terça-feira, 27 de maio de 2008

INFÂNCIA E SOFRIMENTO EM "TERNURA"

Cunha e Silva Filho*

Ao contrário do que diz Humberto Guimarães nas orelhas do livro TERNURA, de Chico Miguel, não estamos diante de um desvio de construção literária. TERNURA se afirma como uma narrativa de escritor cujo apego mais acentuado de seu texto é com o inusitado, o variável, a exceção. Basta ver os dois últimos capítulos de seu breve romance, nos quais ilustra a sua tendência experimentalista ao lidar com a criação literária. São dois capítulos que, reforçando a natureza poética do seu discurso, aí radicalizam a dimensão significante da diegese romanesca. Passamos, assim, da referencialidade à conotatividade, união entre o real e o simbólico. Por isso, seu epílogo não é um epílogo, mas uma narrativa em aberto, que, por sinal, está em harmonia com a natureza deste romance, ou seja, um romance que se aproxima do bildungsroman, como chamam os alemães ao romance de formação.

Podemos, em sentido lato, rotulá-lo de literatura infanto-juvenil. Essa classificação não me parece de todo correta se levarmos em conta a extrapolação da trama que, como se deu em Gulliver’s travels de Swift, só aparentemente pareceria destinado ao público infanto-juvenil. Por baixo das camadas superficiais das peripécias infantis, ocultam-se variados aspectos do interesse do adulto. Neste sentido, a obra seria mais uma estória de criança para o público tanto infantil como também adulto.

A literatura infanto-juvenil, para se manter nesse nível de recepção de leitor, não exigiria um aprofundamento do texto tanto na direção estética quanto na tensão dialética. Seria um texto menos denso, mais leve, e mais direto. No livro de Chico Miguel isso não ocorre, talvez porque o autor ainda não tenha encontrado a receita ideal ou a fórmula, se quiserem, do texto didaticamente endereçado ao público-mirim. Não é que eu esteja subestimando o nível de maturidade do leitor-pequeno, ou desacreditando na capacidade criativa do romancista que pode ser bom para a literatura dita de adulto sem estar ainda suficientemente preparado para as exigências (até comerciais) da literatura infanto-juvenil.

Pelas virtualidades depreendidas do texto de Chico Miguel, pela complexidade dos problemas por ele levantados, o romance cada vez mais me convence de que o interesse do seu leitor prende muito mais o adulto do que a criança.

Vejamos como ele se organiza no plano de sua visão do mundo. A obra se realiza através de múltiplas antinomias: cidade-campo, pobreza-riqueza, saber-analfabetismo, vida-morte, felicidade-tristeza. Além disso, o romance desnuda alguns problemas básicos, como preconceito racial, relação de parentesco, relações econômicas ainda de base feudais, coronelismo, desmoronamento da vida conjugal, incomunicabilidade humana. Tudo isso sobe a ótica de um narrador em terceira pessoa, centrado predominantemente na figura Pedrinho branco, filho de pai rico, sobrinho de coronel de fazenda, às voltas com os conflitos da puberdade, como o despertar do amor, os primeiros impulsos do onanismo, os desafios da vida adulta que se aproximava, assim como a sofrida experiência entre pais que falharam no casamento, e os padecimentos de um adolescente diante de uma mãe doente e segregada da família.

Sem nomear lugares reais, este breve romance põe diante do leitor um painel da vida passada no interior do Nordeste – o Piauí provavelmente, pois muitos são os índices que marca o espaço romanesco, através das referências da linguagem, do vocabulário, dos usos e costumes da vida interiorana.

Através do percurso de Pedrinho vemos e reconhecemos com alegria recortes e passagens de nossa própria experiência de infância e adolescência, como a rivalidade ingênua entre Pedrinho e Pedrinho da Lata, os ciúmes da irmã manifestados diante de um pretendente que repudiava, seja pela cor, seja pela condição social.

Um menino que, a princípio, nos parece antipático, pouco a pouco se vai impondo à nossa admiração, devido àquela nobre atitude de querer por força alfabetizar crianças e adultos da fazenda do tio Cardoso, mesmo arrostando a oposição de um tio tacanha e repressor.

Livro bem urdido temática e literariamente, se bem que o recurso nele do largo uso do discurso indireto livre, da mudança de cenas e de planos narrativos provavelmente não seja bem digerido pelo leitor pequeno. O que o romancista poderia fazer seria dosar mais esses recursos de técnica de enredo ou de focalização. O escritor, porém, se desse importância a essa estratégia, talvez conseguisse atrair para si maior público infanto-juvenil. Ao contrário, o que fez foi aprofundar os recursos de narrador, misturar referencialidade com poeticidade (nele fértil por ser ele próprio poeta), dar largas à imaginação e adentrar até mesmo na ruptura sintática, como no capítulo 23: “Pedrinho no-dia-das-mangueiras. Ahistórianomeiodavida” (p.106)

No último parágrafo daquele capítulo há uma clara intenção de atingir o metadiscurso, ou seja, a desmistificação do texto como se fosse mistério, e não forma intencional de, trabalhando com a palavra poética (também no sentido do discurso ficcional), conseguir a “verdade” da ficção, procedimento que indiretamente já havia demonstrado no capítulo 10, p.54-55, na cena em que Pedrinho da Lata, cansado de narrar uma estória de cunho fantástico, foi repreendido pelos companheiros que não desejavam a sua interrupção.

Nota do articulista: Ternura foi publicado pela Editora Gráfica da UFPI, Teresina, 1993, 108 p., capa de Fritz Miguel e orelhas de Humberto Guimarães.

(Publicado no jornal “Diário do Povo”, de 13 de outubro de 1996)

_____________________

* Cunha e Silva Filho é professor universitário, com grau de doutorado, no Rio de Janeiro, além de tradutor e crítico literário.

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...