sábado, 31 de janeiro de 2009

POEMA NECESSÁRIO / 95 - JOSÉ RÉGIO


Belo Horizonte, janeiro, 2009.

Edição e promoção:
Phrasis Assessoria Texto Consultoria
Seu texto em melhores mãos depois das suas.

Esta edição circula graças à colaboração especial do Poeta FRANCISCO MIGUEL DE MOURA (Teresina, PI). É enviada a 2 322 endereços, com quatro poemas de JOSÉ RÉGIO, em homenagem ao Poeta HERBERT HELDER, (Lisboa, Portugal), e a HENRIQUETA LISBOA, poeta e ensaísta, em memória (Bambuí/Belo Horizonte).

1
O AMOR E A MORTE

(Canção Cruel)

Corpo de ânsia.
Eu sonhei que te prostrava,
e te enleava
aos meus músculos!

Olhos de êxtase,
eu sonhei que em vós bebia
melancolia
de há séculos!

Boca sôfrega,
rosa brava
eu sonhei que te esfolhava
pétala a pétala!

Seios rígidos,
eu sonhei que vos mordia
até que sentia
vômitos!

Ventre de mármore,
eu sonhei que te sugava,
e esgotava
como a um cálice!

Pernas de estátua,
eu sonhei que vos abria,
na fantasia,
como pórticos!

Corpo de ânsia,
flor de volúpias sem lei!
Não te apagues, sonho! Mata-me
como eu sonhei.

2
CÂNTICO NEGRO

"Vem por aqui!" Dizem-me alguns com os olhos doces
estendendo-me os braços, e seguros
de que seria bom que eu os ouvisse
quando me dizem: "Vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
há, nos olhos meus, ironias e cansaços
e cruzo os braços,
e nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
com que rasguei o ventre à minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
por que me repetis: "Vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
redemoinhar aos ventos,
como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
a ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
só para desflorar florestas virgens
e desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
para eu derrubar os meus obstáculos...?
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
e vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
tendes jardins, tendes canteiros,
tendes pátria, tendes tectos,
e tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
mas eu, que nunca principio nem acabo,
nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "Vem por aqui!"
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
não sei para onde vou.
Sei que não vou por aí!
3

SONETO DE AMOR

Não me peças palavras, nem baladas
nem expressões, nem alma... Abre-me o seio,
deixa cair as pálpebras pesadas,
e entre os seios me apertes sem receio.

Na tua boca sob a minha, ao meio,
nossas línguas se busquem, desvairadas...
E que meus flancos nus vibrem no enleio
das tuas pernas ágeis e delgadas.

E em duas bocas uma língua... unidos,
nós trocaremos beijos e gemidos,
sentindo nosso sangue misturar-se.

Depois... abre os teus olhos, minha amada!
Enterra-os bem nos meus: não digas nada...
Deixa a vida exprimir-se sem disfarce.

(de As Tormentas, apud Luís Rodrigues, internete)

4

TOADA DE PORTALEGRE

Em Portalegre, cidade
do Alto Alentejo, cercada
de serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,
morei n uma casa velha,
velha, grande, tosca e bela,
a qual quis como se fora
feita para eu morar nela...

Cheia de maus e bons cheiros
das casas que têm história,
cheia de tênue, mas viva, obsedante memória
de antigas gentes e traças
cheia de sol nas vidraças
e de escuros nos recantos.
- Quis-lhe bem, como se fora
tão feita ao gosto de outrora
como ao do meu aconchego.
Em Portalegre, cidade
do Alto Alentejo, cercada
de montes e de oliveiras,
do vento soão queimada,
(Lá vem o vento soão!
que enche o sono de pavores,
faz febre, esfarela os ossos,
dói nos peitos sufocados,
e atira aos desesperados,
a corda que se enforcam
na trave de algum desvão...)

em Portalegre, dizia,
cidade onde então sofria
coisas que terei pudor
de contar seja a quem for,
na tal casa tosca e bela
a qual quis como se fora
feita para eu morar nela,
tinha então
uma pequena varanda
diante duma janela
toda aberta ao sol que abrasa,
ao frio que tolhe, gela
e ao vento que anda, desanda,
e sarabanda, e ciranda
derredor de minha casa,
em Portalegre, cidade
do Alto Alentejo, cercada
de serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,
era uma bela varanda,
naquela bela janela!

(.............................................................................)

E então que sucedia
que em Portalegre, cidade
do Alto Alentejo, cercada
de serras, penhascos, oliveiras e sobreiros,
aos pés lá da casa velha
cheia de maus e bons cheiros
das casas que têm história,
cheia de tênue, mas viva, obsidiante memória
de antigas gentes e traças
cheia de sol nas vidraças,
e de escuro nos recantos,
cheia de medo e sossego,
de silêncios e de espantos,
- a minha acácia crescia.

Vento soão!, obrigado
pela doce companhia
que tem hálito empestado,
sem eu sonhar, me chagava!
e a cada raminho novo
que a tenra acácia deitava,
será loucura!..., mas era
uma alegria
na longa e negra apatia
daquela miséria extrema
em que eu vivia,
e vivera,
como se fizera um poema,
ou se um filho me nascera.

(de Fado, apud Literatura Portuguesa em Curso, Dirce Cortes Riedel et alii, Reper Editora, Rio de Janeiro, 1970)


UM POETA ENTRE O ABSOLUTO E O TERRENO

Paschoal Motta

JOSÉ RÉGIO é pseudônimo de José Maria dos Reis Pereira. De Vila do Conde, 1901. Inicia sua carreira ainda na Faculdade de Letras, 1925. Dois anos depois, cria e edita, junto com João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca, a revista Presença. Em Portalegre, trabalhou como professor.
Alheio a grupos literários, como informam seus biógrafos, dedicou-se à criação poética, Teatro, Ficção (conto, romance), além de Crítica Literária.
Algumas de suas obras. De poemas: Poemas de Deus e do Diabo, 1925; Biografia, l929; As Encruzilhadas de Deus, 1936; Fado, 1941; O Filho do Homem, 1962. De Teatro: Jacó e o Anjo, 1941; El Rei Sebastião, 1949; Três Peças em um Ato, 1957. De romance: Jogo da Cabra-Cega, 1934; O Príncipe com Orelha de Burro, 1942; Vidas são Vidas, 1966. De Crítica: Críticos e Criticados, 1930; Antonio Boto e o Amor, 1938; Em Torno da Expressão Artística, 1940; Três Ensaios Sobre Arte, 1967.
Sobre a criação geral de José Régio, vale a apreciação de Massaud Moisés*: “Em todas essas formas de expressão, é sempre o mesmo intelectual convicto e superiormente cônscio da importância de sua múltipla atividade literária, como nascida do imperativo duma espécie de missão civilizadora que não se curva a nada, mesmo a um espessa solidão capaz de levá-lo ao desespero. O centro nevrálgico de sua obra, especialmente poética, é representado por um problema de simultânea raiz intelectual e sensitiva: a do diálogo entre Homem e Deus, em que o primeiro manifesta irrecorrível necessidade do Absoluto. O poeta quer Deus, desespera-se, angustia-se na procura, mas ao mesmo tempo gostaria de o não querer, tal o seu egocentrismo: o seu sofrimento íntimo nasce do fato de sentir a necessidade do Absoluto, que lhe dá a medida de sua pobre relatividade terrena. Quando a desesperança vence o orgulho, o poeta arrasta-se, despoja-se, vencido e entregue à visão da transcendência, ao mesmo tempo temida e desejada.
Dessa atmosfera densamente dramática, trágica, nasce uma obra forte, quente, máscula e austera como poucas...”


(*A Literatura Portuguesa, 7ª. edição, Editora Cultrix, SP, 1969)

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Paschoal Motta, poeta e ficionista brasileiro, mora em Belo Horizonte-MG - o organizador desta publicação, enviada por e-mail, com a devida autorização para publicar em Revista Cirandinha.

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