quarta-feira, 26 de outubro de 2011

JAILSON KLEIN - SALOMÃO GRANDE

Jailson Klein*

UM DIA NA VIDA DE SALOMÃO
9 de abril de 1964

          Dezoito anos.
         Foi o que de primeiro pensei quando aterrei os pés no dia em que eu ia ficar de maior. Pra falar a verdade, não apeei da rede, fiquei deitado com os olhos arregalados, esperando o galo cantar. Aí meus pensamentos teimaram de fazer um inventário do meu tempo de vida vivida. Cheguei na questão em que sempre findava meu apanhado do passado: eu tenho gosto na vida como está hoje? Morando numa serra, sem possuir um rádio, Jandira sem me querer pra namorar. Pode ser que Deus me castigue pelo mal-agradecimento, por causa de que de noite vou até quebrar a tigela de minha calça Tropical e de minha camisa moldada por alfaiate de Picos. Então, o que um pobre coitado como eu pode querer mais na vida? Reclamar da vida deve ser um pecado, uma ofensa ao Nosso Senhor, visto que tenho boa saúde pra trabalhar e não sou cruz pesada pra ninguém carregar. Deus que me perdoe pela ingratidão dos pensamentos ruins.

 Ainda deitado de cara pra cima, fiquei caçando os buracos nas telhas velhas de nossa casa, por onde raiava a luz do dia, e matutando sobre os meus gostos não realizados, de novo sem pensar em Deus. Calculei que beirava as cinco horas da manhã. Pra saber de certo, só se Josué estivesse aqui pra ler a horas no seu relógio Seiko, mas ele estava na casa dele ainda dormindo; todo mundo dormia; todo mundo sonhava; mas eu que fazia acordado. Nove de abril, a partir de hoje vou teimar pra ser chamado de Salomão Grande, nada de Saló. São outros tempos pra mim e pro Rodeador, que também vai ter nome novo: Santo Antônio. Pai nunca vai dizer esse nome na vida dele, ia ser Rodeador pro resto da vida.

Espiei pra um lado, pra o outro, e vi os vultos das redes encostadas à minha, uma de cada lado; nem carecia de ver pra saber que agora eram só três que trançavam pelo cômodo grande da frente de casa. Antigamente eram sete redes estendidas aqui na sala e outras, das mulheres, no quarto do santo. Pai e mãe ficavam no quarto grande. Mas isso foi antes de Ezequiel ir pra são Paulo, antes de matarem Jacó, antes de tanta coisa se alterar na nossa família. Podia o amontoado ser maior, se três dos irmãos não tivessem morrido pequenos. Mas os meninos homens que vingaram ficaram mesmo só em sete; ajuntando com as mulheres, aí sim, é que tudo contado dava dez irmãos. Bem pouco, dizia vó Raimunda antigamente, e comprava com outras famílias conhecidas, que tiveram mais filhos vingados que a nossa. E naquela época ainda os irmãos tudo moravam em casa. É, vendo a arrumação da dormida, acho que agora é só um tiquinho de gente em casa, e a sala fica um grande descampado. No passado, antes da minha rede, de um lado tinha a de Jeremias, porque ele é o caçula; essas duas continuam no mesmo lugar. Da outra banda da sala, a primeira era a de Josué, por ser o mais velho. Armada na ponta da sala, ele levava a vantagem de balançar botando o pé na parede. Corri a vista pelos adobes que, no escuro, eu não podia ver direito, mas que conhecia direitinho cada um deles, cada um dos buracos que cavamos pra comer o barro, nos tempos das lombrigas na barriga. Nesses buracos a gente guardava coisas. Castanhas, sementes, brinquedos, tocos de cigarros de palha. Quando a gente era pequeno, eram esconderijos de placas de metal, caixinhas de fósforo, arames, bolinhas de gude — essas custavam de se conseguir uma. 

Mais um tempinho e alguns dos irmãos iam acordar pra mais um dia de labuta. Pra eles, apenas mais uma quinta-feira de costume, de trabalho na roça; agora pra mim, o único que ia na festa de emancipação de Santo Antônio, ia ser dia de mudança. Um dia que ia ser comprido, pois que tinha muitos planos e problemas pra resolver à noite, por isso o nervoso me atacou desde cedo. Antes que mãe começasse a bater panela pra fazer os beijus e o café, me revirei na rede e tentei me lembrar de como as coisas tomaram o rumo de agora. Acho que a vida da família se alterou depois da morte de Jacó. A rixa com a família Medeiros começou mesmo depois do namoro do primo Zé Preá com a filha de Seu Nonato Medeiros, Rosalva. Pra falar a verdade, o leite só azedou mesmo quando saiu o falatório que ela estava perdida do primo. Esses bestas da família Medeiros sempre foram metidos a valentes e fizeram a vida caçando desculpa pra arrumar uma confusão com a nossa. Bastou a conversa chegar aos ouvidos dos Medeiros de que Rosalva estava desonrada, pra eles quererem começar a guerra de novo. Queriam sangrar Zé Preá ou qualquer um parente pra lavar o sobrenome, porque o velho Nonato dispensou os oferecimentos de tio Augusto de fazer o casório dos dois, querendo dizer que a família deles era mais honrada do que a nossa, e a que tinha homem mais valente do povoado. Nem era uma coisa nem outra. A família Grande provou isso antes e eu vou provar de novo hoje, se precisar. 

O galo cantou bem quando eu me alembrava do tempo que tinha começado o chamego de Zé Preá e Rosalva. Parei com as lembranças e pulei da rede como um homem de maior pra enfrentar as pendengas tudo que eu tinha pra hoje.



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 *Jailson Klein, brasileiro, mora em São Paulo. Já participou na publicação de dois livros de contos e prepara o terceiro, agora este "Um dia na vida de Salomão Grande", do qual apresentamos o primeiro capítulo. Trata-se de um prosador que vai direto ao assunto, numa linguagem saborosa e bem esperta, da maneira como os mais modernos contistas escrevem. Estilo originalíssimo.

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