualidade. Na maioria das vezes, entretanto, quando se diz “eu não leio romance” está-se querendo dizer “eu não leio prosa de ficção” e, assim o preconceito se espalha para a literatura em geral.

Bakhtin, no ensaio “Epos e Romance” trata da metodologia do estudo do romance e afirma que o estudo do romance enquanto gênero caracteriza-se por dificuldades particulares que são derivadas da singularidade do próprio objeto: “o romance é o único gênero por se constituir, e ainda inacabado.(...) A ossatura do romance enquanto gênero ainda está longe de ser consolidada, e não podemos ainda prever todas as suas possibilidades plásticas.” (Bakhtin, 1990, p. 397). O processo de evolução do romance não está acabado, pois entra sempre em novas fases, uma vez que os tempos são caracterizados pela complexidade e pela dimensão insólita do mundo, pelo enorme alargamento das demandas, pela sobriedade e pela mente crítica. É assim que Bakhtin nos informa sobre os traços que também hoje determinam o desenvolvimento do romance: - O romance está ligado aos elementos do presente inacabado que não o deixam enrijecer. O romancista gravita em torno de tudo aquilo que não está ainda acabado. Ele pode aparecer no campo da representação em qualquer atitude, pode representar os momentos reais da sua vida ou fazer alusão, pode se intrometer na conversa dos personagens, pode polemizar abertamente com seus inimigos literários, etc. (Bakhtin, 1990, p. 417)

É fato que muito ainda se tem a dizer a respeito do que é, de como se constitui, de como exerce tal força de atração sobre os leitores, como se dá a identificação com esse gênero, parece correto postular que o romance, tal qual a vida que o inspira, não encontra um horizonte finito, sobrevivendo e renovando-se com as mutações do viver do humano, que é sua gênese. O romance é um gênero em evolução, por isso, talvez ele reflita mais profundamente, mas substancialmente, mais sensivelmente e mais rapidamente a evolução da própria realidade, considerando-se a necessária ligação entre o real o ficcional que traz em suas páginas. Bakhtin já dizia que: “Somente o que evolui pode compreender a evolução.” (Bakhtin, 1990, p. 400).

A contribuição de Bakhtin para o estudo desse gênero vai além da teorização, até porque o próprio teórico nos faz crer que a teoria da literatura revela uma total incapacidade em relação ao romance, com os outros gêneros ela trabalharia correta e precisamente, como se tudo fosse bem até o ponto em que teve que se debruçar sobre o romance:  Os trabalhos sobre o romance levavam, na maioria dos casos, ao registro e à descrição tão completos quanto possíveis sobre as variedades romanescas, mas, no conjunto, tais registros nunca conseguiram dar qualquer fórmula que sintetizasse o romance como gênero. Além do mais, os pesquisadores não conseguiram apontar nem um só traço característico do romance, invariável e fixo, sem qualquer reserva que anulasse por completo. (Bakhtin, 1990, p. 401).

Além dessas dificuldades colocadas por Bakhtin, outra coisa significativa é o fato de o romance não ocupar mais o mesmo espaço que ocupou até o início do século XX. Michel Butor (1974) diz que é preciso compreender que toda invenção literária, hoje em dia, produz-se no interior de um ambiente já saturado de literatura. Para Henry James (1995), o romancista é alguém para quem nada está perdido. Para Barthes , a única verdadeira crise do romance acontece quando o escritor repete o que já foi dito ou quando deixa de escrever.

Em Repertório (1974), Michel Butor diz que o romance é uma espécie de laboratório da narrativa, como se a vida real fosse o experimento e o romance um resultado sempre a se buscar. Não há espaço mais propício para se fazer novas experiências do que um laboratório. Uma literatura que pretende representar o mundo só o fará se acompanhar as mudanças desse mundo. Sendo preciso, então, mudar a própria noção de romance. Esse laboratório da narrativa vem ao encontro das relações atuais do romance com as transformações cada vez mais dinâmicas da sociedade contemporânea, cabendo neste momento recorrer à questão já formulada por Todorov (2006) quando este pergunta: que acontece antes da primeira narrativa? Que acontece depois da última? Podemos concluir o caráter infinito e suplementar entre homens e narrativas, num eterno movimento de enrola/desenrola que tende a dar sequência existencial ao sujeito narrado. 

No romance, aquilo que nos contam é, portanto, sempre e também alguém que se conta e nos conta. Se, na modernidade, é possível pensar em algum tipo de morte, certamente, essa não é do romance enquanto gênero narrativo, mas sim, da antiga estrutura que era necessariamente marcada pela coerência interna da qual se esperava extrair o sentido da narrativa. Um romance é uma coisa viva, e à medida que ele vive será renovado, em cada uma de suas partes há alguma “coisa” das dimensões do humano. As personagens do romance vão desempenhar um papel e o apreciador deste gênero reconhecerá esses personagens em seus amigos e conhecidos, elucidará a conduta destes baseando-se nas aventuras daquelas e vice-versa.
A crença em alcançar significados coerentes está em crise e, como toda narrativa, é uma descrição de caracteres, com os caracteres humanos não poderia ser diferente. O romance clássico representa a falácia de um estilo de pensamento ultrapassado pela racionalidade histórica pós-moderna em que a vertigem das narrativas se torna, muitas vezes, angustiante, resultando em estruturas que requerem encaixes sucessivos como forma de promover e fornecer respostas sobre o que e quem se narra. É sabido que nos romances não pode haver uma identidade literal, o espaço da referencialidade deve alargar-se, os acontecimentos de uma vida nunca chegam a se historicizar de maneira que uma narração não comporte mais nenhuma lacuna e as pessoas sejam obrigadas a se apresentarem completas, essa vitalidade é força necessária à sobrevivência do romance. 

Para Lukács (2000), o romance moderno substitui a epopeia na sociedade atual, na medida em que as condições do mundo contemporâneo não permitem a construção de uma narrativa épica, caracterizada pela representação de heróis coletivos e de conquistas dos povos. O romance moderno está ligado à subjetividade do homem, à sua relação com o mundo em que vive e às problemáticas que enfrenta dentro da realidade que o cerca. Neste sentido, o romance ao abordar as personagens de modo fragmentário, nada mais faz do que retomar, no plano da narrativa, a mesma maneira fragmentária, insatisfatória e incompleta com que é elaborado o conhecimento dos nossos semelhantes. Antonio Candido em A personagem de ficção, mais precisamente no ensaio “A personagem do romance” discorre, sobre essa fragmentação do sujeito, dizendo que na vida, a visão fragmentária é imanente à própria experiência, é uma condição que independe da vontade do sujeito, mas a qual ele terá que se submeter. Já no romance essa condição é criada, “(...) estabelecida e radicalmente dirigida pelo escritor, que delimita e encerra, numa estrutura elaborada, a aventura sem fim que é, na vida, o conhecimento do outro.” (Candido, 2000, p.58)

Podemos concluir que a compreensão que alcançamos com a leitura de romances, sendo estabelecida e determinada pelo escritor, é muito mais precisa do que a que nos vem da existência, o homem transformado em personagem parece ser mais lógico, embora não menos complexo, que o ser vivo que foi a “inspiração” do escritor. Quando lemos um romance, dizemos que um fato, um ato ou um pensamento são inverossímeis, em geral, o que se quer dizer é que na vida seria impossível acontecer coisa semelhante. Entretanto, na vida tudo é praticamente possível; no romance é que a lógica da estrutura impõe limites mais apertados, resultando, paradoxalmente, que as personagens são menos livres, e que a narrativa é obrigada a ser mais coerente do que a vida. Neste caso, é a realidade que extrapola a ficção. 

O romancista abstrai da realidade viva, circundante, uma estrutura orgânica, em consequência de abstrair o mundo. A ficção oferece menos dúvidas e mais certezas, ao passo que o real empresta menos certezas e, portanto, mais dúvidas. Talvez fosse o caso de considerar que se a realidade fosse mais “certa” a ficção se tornaria desnecessária, mas, nem sempre a realidade dá conta de expressar tudo o que acontece, neste momento entra em ação o romancista que ordena e unifica racionalmente os dados recolhidos por sua sensibilidade segundo um cânone que apenas rege a obra escrita, e não o mundo real de onde sua intuição partiu. O romance torna-se um universo fechado, autônomo, paralelo ao outro que espelha ou em que se espelha. Esse processo de composição, literário por excelência, não pretende reproduzir a realidade vital, mas criar um mundo todo seu, independente, regulado por normas que cabem no mundo real.
Numa segunda possibilidade, o romancista procura imitar o mundo e a natureza, notadamente no seu aspecto caótico. Guiado por sua sensibilidade, liberta de pressupostos lógicos, procura captar a realidade viva tal qual se lhe apresenta no plano dos sentidos; por outras palavras, extrair da realidade sua estrutura dinâmica e descontínua - não dada às racionalizações, desta forma o romance se assemelha a uma realidade flutuante, desconexa.

Pode-se copiar no romance um ser vivo e, assim, aproveitar integralmente a sua realidade? Não, em sentido absoluto. Primeiro porque é impossível, através da escrita ou de qualquer outro recurso, captar a totalidade de modo de ser, agir e pensar de uma pessoa, sequer conhecê-la razoavelmente. Além disso, se isso fosse possível se dispensaria, no caso do romance, a criação estética. Candido fala que a criação de um personagem sempre mantém vínculo com uma realidade matriz, mesmo que, segundo ele, “o escritor pense ter copiado quando inventou; que exprimiu a si mesmo, quando se deformou; ou que se deformou, quando se confessou.” (Candido, 2000, p. 69).

Ao iniciar a sua obra A teoria do romance , Lukács (2000) fala-nos de um tempo em que não havia filosofia, pois todas as explicações eram encontradas nos mitos. Segundo o autor, esse era um tempo sem dúvidas, portanto, sem necessidade de respostas. Esse é o contexto em que surge a epopeia, gênero que reflete plenamente a forma de pensar e de sentir do homem da época. Assim, o mundo grego nos é apresentado de forma homogênea e fechada. Em outras palavras, é perfeito e, portanto, estático, ao contrário do nosso mundo atual que, cada vez mais vasto e rico, perdeu em totalidade o que ganhou em abrangência. Essa é a razão pela qual Lukács (2000) afirma a impossibilidade de produzirem-se epopeias nos dias atuais, pois o homem grego vivia no equilíbrio de uma estrutura fechada, que se relaciona com o gênero épico, enquanto o homem atual rompe com essa harmonia e o mundo passa a apresentar-se com uma estrutura incoerente. No universo grego, o homem não conhecia solidão. A epopeia desapareceu dando lugar ao romance . O que difere a epopeia do romance é o fato de que este último pertence a uma época em que a totalidade da vida já não é mais evidente. A epopeia apresenta-nos uma totalidade acabada em si mesma, enquanto que o romance tenta descobrir essa totalidade. 

O romance compõe-se por uma fusão paradoxal de fatores heterogêneos e descontínuos, tendo sua coerência alcançada por meio da forma. Se a epopeia mostra o homem em perfeita harmonia com seu universo fechado, o romance indica o constante rompimento dessa consonância. É a ruptura entre o sujeito e seu mundo, o momento em que a totalidade deve ser buscada, em meio a um ambiente fragmentado. Lukács (2000) destaca quatro momentos nesse gênero: no primeiro, o herói é um visionário que se sente menor que o mundo, solitário. Isso acontece em razão de uma inadequação entre a alma e a obra literária, entre interioridade e aventura. Observa-se, assim, um caráter degradado do herói problemático, que mostra uma inaptidão que impede a realização do ideal, a isso Lukács (2000) define como idealismo abstrato. Um segundo momento seria o que o autor denomina “romantismo da desilusão”, no qual o herói é apresentado como um ser desajustado, em conflito com o mundo. Nesse caso, há uma tendência, por parte do indivíduo, de buscar uma fuga das questões conflituosas e das lutas exteriores, é o que o autor chama de anos de aprendizado. Nesse caso, o herói sofre, entretanto, aprende com as experiências da vida e, por isso, consegue realizar algo de positivo, esse terceiro tipo pode ser chamado de romance de educação. O indivíduo situa-se entre os dois tipos apresentados anteriormente, abordando a reconciliação do homem problemático com a realidade concreta e social. No quarto tipo, é a literatura da superação das formas sociais de vida, e o herói atua sobre a sociedade para ajustar-se a ela. Mas essa superação não consegue resolver os problemas inerentes ao homem moderno. Ao contrário, acentua-os, ficando muito longe da realidade. 

O romance é um “ato simbólico” de expressão da cisão. Uma expressão da insuficiência, de estranhamento, diante da distância entre o eu e o mundo.

A vida própria da interioridade só é possível e necessária, então, quando a disparidade entre os homens tornou-se um abismo intransponível; quando os deuses se calam e nem o sacrifício nem o êxtase são capazes de puxar pela língua de seus mistérios; quando o mundo das ações desprende-se dos homens e, por essa independência, torna-se oco e incapaz de assimilar em si o verdadeiro sentido das ações, incapaz de tornar-se um símbolo através delas e dissolvê-las em símbolos; quando a interioridade e a aventura estão para sempre divorciadas uma da outra. (Lukács, 2000, p.66-67)

Mesmo não sendo demarcada cronologicamente, a cisão é apresentada como um resultado histórico: “o romance é a epopeia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade.” (Lukács, 2000, p.55). 

O poder do romance é ilimitado, porque o leitor se esquece de tudo o que não seja dele, aprende a preencher, neste espaço exemplar, sua própria existência e descobre como sabia pouco ao seu respeito e como pode potencializar o conhecimento sobre si mesmo. O mundo pós-leitura é consideravelmente diferente do que o já experimentado. 

Aparentemente o romance nada tem de real e de verdade, sendo pura obra de invenção, Benjamin desenvolve sabiamente a questão da invenção e da introspecção características do romance e o diferencia da épica, justamente, por possuir essa propriedade: - No sentido da poesia épica, a existência é um mar. Não há nada mais épico do que o mar. Naturalmente, podemos relacionar-nos com o mar de diferentes maneiras. Podemos, por exemplo, deitar na praia, ouvir as ondas ou colher os moluscos arremessados na areia. É o que faz o poeta épico. Mas também podemos percorrer o mar. Com muitos objetivos, e sem objetivo nenhum. Podemos fazer uma travessia marítima e cruzar o oceano, sem terra à vista, vendo unicamente o céu e o mar. É o que faz o romancista. Ele é o mudo, o solitário. (Benjamin, 2008, p. 54)
E complementa afirmando que “a matriz do romance é o indivíduo em sua solidão”, o homem que não pode mais falar e narrar exemplarmente sobre suas preocupações tal como fazia na antiguidade, aquele homem já que não tem mais a quem dar conselhos, ou que não se sente apto a aconselhar alguém, já que também precisa de uma referência que o sustente: “Escrever um romance significa descrever a existência humana, lavando o incomensurável ao paroxismo.” (Benjamin, 2008, p. 54) A ficção é o contrário da realidade, apesar de algumas vezes as fronteiras não serem muito nítidas, como se sabe; mas a ficção tende a procurar explicar aquele real de que o cotidiano e a ciência não dão conta. Não que explicar seja uma função da ficção, mas, involuntariamente, ela esclarece pela mimetização do mundo elevado à texto as situações que envolvem o sentido do existir de uma maneira mais real do que a real. A ficção contradiz a realidade, sim, mas por isso mesmo a ficção enriquece a realidade.

Com efeito, é o sentido da vida o centro em torno do qual se movimenta o romance. Mas, para ter em mente o romance, a primeira coisa que se deve fazer é aceitar (isto é, esquecer) coisas tais como: o romance é sobre a vida e a vida tem um padrão. Afinal de contas, o fato de que o romancista escreva sobre a vida não é assim algo tão extraordinário; é a única coisa de que ele tem conhecimento. Não é de causar surpresa que, ao escrever, ele organize a vida num padrão, o padrão que ele conhece ou que gostaria de conhecer, não importando o que possa pensar a respeito dela ele a faz, a reconstrói, o importante é que o romance deve transmitir em certa medida a vida. 

Neste ponto recupera-se a frase de Henry James: ”A única razão para a existência de um romance é a de que ele tente de fato representar a vida.” (James, 1995, p. 21). E acrescenta-se o entendimento Flávio Loureiro Chaves acerca do fascínio que o romance exerce sobre o leitor: “não se procura um livro para fugir à vida, mas sim para viver ainda mais, viver a vida da outras personagens, em outras terras, outros tempos. Ainda é o desejo de viver que nos leva para a leitura dos romances”. (Chaves, 1991, p. 42)
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Referências bibliográficas:
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. 2. Ed. São Paulo: Ed. UNESP/Hucitec, 1990
BENJAMIN, Walter. A crise do romance. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio P. Rouanet. 7. ed. 11. reimp. São Paulo: Brasiliense, 2008. (Obras escolhidas, v. 1)
BUTOR, Michel. Repertório. Trad. e Org. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 1974.
CANDIDO, Antônio (org.). A personagem do romance. In: A Personagem de Ficção. 10. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.
CHAVES, Flávio L. História e Literatura. 2. ed. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1991.
JAMES, Henry. O futuro do romance. In: A arte da ficção. Sel. e Apres. Antônio P. Graça. Trad. Daniel Piza. São Paulo: Imaginário, 1995. (O olhar Criador)
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Editora 34, 2000.
MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa I. 17. ed. São Paulo: Cultrix, 2000.
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2000. (Coleção Debates, 14)
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*Roselene Berbigeier Feil é mestranda em Literatura e Práticas Culturais pela Universidade Federal da Grande Dourados.
                            E-mail: rose-feil@hotmail.com





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